A batalha da memória

O fascista Carneiro Pacheco e a Mocidade portuguesa
A batalha da memória


"Na nossa época, marcada pelo aprofundamento da crise global do capitalismo, em que as liberdades, os direitos dos trabalhadores, as conquistas sociais, a independência dos povos, a própria dignidade humana, estão a ser postos em causa pela voracidade dos grandes interesses financeiros, de novo a pulsão fascista desponta, com outros métodos e roupagens."


Têm-se multiplicado ultimamente as edições, em destaque no escaparate das livrarias e das grandes superfícies, que revisitam o tempo histórico de marca fascista. Grande parte com base em trabalhos académicos, a pretexto de efemérides, ou correspondendo à curiosidade sobre episódios de bastidores ou detalhes da vida privada de protagonistas, num «voyeurismo» muito fomentado, a história vai sendo reescrita, à feição dos interesses da classe dominante.

Há, sem dúvida, relevantes e valiosas excepções, mas a tendência mais forte, mais divulgada, e promovida pelos mercados da comunicação, é a do discurso que branqueia o passado de opressão, violência e submissão que o fascismo representa.

Abundam os registos biográficos de Salazar e de Caetano, da autoria de serventuários e epígonos, tendo alguns textos chancela universitária, relatos e «cronologias» da época, onde se pretende historiar a polícia política e mesmo alguns torcionários, a par de amáveis descrições do quotidiano, em todos se identificando traços comuns: suavizar as brutalidades, humanizar os seus responsáveis, omitir as causas, desideologizar o curso histórico, recuperar o bem do passado por oposição ao mal do presente.



Eles também sabem que não há futuro sem memória. Nada melhor, pois, para a direita do que apagar e manipular a memória para condicionar o presente e modelar o futuro.

1. Uma das abordagens mais comuns é a de que a ditadura de Salazar não era fascista.Tratar-se-ia antes de um regime autoritário, musculado, mas longe das características do fascismo italiano ou alemão.

Deixemos de parte o facto de o retrato de Mussolini ornar a sua secretária, bem visível em dias de entrevista, e de ter sido decretado luto nacional de três dias pela morte de Hitler.

Na verdade, o Estatuto do Trabalho Nacional, assim como o Fuero del Trabajo, imposto por Franco, ou a Charte du Travail, assinada por Pétain, máximo responsável do governo colaboracionista de Vichy, entre outros, inspiram-se em lei idêntica da Itália de Mussolini, a Carta del Lavoro, na sua pretensão de decretar a «paz social» e reduzir os sindicatos à obediência. Modelo idêntico foi o da corporativização da actividade económica.

Na verdade, a Legião Portuguesa, corpo armado e uniformizado, foi criada para expressamente enfrentar a «ameaça» comunista, tal como as suas congéneres alemã e italiana e, como estas, depois dos ímpetos iniciais, foi-lhe cerceada a autonomia e subordinada à cadeia de comando militar.

Na verdade, os partidos políticos foram oficialmente extintos – o PS aceitou a sua auto-dissolução em 1933, assinada por Ramada Curto. Só o Partido Comunista Português recusou tal desígnio e continuou a luta na clandestinidade. Foi criada a União Nacional, ganhadora folgada e por vezes concorrente única de todas as «eleições». Nas ditaduras coevas, além da italiana e da alemã, ainda antes da Grande Guerra, era esse o modelo, na Áustria, de Dolfuss e depois de Schuschnigg, bem como na Polónia, de Pilsudsky, na Grécia, de Metaxas, na Hungria, de Horty, na Espanha, de Franco, todos oficiais generais (como em Portugal o Presidente Carmona, candidato único, legitimado inicialmente em eleição directa). Como foi esse o modelo na França do Marechal Pétain, na Roménia, do Marechal Antonescu, ou nas entidades nacionais criadas pelos nazis, de que são exemplo a Croácia, de Ante Pavelic, ou a Eslováquia, presidida por Monsenhor Tiszo.

Na verdade, foi criada a censura permanente sobre todas as publicações, em geral exercida por militares, como nas outras ditaduras, e que Salazar explicava com a necessidade de «antes de tudo evitar preventivamente que os meios de publicidade causem dano social.»(1)

 Ou seja: nos anos 20 e 30, correspondendo ao ascenso da luta dos trabalhadores e à consolidação da União Soviética, irromperam em toda a Europa ditaduras de carácter fascista, protectoras dos interesses do grande capital, com idêntica organização do Estado, com um fundo doutrinário de apelo mais nacionalista ou mais cruamente racista, utilizando as hierarquias religiosas e militares. (2)

No entanto, apesar destes traços comuns serem determinantes, encontra-se numa recente biografia de Salazar esta pérola teórica:
«Equiparar Estado Novo e fascismo suscita dificuldades óbvias: entre outras, destacam-se a ausência de uma mobilização de massas, a natureza moderada do nacionalismo português, a selecção cuidadosa e, em última análise, apolílica da elite restrita que liderava o País, a inexistência de um movimento forte da classe trabalhadora e a rejeição da violência como meio de transformação da sociedade».
(3)

Se tivermos presente as aparatosas e massivas manifestações, mobilizadas por legionários e caciques, com recurso a modernas técnicas de propaganda, que marcaram as primeiras décadas da ditadura; a legislação colonial que oprimia os «indígenas» africanos; a selecção ideológica dos governantes, todos fiéis do regime, onde nunca se vislumbrou um «puro tecnocrata», a par da demissão compulsiva de professores democratas da Universidade; a brutal e permanente repressão dos movimentos de trabalhadores dos campos e das fábricas; a prisão de milhares de pessoas, a tortura e a morte de tantos portugueses, bem se pode dizer que nem um dos argumentos colhe...

 

 Curiosamente, são de Salazar as palavras:
«Não sou nem posso considerar-me um ditador.»(4)

«Vós sabeis que este regime a que ainda hoje chamam Ditadura, e agora carregado com o apodo de fascista, é brando como os nossos costumes, modesto como a vida da Nação, amigo do trabalho e do povo». (5)

Dir-se-ia que o biógrafo se aproxima do biografado na caracterização do regime que oprimiu Portugal durante 48 anos.
 

Mas só num regime totalitário se poderia escrever uma afirmação como esta (Decreto n.º 21103, de 15/4/32, Ministério da Instrução Pública): «O Estado, sem se arrogar a posse exclusiva de uma verdade absoluta, pode e deve definir a verdade nacional – quer dizer, a verdade que interessa à Nação» (6)

2. Outra abordagem, que ganhou notariedade, defende que a ditadura portuguesa não era tão brutalmente repressiva como a de Hitler, de Mussolini ou de Franco.
 
Em vários autores, em geral universitários, que têm analisado a actividade da PIDE, se podem ler avaliações assim:
«O regime português conseguiu um resultado óptimo ...//... com um número exíguo de assassínios políticos e de prisões»;
«O sistema caracteriza-se por um nível relativamente baixo de violência política ...//... e a revelar um elevado grau de racionalidade política nesta esfera, tentando alcançar um óptimo de terror, e não um cru máximo de terror»...;
«A repressão, embora sistemática, era comedida e racional, no sentido de bem proporcionada às necessidades e aos fins»;
«..., não foi uma repressão de massas, limitando-se a atingir opositores»...
«(A PVDE) era mais uma arma preventiva... que só quando se revelava ineficaz a sua capacidade persuasiva e educadora é que intervinha, em último recurso, de forma punitiva, castigando o que era considerado prevaricador, desencorajando outros actos de desobediência, instalando o medo e convidando ao silêncio e à resignação»;
«O Regime era autoritário e não totalitário»;
(7)
«Um elemento da PIDE/DGS 'confessou' que quando entrava ao serviço se modificava, esquecendo crenças, valores, amizades»;
«...Adelino Tinoco era um bom pai, Henrique Sá e Seixas um marido terno para a sua mulher cega e José Sacchetti... era um dandy perfumado, frequentador da melhor sociedade de Coimbra».
(8)

Poder-se-ia continuar as citações, mas todas conduzem a duas linhas de fundo: que a PIDE era uma polícia mais preventiva do que repressiva e que a repressão, em Portugal, estava longe de ser tão violenta como em outros países de regime fascista.
 
Trata-se duma mistificação e duma falsificação histórica como é evidente, mas que vai fazendo o seu percurso.
 
A realidade foi outra: medo generalizado na população, uma extensa e intimidatória rede de informadores, seis milhões de cidadãos fichados ao longo de 48 anos, dezenas de milhares de presos políticos, a maior parte seviciados e torturados, um sem número de mortos e dos que perderam a saúde para sempre. As cadeias de Caxias, Aljube, Angra do Heroísmo, Peniche, as sedes da PIDE, em Portugal, e nas colónias a Machava, em Moçambique, o Campo de S. Nicolau, em Angola, o Tarrafal, mais tarde designado por Chão Bom, em Cabo Verde, entre outras, constituem um universo de crimes e de terror ainda pouco conhecido e muito esquecido.

A violência foi utilizada na proporção das necessidades da ditadura.

O fascismo mais não é do que «a ditadura terrorista do capital financeiro». (9)


3. Nesta historiografia difusa que incide sobre o passado fascista, somam-se os livros de recorte biográfico de alguns protagonistas, Salazar, Caetano, entre outros, da autoria de investigadores, mas também de compartes ou simples fâmulos. Encontram-se livros com centenas de páginas, de extensas e minuciosas descrições da vida dos ditadores e seus áulicos, centradas nos indivíduos, nas suas características pessoais, na árvore genealógica, nos jogos de poder e nas circunstâncias da vida, sem uma única vez as correlacionar com os interesses de classe em conflito, a evolução económica, a vida do povo, sem uma única referência às lutas operárias, camponesas, estudantis, ao mundo da cultura e à intervenção marcante de escritores e artistas, ou às farsas eleitorais.

Nesta tendência individualizante, hoje corrente, será útil lembrar um texto de Marx e Engels:
«A produção das ideias, das representações e da consciência está antes de tudo directa e intimamente ligada à actividade material dos homens. É a linguagem da vida real. As representações, o pensamento, o comércio intelectual dos homens surgem, ainda aqui, como a emanação directa do seu comportamento material ...//... São os homens os produtores das suas representações, das suas ideias, mas os homens reais, actuantes, tal como estão condicionados por um desenvolvimento determinado das suas forças produtivas e das relações que lhes correspondem, incluindo as formas mais vastas que essas forças e relações podem tomar. A consciência nunca pode ser outra coisa senão o ser consciente (das bewusste Sein) e o ser dos homens é o seu processus de vida real.»
(10).


4. Na luta das ideias a memória é um factor estruturante. Não é um campo neutro e por isso tantos se ocupam a apagar, a rasurar, a reescrever, a desrespeitar e a violentar a verdade histórica.


Tantas vidas, tantos sonhos, tantas lutas pela emancipação humana e social, merecem de todos nós mais do que indignação, exigem um papel mais activo.

Na nossa época, marcada pelo aprofundamento da crise global do capitalismo, em que as liberdades, os direitos dos trabalhadores, as conquistas sociais, a independência dos povos, a própria dignidade humana, estão a ser postos em causa pela voracidade dos grandes interesses financeiros, de novo a pulsão fascista desponta, com outros métodos e roupagens.

Há uma batalha da memória por fazer.


Notas
(1) Entrevista a Le Figaro, 2 e 3 de Setembro de 1958, in «Discursos», Volume VI.
(2) Na mesma época se ergueu o militarismo japonês e se multiplicaram as ditaduras na América Latina.
(3) «Salazar», de Filipe Ribeiro de Menezes, ed. D. Quixote, p. 187.
(4) «Discursos», Volume VI, p. 38.
(5) Entrevista ao Daily Telegraph em 5 de Agosto de 1936, reproduzida na mesma data no Diário de Notícias.
(6) Citado em «O nosso século é fascista – o mundo visto por Salazar e Franco», de Manuel Loff.
(7) Afirmações colhidas em obras de Hermínio Martins, Manuel de Lucena, Manuel Braga da Cruz e Maria da Conceição Ribeiro, citadas em «A História da PIDE», de Irene Flunser Pimentel, ed. Temas e Debates, pp. 18-20.
(8) «Biografia de um inspector da PIDE», de Irene Flunsen Pimentel, ed. A Esfera dos Livros, p. 17.
(9) In «Dicionário Filosófico», de M. M. Rosental e P. F. Iudin, ed. Estampa, 1972.
(10) «A Ideologia Alemã», de Marx e Engels.




Texto publicado originalmente na Revista O Militante



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