Assalto ao «Santa Maria» há 50 anos

Assalto ao «Santa Maria» há 50 anos
«Sentia-me personagem de ficção», recorda Miguel Urbano Rodrigues em entrevista

Faz agora meio século. A 22 de Janeiro de 1961, um grupo de antifascistas portugueses e espanhóis infiltrados entre os passageiros assaltou e tomou o paquete «Santa Maria» que navegava no Mar das Antilhas, próximo de Santa Lúcia. O navio, da Companhia Colonial de Navegação, com cerca de um milhar de passageiros e tripulantes a bordo, largara de Tenerife no dia 13, aportara em La Guayra (Venezuela) e em Curaçau e seguia para Miami (Estados Unidos). A Operação Dulcineia foi levada a cabo pelo denominado Directório Revolucionário de Libertação (DRIL) e comandada por Henrique Galvão, com ligações ao general Humberto Delgado, ambos opositores à ditadura salazarista. A aventura terminou a 1 de Fevereiro, quando o navio, rebaptizado «Santa Liberdade», entrou no Recife. As autoridades brasileiras deram refúgio a Galvão e companheiros e o barco foi devolvido a Portugal.
Um dos protagonistas da aventura do «Santa Maria» foi Miguel Urbano Rodrigues, então exilado no Brasil. Era editorialista do «Estado de S. Paulo», estava ligado ao DRIL e foi o primeiro jornalista a subir ao navio, ainda em pleno mar, juntando-se ao comando da operação. Vivendo e trabalhando hoje entre o seu Alentejo (Serpa) e Vila Nova de Gaia, o jornalista e escritor concedeu ao «Alentejo Popular» uma entrevista sobre o assalto ao «Santa Maria».

– O Miguel Urbano Rodrigues participou, em Janeiro de 1961, na aventura do «Santa Maria». Onde se encontrava a viver e a trabalhar nessa época e em que circunstâncias?
– Antes de responder, digo-lhe que todos os anos, nas vésperas da passagem do aniversário do assalto ao «Santa Maria», sou convidado a falar ou escrever sobre o tema. Recuso sempre, porque nada tenho a acrescentar ao que escrevi em dois capítulos de um livro meu – «O Tempo e o Espaço em que vivi » – e num depoimento ao jornal «Público» e do que disse há anos num programa de televisão. Não gosto de me repetir e sou avesso a exibicionismos. Abro uma excepção para o «Alentejo Popular», pelo apreço que tenho pelo jornal, exemplo de dignidade e coerência ideológica no panorama desolador da imprensa portuguesa.
Sobre o que me perguntou: na época eu vivia exilado, em São Paulo, no Brasil. Era editorialista do diário «O Estado de S. Paulo».

– Quando se desencadeia a denominada Operação Dulcineia, tinha já contactos com Henrique Galvão e conhecia previamente os planos de assalto ao «Santa Maria»?
– Eu era membro do Directório Revolucionário de Libertação, mas não tinha conhecimento do plano. Mantinha contacto pelo correio com Henrique Galvão. Conheci-o no aeroporto de São Paulo quando ele passou por ali vindo de Portugal, rumo à Argentina, o seu primeiro pais de exílio, após a evasão.

– Quando toma conhecimento da captura do navio, como é que encontra e entra no «Santa Maria», juntando-se a Galvão e companheiros? Creio que é o primeiro jornalista a entrar no navio capturado...
– No livro referido explico que enviei de Recife um radiograma a Galvão. Ele informou que no dia seguinte estaria navegando entre os paralelos 8 e 9 a uma distância entre 30 e 50 milhas da costa. Aluguei um barco e após uma noite tempestuosa cheguei ao «Santa Maria».

– Como é que decorrem esses dias a bordo do então rebaptizado «Santa Liberdade»?
– A bordo deram-me um uniforme e umas estrelas. Fui informado de que era comandante assessor do DRIL. As relações com os passageiros, mais de 600, eram excelentes. O prestígio da Revolução Cubana contribuía para que vissem em nós piratas românticos. Quando os passageiros me tratavam por «comandante», sentia-me personagem de ficção.

– Segundo li, foi o Miguel a receber a bordo o general Humberto Delgado... Como se recorda desses momentos?
– Em nome do comando fui efectivamente eu quem recebeu o general Humberto Delgado. Gerou-se tensão porque ele chegava com um jornalista do «Daily Telegraph» que pagara o aluguer do barco e a entrada do repórter a bordo não foi autorizada.

– Quais eram os objectivos iniciais de Henrique Galvão com o assalto ao «Santa Maria»? Esses planos concretizaram-se?
– Existem versões contraditórias sobre o objectivo. A que Jorge Soutomaior apresenta é muito confusa e semeada de inverdades. Segundo José Velo Mosquera, o outro comandante galego, o plano previa chegar de surpresa a Santa Isabel, em Fernão do Pó, tomar ali duas canhoneiras espanholas e rumar a Luanda, na esperança de provocar ali um levantamento revolucionário. Recordo que a minha primeira decepção, ao chegar a bordo, foi o conhecimento desse projecto, quixotesco. Já o haviam abandonado quando a operação deixou de ser secreta, após o desembarque em Santa Lúcia do médico ferido.

– Quem compunha o DRIL, que pessoas eram essas, que motivações tinham?
– Eram 24 os membros do comando do DRIL que tomou o «Santa Maria». A maioria espanhóis, quase todos anarquistas. Alguns diziam ser marxistas, mas, com uma ou outra excepção, espanhóis e portugueses não tinham formação política. Eram antifascistas e a Revolução Cubana empolgava então a juventude na América Latina. Aproximadamente uma dezena de tripulantes aderiu; gente boa, mas também sem formação política.

– Saiu recentemente em Portugal um livro, «Eu Roubei o Santa Maria», de Jorge Soutomaior, aliás José Fernández Vázquez, um activista galego que participou no assalto. O que pensa desta obra?
– A resposta à pergunta será, desculpe, extensa. O editor desse livro, José António Barreiros, telefonou-me há dias. Insistiu pela minha participação num acto comemorativo da tomada do Santa Maria, na Livraria Barata, em Lisboa. Recusei e esclareci que a publicação do livro em questão fora, a meu ver, uma iniciativa lamentável. Quando conheci Jorge Soutomaior não me impressionou mal nas primeiras semanas. Entendi-me muito melhor com ele e José Velo Mosquera do que com Henrique Galvão. Os três formavam a troika do comando do DRIL. Precisamente por isso o livro que escreveu muitos anos depois me chocou. Identifiquei nele a obra de um mitómano. Soutomaior não se limita a deformar grosseiramente a história.
Apresenta-se não apenas como o cérebro da chamada Operação Dulcineia, mas como herói de novo tipo, simultaneamente como o ideólogo, o estratego, o homem de acção que tudo decidia… Eu somente entrei no navio dias depois do assalto. Não posso portanto pronunciar-me sobre a versão que apresenta da fase conspirativa e da tomada do barco. Mas, a avaliar pelo que escreve sobre situações em que participei, deve ser também fantasista. Cito quatro exemplos. Quem parlamentou com a esquadra norte-americana e exigiu que tapassem os canhões fui eu – em nome do comando – e não ele.
Na tentativa de motim da tripulação nem sequer apareceu durante a cena que descreve. Quem enfrentou a fúria dos amotinados fomos o Rojo e eu que, aliás, voando através da porta de vidro quebrada, sofri ferimentos ligeiros. O episódio rocambolesco que relata, dominando a situação de revólver em punho, é do domínio da ficção. O que afirma sobre a conferência com o almirante americano é também falso. A sua participação na conversa foi muito discreta. Nesse encontro, além dos três comandantes, somente participamos o Rojo e eu. Não foram tomadas quaisquer notas taquigráficas. A acta assinada foi redigida por mim a partir de apontamentos que tomei quando o gravador se avariou logo no início. O cônsul americano em Recife, co-responsável pela redacção, acabou por não tomar notas.
A versão que Soutomaior apresenta da sua participação no Brasil em diferentes iniciativas não tem pés nem cabeça. Ele nunca manteve quaisquer contactos com o MPLA. Concordou, em reunião com José Velo e comigo, com a minha ida a África para conversações com os movimentos de libertação das colónias portuguesas, mas não teve a menor participação na elaboração do projecto – concebido pelo Velo e por mim, com desconhecimento do Henrique Galvão. A ideia era transferir os comandos do DRIL para a Guiné-Conakry para colaborarem na luta de libertação da Guiné-Bissau.
Concluindo, o livro «Eu roubei o Santa Maria» é um trabalho de baixo nível, fantasista, recheado de mentiras, que nunca deveria ter sido publicado em Portugal. Julgo útil esclarecer que nem a bordo, nem no Brasil, Soutomaior, na minha presença, nunca hostilizou Galvão. Sei que via nele um colonialista e um reaccionário, mas nem sequer dele discordava com a veemência de Velo.

– Hoje, à distância de meio século, como avalia Henrique Galvão e o general Humberto Delgado, figuras que conheceu e com quem conviveu no exílio brasileiro?
– A imagem do Henrique Galvão revolucionário antifascista distorce a realidade. Foi desde a juventude um admirador de Salazar. Quadro de confiança do regime, foi comissário da Exposição Colonial, director da Emissora Nacional, governador da Huíla. Ambicioso, aspirava a ser governador-geral de Angola. Frustrado por não ter atingido essa meta, passou a conspirar contra a ditadura. Incialmente impressionou-me. Era um espírito culto, tinha talento, escrevia bem, parecia íntegro e sincero. Mas, ao chegar ao «Santa Maria», a minha decepção foi grande.
Percebi logo que Velo e Soutomaior eram os líderes reais do DRIL. Com a aprovação dos espanhóis, sugeri que transmitisse do barco uma proclamação ao povo português. Redigi um texto que lhe submeti: um documento impregnado de romantismo revolucionário infantil. Galvão propunha-se a destruir a ordem social e económica fascista, realizar a reforma agrária e a reforma urbana, liquidar a classe dominante, abrir ao «ultramar as portas da liberdade».
A tomada do «Santa Maria» era apresentada como a primeira acção militar das forças sob o seu comando e o DRIL como o núcleo do «futuro exército de libertação de Portugal e Espanha». Eu sabia que ele não aceitaria a palavra independência na referência ao futuro das colónias. Mas a sua vaidade, ânsia de protagonismo e glória foi mais forte do que o seu sentimento conservador. Assinou a mensagem que foi transmitida através do «Estado de S. Paulo» e divulgada em dezenas de países. Entretanto, dias depois de chegar ao Brasil, Galvão arrancou a máscara. O início da luta armada em Angola foi determinante para a sua mudança de atitude.
Num encontro na União dos Estudantes, em São Paulo, manifestou-se contra a independência das colónias, assumindo posições racistas que chocaram a juventude brasileira. As divergências sobre a questão colonial foram aliás decisivas para o rompimento com Humberto Delgado, ocorrido semanas depois. Nos anos seguintes – morreu em 1970 – assumiu posições ostensivamente reaccionárias, marcadas por um anticomunismo anacrónico.
Pergunta-me qual a minha «avaliação» de Humberto Delgado. Escrevi muito sobre ele e uma resposta breve é pouco esclarecedora. No general, as suas grandes qualidades – inteligência, sentido da honra, tenacidade na luta, lealdade, ausência de espírito rancoroso e uma coragem espartana – coincidiam com defeitos e insuficiências que muito o prejudicaram como dirigente político. Deixava transparecer uma ambição com facetas infantis, era vaidoso, exibicionista, autoritário, conflituoso e não tinha o senso do ridículo.

Politicamente, era conservador sem disso tomar consciência. No Brasil, após um começo desastroso, deixou o país rumo a um fim trágico e envolvido pelo afecto e pela simpatia de quase todos os quadros responsáveis da oposição antifascista. É importante assinalar que defendeu sempre o direito dos povos das colónias à autodeterminação e à independência.

– A aventura do «Santa Maria» está de algum modo ligada ao assalto às prisões de Luanda, a 4 de Fevereiro de 1961, início da luta armada em Angola. Pensa que a acção levada a cabo pelo DRIL contribuiu para a denúncia do fascismo português e para chamar a atenção para a situação nas colónias?
– O assalto ao «Santa Maria» não foi o desfecho de um projecto revolucionário. Mas contribuiu decisivamente para chamar a atenção de dezenas de milhões de pessoas em todo o mundo para o fascismo e o colonialismo português. Esse o grande mérito da aventura do DRIL. Dirigentes do MPLA disseram-me em Conakry que a decisão de atacar as prisões de Luanda no 4 de Fevereiro foi inseparável da concentração de jornalistas estrangeiros em Angola no final de Janeiro.

– O Miguel, finda a aventura do «Santa Maria», viaja do Brasil para Conakry e ali conhece Amílcar Cabral e outros dirigentes nacionalistas africanos. Qual era o objectivo dessa viagem e como se passaram ali as coisas?
– A ideia era transferir para África o núcleo de comandos que participara na tomada do «Santa Maria». Em Conakry, após um encontro com Amílcar Cabral, mantive contactos com os embaixadores da Jugoslávia e da União Soviética com vista eventual obtenção de vedetas armadas que nos permitissem interceptar os transportes de tropas portugueses que seguiam para Angola. O plano era expressão daquilo a que Lenine chamou o esquerdismo, doença infantil do comunismo. Recordando a iniciativa, mais do que a minha irresponsabilidade, o que me surpreende hoje é o facto de esses diplomatas me terem recebido e escutado com atenção... O comando do DRIL tinha-se, aliás, desagregado quando semanas depois voltei ao Brasil.

– Essa viagem a África e o encontro com revolucionários africanos foram importantes para si e para o seu posterior percurso como revolucionário?
– O encontro com dirigentes do MPLA e do PAIGC ficou a assinalar um terramoto interior. As semanas de Conakry desencadearam em mim uma reflexão simultaneamente tempestuosa e serena. Ao regressar ao Brasil não era o mesmo jovem que concebera planos loucos a serem executados pelos companheiros do DRIL. No livro de memórias a que me referi evoco a viragem que me levou a contemplar o mundo e o comprometimento revolucionário sob outra perspectiva. Amílcar Cabral foi de todos os dirigentes africanos que então conheci o que mais me impressionou. Senti que me tratava como se fosse um velho camarada, não obstante eu ter esboçado um projecto irresponsável. Foi o início de uma relação de confiança, amistosa, reforçada pelo contacto que mantivemos através da troca de cartas. Numa homenagem à sua memória, em Lisboa, afirmei, parafraseando um discurso seu, que «flores vermelhas, como o sangue dos mártires africanos, e outras, com o verde terno da esperança, cresceram já sobre o seu túmulo». As suas ideias e o seu exemplo adquiriram a consistência do que é imortal. O legado de Amílcar Cabral tornou-se património da humanidade.
Para terminar, permita que evoque um episódio. Pouco depois de regressar de África, procurei o representante do Partido Comunista Português no Brasil, que era então Álvaro Veiga de Oliveira, e disse-lhe o que me pareceu útil sobre a minha ruptura com o esquerdismo romântico. Eu lera em Conakry, no «Avante!», o documento em que o PCP anunciava uma nova estratégia que deveria desembocar no levantamento nacional, numa desejada insurreição popular armada. Lembro-me das palavras finais que então pronunciei: «Vou lutar com os comunistas pelo tempo adiante. Podem contar comigo para sempre». Foi há quase 50 anos.

ENTREVISTA DE ALBERTO LOPES
Texto original em AlentejoPopular em http://www.alentejopopular.pt/noticias.asp?id=6036
Veja o Blog Completo do Mafarrico em www.mafarricovermelho.blogspot.com

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