A reconstrução revolucionária do PCB:

A reconstrução revolucionária do PCB:
balanço da resistência até a Conferência de Reorganização de 1992
 
por Edmilson Costa*
“Um partido comunista não pode, em nome de uma suposta democracia abstrata e acima das classes, abdicar do seu papel revolucionário e assumir a posição de freio dos movimentos populares, de fiador de um pacto com a burguesia, em que sejam sacrificados os interesses e as aspirações dos trabalhadores ... Não podemos, pois, compactuar com aqueles que defendem "evitar tensões".

1. Introdução

O processo de reconstrução revolucionária do Partido Comunista Brasileiro (PCB) pode ser considerado um dos marcos mais significativos da história dos comunistas do País, além de um exemplo importante para o movimento comunista internacional. Isso porque o PCB, a exemplo da Fênix mitológica, teve a capacidade de renascer das cinzas após os duros golpes sofridos pela organização no início da década de 90, como a queda da União Soviética e a ofensiva do núcleo dirigente do partido para extinguí-lo. Essa jornada foi realizada a partir da resistência da militância e dos dirigentes intermediários que, nas mais adversas condições do início da década de 90, optaram por continuar comunistas e reconstruir o histórico partido dos comunistas brasileiros.

No entanto, o legado mais surpreendente desse processo foram os resultados políticos e orgânicos alcançados pelo PCB nestes últimos 20 anos. Em duas décadas de reconstrução revolucionária, o PCB se transformou novamente numa organização nacional, de Rondônia, no extremo Norte do País, ao Rio Grande do Sul, com larga autoridade política junto às forças de esquerda e revolucionárias, resgatou as tradições revolucionárias do PCB, e ainda foi capaz de elaborar uma formulação estratégica e tática da revolução brasileira reconhecida por todos, a partir do estudo aprofundado da realidade contemporânea do capitalismo no Brasil e no mundo, da estrutura das classes sociais, bem como do papel do Estado brasileiro e seu aparato de dominação.



Enquanto vários partidos comunistas no mundo se auto-extinguiam, outros mudavam de nome, submergiam diante da realidade, se adaptavam ao reformismo social-democrata no Leste Europeu e em várias partes do mundo, ao mesmo tempo em que o grande capital revelava sua verdadeira face, mediante uma ofensiva predatória contra diretos, salários e garantias dos trabalhadores, os comunistas brasileiros iniciavam um longo, difícil, paciente e determinado processo de reorganização, com as peculiaridades de um país de dimensões continentais como o Brasil.

Em outras palavras, a reorganização do PCB pode ser considerada uma grande jornada de lutas tanto do ponto de vista político, orgânico e jurídico, cheia de heroísmo de militantes anônimos nas várias regiões do País. De Norte a Sul do Brasil, centenas de militantes, viajando de carro, de ônibus, de avião, de barco, percorreram o País, batendo de porte em porta, de forma a reorganizar o Partido e atender as exigências da Justiça Eleitoral para resgatar a legalidade do Partido.

Muita gente duvidava da viabilidade do PCB, afinal os golpes sofridos pelo Partido foram duros. Primeiro a queda da URSS e dos países do Leste, o que viria atingir em cheio o PCB por ser este partido ligado historicamente à União Soviética; depois, a saída dos liquidacionistas para fundar outra organização política[1]; Vale lembrar que saíram do partido a maioria dos integrantes do Comitê Central, com toda a estrutura material, os deputados, parte dos sindicalistas e muitos dirigentes regionais que ingenuamente acreditavam que o novo partido seguiria sendo socialista.

Além disso, a conjuntura nacional e internacional era muito adversa: os capitalistas de todo o mundo e, especialmente do Brasil, comemoravam excitados a enorme derrota das primeiras experiências socialistas, bem como os seus meios de comunicação realizavam campanha anticomunista permanente; quem ousava qualquer resistência era tratado como dinossauro. Os principais jornais do País e emissoras de televisão procuravam desqualificar os camaradas que decidiram ficar no partido, chamando-os de ortodoxos, jurássicos, atrasados, avessos à modernidade.

Muito companheiros, desanimados, decidiram militar em outras organizações, outros simplesmente foram para a casa, cabisbaixos, porque imaginavam ser impossível a reconstrução do PCB naquela conjuntura tão adversa. Além disso, tinha ainda as exigências draconianas da Lei Eleitoral, cuja norma estabelecia que, para o partido retomar sua legalidade, era necessário estar organizado em no mínimo nove Estados e, em cada Estado, em 20% das cidades e, em cada cidade, deveria filiar um determinado percentual dos eleitores. Portanto, foi nesse ambiente que a militância comunista realizou a tarefa de reconstruir o partido histórico dos comunistas brasileiros.

2. Os antecedentes da crise

A crise que envolveu o PCB no início da década de 90 foi apenas o desfecho de um processo que vinha se arrastando desde a segunda metade dos anos 70, quanto o Comitê Central ainda estava no exílio. Isolados entre várias regiões do planeta, sem um trabalho efetivo de direção coletiva, sem vínculos com a militância interna e com uma parcela expressiva bastante influenciada pelo eurocomunismo, as divergências no Comitê Central eram grandes e só não chegavam aos militantes no Brasil em função da censura e das dificuldades naturais de comunicação entre uma direção no exílio a militância no interior do País.

Praticamente existiam três blocos no interior do Comitê Central: os eurocomunistas, que formulavam a política geral; o centro pragmático, formalmente em maioria, mas influenciados pelos eurocomunistas e que buscavam uma transição moderada da ditadura no Brasil; e aqueles que seguiam a orientação de Prestes, em minoria na direção nacional. O longo exílio não só os afastou da realidade brasileira, como permitiu um liberalismo orgânico, que possibilitou infiltrações e levou às quedas e ao assassinato de um terço do Comitê Central, entre os quais os que voltaram ao País na clandestinidade em 1974-75. Além disso, tratava-se de um Comitê Central em que a grande maioria, apesar de lideranças políticas e operárias antes do golpe, estava teoricamente despreparada para a nova conjuntura brasileira e as tarefas da luta de classe daquele período[2].

Com a anistia e a volta do Comitê Central e do secretário geral, Luis Carlos Prestes ao Brasil, a militância começou a tomar conhecimento não só das divergências que se cristalizara no exterior, como assistia estarrecida a uma orientação política inteiramente dissociada da realidade. Enquanto no País ocorria um ascenso da luta de massas, liderada pela classe operária, a partir das greves dos metalúrgicos do ABC, a direção do PCB operava como bombeiro da luta de classe, orientando a militância no sentido de não acirrar as contrações de classe, porque ainda estava aferrada à política de Frente Democrática [3] (correta para o período anterior às greves, mas inteiramente conservadora para aquele momento da luta de classes), e temia que a luta social pudesse acarretar um retrocesso institucional alcançado até aquele momento.

Tratava-se de uma leitura da realidade atípica para um partido revolucionário, pois os comunistas sempre acreditaram que é a luta de classes o elemento central para o processo de mudanças. Ora, num momento em que a classe operária se levantava em todo o País contra o modelo econômico, clamando por liberdades democráticas, o Comitê Central do PCB estava na contramão dos acontecimentos, insistindo numa frente democrática que a própria luta operária tinha colocado num outro patamar.

Essa leitura não era fruto da ignorância dos dirigentes, mas estava influenciada pelo eurocomunismo, que privilegiava a luta parlamentar e institucional como forma de obter as transformações. O PCB pagou um alto preço por essa orientação desastrosa, pois ficou afastado das lutas sociais e abriu espaço para o surgimento de outras organizações dos trabalhadores, como o PT (Partido dos Trabalhadores) e a CUT (Central Única dos Trabalhadores) e isolou o PCB da classe operária e dos trabalhadores por cerca de duas décadas.

É bem verdade, como já foi notado, que nem toda a direção nacional do PCB compartilhava com essa orientação: o próprio secretário-geral, Luis Carlos Prestes tinha uma posição diferente, mas estava em minoria no Comitê Central. Alguns meses após voltar ao Brasil, Prestes lança a Carta aos Comunistas, um documento em que faz duras críticas aos membros do Comitê Central, ao afirmar que a maioria dos seus membros não tinha mais condições de conduzir a luta de classes no País, estavam dissociados da realidade brasileira e buscavam transformar o partido num instrumento dócil para legitimar o regime:

“Um partido comunista não pode, em nome de uma suposta democracia abstrata e acima das classes, abdicar do seu papel revolucionário e assumir a posição de freio dos movimentos populares, de fiador de um pacto com a burguesia, em que sejam sacrificados os interesses e as aspirações dos trabalhadores ... Não podemos, pois, compactuar com aqueles que defendem "evitar tensões", freando a luta dos trabalhadores em nome de salvaguardar supostas alianças com setores da burguesia. Ao contrário, sem cair em aventuras, é hoje, mais do que nunca, necessário contribuir para transformar as lutas de diferentes setores de nosso povo em um poderoso movimento popular, bem como é dever dos comunistas tomar a iniciativa da luta pelas reivindicações econômicas e políticas dos trabalhadores, visando sempre alcançar a derrota da ditadura e a conquista de uma democracia em que os trabalhadores comecem a impor sua vontade”.[4]

Em sua carta, Prestes faz ainda duras críticas ao funcionamento do Comitê Central, à indisciplina e à confusão reinante na direção e constata a falta de sintonia entre o Comitê Central e a realidade brasileira: “A orientação política do PCB está superada e não corresponde à realidade do movimento operário e popular do momento que hoje atravessamos. Estamos atrasados no que diz respeito à análise da realidade brasileira e não temos respostas para os novos e complexos problemas que nos são agora apresentados pela própria vida, o que vem sendo refletido na passividade, falta de iniciativa e, inclusive, ausência dos comunistas na vida política nacional de hoje”. Finalmente, Prestes alerta para o fato de que o Comitê Central, para defender sua política conciliadora, costuma identificar qualquer posição ou atuação combativa nas lutas dos trabalhadores como “esquerdismo” e “golpismo”. E, num gesto dramático, Prestes abandona o Partido e apela aos comunistas para tomar o destino do PCB em suas mãos.

No entanto, no momento em que o agora ex-secretário geral abandona o partido e apela às bases, abre espaço para que a maioria do Comitê Central se afirmasse como defensora da unidade do Partido e acusasse Prestes de indisciplinado e de desrespeitar as instâncias partidárias. Como se sabe, os comunistas operam tendo como norma orgânica o centralismo democrático. Romper com o partido e chamar à rebelião das bases era o pretexto que os membros do Comitê Central queriam para isolar Prestes e o acusar de divisionista. Isso explica porque o apelo de Prestes não teve grande ressonância dentro do Partido. Possivelmente, se o secretário-geral, com a autoridade política e moral que possuía junto à militância, tivesse resistido no interior do próprio do partido e conclamasse as bases à resistência contra a orientação política do Comitê Central, teria derrotado o velho Comitê Central e reconstruído o partido em novas bases, como o fizeram uma década depois os dirigentes intermediários e a militância quando os liquidacionistas tentaram acabar com o Partido em 1992.

A saída de Prestes representou a consolidação de uma linha política de conciliação de classes por toda a década de 80, fato que iria resultar enormes prejuízos orgânicos, políticos e ideológicos ao partido. Com a legalidade, em 1986, o Partido aprofundou a linha de conciliação e se transformou numa organização institucionalista e eleitoreira. Para se ter uma idéia, nas eleições para o governo de São Paulo e do Rio de Janeiro, a direção do PCB apoiou em São Paulo o empresário Antônio Ermírio de Moraes e, no Rio de Janeiro, Wellington Moreira Franco[5], o que gerou enorme descontentamento entre as bases. No campo sindical, apesar de ter participado do Congresso Nacional das Classes Trabalhadores (Conclat) com grande peso, evento que marcou a reorganização do movimento sindical, não se incorporou à formação da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e passou a realizar alianças preferenciais com notórios pelegos e, assim, foi perdendo a autoridade política junto aos trabalhadores.





Edmilson Costa é doutor em economia pela Unicamp, com pós-doutorado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da mesma instituição. É autor de Imperialismo (Global Editora, 1987); A Política Salarial no Brasil (Boitempo Editorial, 1987); Um Projeto para o Brasil (Tecno-Científica, 1998); A Globalização e o Capitalismo Contemporâneo (Expressão Popular, 2009) e A Crise Econômica Mundial, Globalização e o Brasil (no prelo). O autor integrou o comando do Movimento Nacional em Defesa do PCB e hoje é membro do Comitê Central do Partido e de sua Comissão Política Nacional, sendo atualmente responsável pela Secretaria de Relações Internacionais. É diretor de pesquisa do Instituto Caio Prado Jr. e um dos editores da revista Novos Temas. 
 
 

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