Obras Escolhidas de Álvaro Cunhal – Tomo III: O Rumo à Vitória
Revisitando Alvaro Cunhal
Obras Escolhidas de Álvaro Cunhal – Tomo III: O Rumo à Vitória
Por Francisco Melo
Publicam-se neste tomo III das Obras Escolhidas de Álvaro Cunhal três textos fundamentais para a compreensão do processo revolucionário que levaria ao derrube da ditadura fascista: Rumo à Vitória, de Abril de 1964; Relatório da Actividade do Comité Central ao VI Congresso, de Setembro de 1965; e Contribuição para o Estudo da Questão Agrária, de Fevereiro de 1966.
A importância matricial de Rumo à Vitória em relação aos textos reunidos neste tomo III e as limitações de espaço levam-nos a que centremos nele a nossa atenção.
Rumo à Vitória, apresentado na reunião do Comité Central do PCP de Abril de 1964, é de leitura obrigatória para todos quantos queiram compreender não apenas os objectivos, as formas de luta, a estruturação orgânica, a via que o PCP indicava para a revolução portuguesa, mas o próprio processo histórico da Revolução de Abril.
Por outro lado, Rumo à Vitória é exemplo da fecundidade do marxismo-leninismo como método de análise cientificamente fundado: ele permitiu a Álvaro Cunhal apreender a realidade objectiva no seu devir contraditório específico, definir objectivos, discernir perspectivas de acção, apontar formas e orientações de luta apropriadas à situação concreta, e combater ideias e concepções erróneas, desviantes de uma prática verdadeiramente revolucionária.
Desmentindo com dados e factos a demagógica lamúria fascista sobre «a natural pobreza do país», Álvaro Cunhal mostra que a pobreza e o atraso se deviam à exploração pelos monopólios, pelos latifundiários e pelo imperialismo estrangeiro das riquezas nacionais. Exploração essa que fazia com que as proclamações dos fascistas «de “estarmos a apanhar” os países mais desenvolvidos» — ainda há pouco nos repetiam essa conversa — apenas encobrissem um distanciamento real cada vez maior, colocando Portugal no último lugar da Europa. E como se não bastasse, as classes trabalhadoras e as camadas médias tinham ainda que suportar o fardo tributário que sustentava a máquina militar e burocrática do Estado fascista, o que contudo não impedia o recurso crescente a empréstimos, tornando-se a dívida pública, como acentua Álvaro Cunhal, «um permanente sorvedoiro de recursos». Sorvedoiro que, com determinantes mudadas, continua hoje.
Analisando o desenvolvimento do capitalismo em Portugal, Álvaro Cunhal mostra a particularidade de os monopólios terem resultado não da livre concorrência capitalista, com a consequente centralização e concentração de capitais, mas da utilização do poder coercivo do Estado para, ao serviço das forças reaccionárias do grande capital e dos grandes agrários, esmagar a pequena e média burguesias e reprimir o movimento operário. A «missão histórica da ditadura fascista», instaurada com o golpe militar de 1926, consistiu precisamente em fazer com que os grandes grupos monopolistas, «de braço dado com o imperialismo estrangeiro, se tornassem os senhores omnipotentes da vida portuguesa». Neste processo, papel de relevo teve o desenvolvimento das sociedades anónimas, demagogicamente apresentadas como uma forma de «democratização do capital», criando no pequeno accionista a ilusão de que participa na orientação da «sua» empresa e numa divisão equitativa dos lucros. O que na verdade acontecia, observa Álvaro Cunhal, é que «os grandes capitalistas instalam-se nos corpos gerentes» das sociedades anónimas, «não para trabalharem, mas para receberem desde logo uma parte substancial dos lucros». Assim, um punhado de grandes capitalistas aos «vencimentos» juntam «gratificações» que a si próprios atribuem. E, acrescenta Álvaro Cunhal, esse reduzido número de capitalistas «ainda considera isso pouco», recebendo por isso «verbas complementares sob a forma de “ajudas de custo”, “emolumentos”, “despesas de representação”, etc.» Os gestores de hoje aprenderam bem a lição dos seus homólogos do tempo do fascismo!
Porém, para além destes e de outros mecanismos económicos, os monopólios beneficiavam ainda do apoio e auxílio financeiro directo do Estado fascista. Este, refere Álvaro Cunhal, entregava à aristocracia financeira os recursos do país mediante «a comparticipação do Estado no capital das grandes empresas», dispensando os lucros resultantes e tornando «possível que os grandes capitalistas, arriscando muito pouco», se assenhoreassem de «gigantescos empreendimentos». E acrescenta: «No domínio das finanças públicas, o escândalo vai ao ponto de poupar dos impostos os grandes lucros, ao mesmo tempo que se agravam enormemente os impostos que atingem directamente as classes trabalhadoras e médias.» A este propósito basta pensar no que se passa hoje com os lucros, por exemplo, da banca, para vermos que, se o traje com que o capitalismo se apresenta em público muda, não muda contudo a sua natureza.
Da análise do capitalismo monopolista em Portugal não poderia ser extraída senão a conclusão de que «só a libertação do poder dos monopólios poderá permitir o aproveitamento das riquezas nacionais, o amplo desenvolvimento da economia, a criação de uma base industrial que assegure a independência do país, a eliminação da principal base social da reacção e do fascismo». Ao colocar como seu objectivo central a liquidação do poder dos monopólios, a revolução democrática preconizada revelava o seu claro conteúdo de classe.
Um outro pilar do regime fascista era constituído pelos grandes proprietários fundiários. A concentração da propriedade atingida, no conjunto de Portugal continental, revelava-se bem no facto de que, como anota Álvaro Cunhal, «os 500 maiores proprietários têm mais terra que os 500 000 mais pequenos!» Tal situação determinava a «necessidade urgente de uma reforma agrária» que entregasse a terra aos assalariados rurais e aos camponeses pobres. A expropriação das muito grandes propriedades constituiria, por si só, um benefício imediato para centenas de milhares de trabalhadores da terra em prejuízo de um reduzido número de grandes proprietários. Com a Reforma Agrária, adverte Álvaro Cunhal, eliminava-se «uma das principais bases sociais da reacção e do fascismo».
A centralização e a concentração da riqueza nas mãos dos monopolistas e dos latifundiários tinham como contraponto dialéctico a acumulação da miséria na classe trabalhadora. A ideologia da classe dominante procurava encobrir com o manto da religião tão gritante contradição. Conta Álvaro Cunhal que o padre Santos Carreto, deputado fascista na Assembleia Nacional, chamou a essa contradição «“uma diversidade maravilhosa” criada por Deus»! Porém, descendo do Céu à Terra, o marxismo mostrou, lembra Álvaro Cunhal, «que a jornada de trabalho se divide em duas partes: uma em que o operário produz o valor correspondente ao seu salário (chamado tempo de trabalho necessário), outra em que produz para o capitalista (tempo de trabalho suplementar ou mais-valia). A relação entre a mais-valia e o salário é a chamada “taxa de mais-valia”, que traduz o grau de exploração existente». A «diversidade maravilhosa» nada tinha de criação divina; era simplesmente resultado da muito terrena exploração capitalista do trabalho assalariado. E também nessa exploração a força do Estado fascista intervinha ao serviço do grande capital na sua ânsia de alongar a jornada de trabalho e dentro dela aumentar o trabalho suplementar, de diminuir os salários reais, de incrementar a intensidade e a produtividade do trabalho. Essa desenfreada exploração capitalista exigia, como conclui Álvaro Cunhal, «o melhoramento urgente das condições de vida das classes trabalhadoras», tornado assim «um dos objectivos fundamentais da revolução democrática» e constituindo uma outra clara determinação de classe desta.
Outro ponto que em seguida Álvaro Cunhal aborda é a libertação de Portugal do domínio imperialista. O quadro da dependência era impressionante: «Ao estrangeiro se paga a luz e a lâmpada que nos ilumina, o petróleo que consumimos, o sabão e o sabonete com que nos lavamos, a margarina que comemos, o leite condensado ou o refrigerante que bebemos, muitas portuguesíssimas sardinhas que petiscamos, a louça de que nos servimos, o fósforo que acendemos, o cigarro que fumamos, o bilhete de eléctrico em que nos transportamos, o telefonema que fazemos.»
Ora, a guerra colonial, a partir de 1961, veio agravar ainda mais a submissão de Portugal ao imperialismo. Na verdade, diz Álvaro Cunhal, «se, até recentemente o governo aceitava, permitia e facilitava a penetração imperialista, agora apela desesperadamente para ela». O atraso, o baixo preço das matérias-primas e da força de trabalho eram, como hoje, os apregoados atractivos para o investimento estrangeiro, a quem o governo além disso garantia chorudos lucros com a «estabilidade» do regime, a repressão do Partido Comunista e do movimento operário, a inexistência de liberdade sindical, e a dominação do capital financeiro sobre toda a economia. Os grupos monopolistas, por seu turno, procuravam cada vez mais associar-se com os monopólios internacionais, de quem procuravam obter comparticipações de capital nas suas empresas, financiamentos e formação de empresas mistas. «O capital financeiro, diz Álvaro Cunhal, partilha hoje voluntariamente com o imperialismo a exploração do nosso povo, torna-se um instrumento da dominação crescente de Portugal pelo imperialismo estrangeiro.» Portugal encontrava-se reduzido, prossegue, «à trágica situação de país semicolonial», em que as suas riquezas eram rapinadas, o produto da exploração da classe operária portuguesa ia parar aos bolsos dos milionários ingleses, americanos, alemães, belgas e franceses entre outros, e o país era colocado no fim da escala dos países europeus. E essa perda da independência económica, sublinha Álvaro Cunhal, acarreta «a perda da independência política», visto que com aquela «vêm a intervenção e a influência na política nacional, as exigências de carácter político, diplomático e militar, e o auxílio ao governo fascista que serve os imperialistas».
No quadro da dependência do imperialismo, Álvaro Cunhal evidencia as consequências que teve para Portugal a adesão à EFTA em 1960:
— liquidação da pequena e média empresa, e cada vez maior domínio da economia nacional por um reduzido número de grandes grupos monopolistas;
— agravamento da exploração da classe operária, com a intensificação do trabalho, com o aumento do desemprego, com a diminuição dos salários reais;
— invasão do mercado interno por mercadorias estrangeiras com as quais as nossas indústrias não estão em condições de competir, com a consequente dependência de todo o nosso comércio externo;
— agravamento da crise da agricultura portuguesa, sujeita a medidas discriminatórias e de desfavor em relação aos produtos agrícolas, acentuando a dependência do comércio externo e piorando a situação económica geral;
— invasão renovada de capitais estrangeiros, interligando-se cada vez mais com o capital financeiro português, reforçando a dominação imperialista.
Tudo isto, claro, como sempre, em nome da concorrência e da competitividade! Por outro lado Álvaro Cunhal advertia sobre a eventual adesão ao Mercado Comum: não interessa a Portugal passar do domínio do imperialismo inglês no seio da EFTA para o domínio dos monopólios alemães-ocidentais e franceses no seio do Mercado Comum. Ignorada a advertência, a triste realidade veio dar-lhe razão, conferindo toda a actualidade à exigência então formulada de que fosse o povo português a beneficiar das riquezas nacionais e de que as relações comerciais de Portugal com outros países tivessem por base a independência, a igualdade e o respeito mútuo.
A revolução democrática em Portugal exigia, assim, lutar contra o domínio imperialista, lutar patrioticamente pela verdadeira independência da nossa Pátria. Tal exigência tornava possível já então afirmar inequivocamente que, se derrubado o fascismo, «se deixasse intactas as posições dos imperialistas, não só não se poderia encaminhar Portugal para o progresso e bem-estar como o novo regime democrático em qualquer momento poderia ser apunhalado pelas costas». A história do pós-25 de Abril confirmou tragicamente este lúcido aviso!
Intimamente ligada com a questão da dependência do imperialismo estava a questão colonial. Na verdade, tal como acontecia em Portugal, também nas colónias se verificava uma associação dos imperialistas estrangeiros com os monopólios nacionais, que eram em muitos casos «meros agentes» daqueles. A exploração colonial, além de factor de dependência do imperialismo, fora também historicamente factor de atraso do País. A libertação do jugo do colonialismo português não era apenas um acto de justiça para os povos vítimas dele, mas também uma exigência da libertação do povo português.
A natureza terrorista da ditadura fascista provinha de que os interesses de classe de que era instrumento afrontavam não só os interesses da classe operária e dos trabalhadores, mas também os dos pequenos e médios agricultores, da pequena burguesia urbana e de sectores da média burguesia e da intelectualidade. Derrubar a ditadura e destruir o aparelho de Estado fascista, conquistar a liberdade política surgia, pois, «como um dos objectivos da revolução democrática» e «objectivo central comum do movimento antifascista». Mas o PCP considerava tal conquista também como «um passo necessário» «para alcançar outros objectivos da revolução democrática: a abolição dos monopólios, a Reforma Agrária, a elevação do nível de vida material e cultural das classes laboriosas, a independência nacional, a paz, o reconhecimento à independência dos povos coloniais». E integrada nessa dinâmica a conquista da liberdade política constituía também «uma condição para o desenvolvimento da luta da classe operária pelo socialismo».
Nessa caminhada, a unidade das forças democráticas e patrióticas apresentava-se como um imperativo da situação nacional e tarefa central do Partido. A base fundamental dessa unidade residia na unidade da classe operária e da sua aliança com o campesinato e a pequena burguesia urbana. E, com o desenvolvimento da luta nacional-libertadora nas colónias portuguesas, adquiriu uma importância decisiva a aliança com os respectivos povos. Mas no que se refere ao sistema de alianças, a situação em Portugal também apresentava particularidades. Nomeadamente a inexistência de outros partidos operários e de outros sindicatos além dos fascistas. Sendo o Partido Comunista o único partido operário, a unidade da classe operária, espinha dorsal da unidade antimonopolista e antifascista, existia «no fundamental sob a direcção superior do Partido», traduzindo-se «nas lutas económicas e políticas e nos diversos organismos unitários». E por isso, acentua Álvaro Cunhal, é na «acção de massas que se forja e se consolida a unidade e que se pode conseguir concretizá-la em formas correctas de organização». O Partido, sem pretensões sectárias hegemónicas, que levariam ao seu isolamento, devia prosseguir contudo, dentro do movimento unitário abarcando diversas forças sociais e políticas, «a sua acção independente como Partido marxista-leninista», sem nunca dela abdicar.
E qual a perspectiva revolucionária que então se impunha ao movimento antifascista para derrubar a ditadura fascista e instaurar a democracia? Tal como no IV Congresso em 1946, Álvaro Cunhal indica a necessidade do recurso à força, que resultava do facto de que a ditadura era um «Estado fortemente centralizado», dispondo de «um aparelho militar, policial e judicial cuidadosamente organizado e depurado, em que não existiam «quaisquer liberdades e as mais modestas reclamações» tinham como resposta o desencadear da violência, e em que os «círculos governantes» se mostravam firmemente dispostos a «resistir pelas armas até ao fim». Era o governo fascista que cortava a possibilidade de qualquer solução pacífica. Porém, de que acto de força se tratava? O Partido Comunista, diz Álvaro Cunhal, responde que «é o levantamento nacional, é a insurreição popular, é a luta armada do povo e dos militares revolucionários, vencendo e destruindo o aparelho militar e repressivo fascista.»
Se a insurreição popular era o acto de força necessário, ele não poderia ser confundido «com uma ou várias manifestações de massas por muito grandiosas que sejam», precisa Álvaro Cunhal. A insurreição é o culminar de uma movimentação revolucionária das massas em que as organizações revolucionárias se multiplicam e forjam os seus quadros, capazes de orientar no momento oportuno as massas na procura das armas, de desencadear acções populares violentas e, sublinha Álvaro Cunhal, «na base de uma forte organização ligada às massas populares e com fundas raízes nas forças armadas, decidir o momento do assalto final».
Contra concepções radicalistas e aventureiras pequeno-burguesas, lembrava Álvaro Cunhal, com todo o sentido de responsabilidade revolucionária, que «só numa situação revolucionária e com elevado grau de consciência política e de organização se pode lançar uma insurreição popular vitoriosa». E para esta o ser requer-se ainda que esteja em condições de derrotar o aparelho militar de que o fascismo dispõe, o que só poderá ser conseguido se houver «a participação nela e a neutralização de parte considerável das forças armadas».
Preparar o levantamento nacional requeria, pois, não frases de exaltação pseudo-revolucionária, mas inserir a vertente militar do movimento revolucionário num trabalho quotidiano de desenvolvimento da luta popular que criasse as condições subjectivas em correspondência com a evolução das condições objectivas. Como escreve Álvaro Cunhal, «o único caminho para o levantamento nacional é a luta popular de massas». É nela que se ganham para a acção as várias classes, que da luta económica se passa para a luta política, que de reclamações e reivindicações se desencadeiam greves, que às manifestações se sucedem os confrontos com as forças repressivas, num processo não linear, mas com uma direcção única: o derrube da ditadura. Eis o que escapava aos teorizadores pequeno-burgueses desligados das massas e que só o Partido Comunista, sublinha Álvaro Cunhal, «que vive enraizado nas massas, que acompanha o processo revolucionário no seu conjunto e tem nele um papel determinante», estava em condições de discernir.
Ora, no conjunto do processo revolucionário têm um papel fundamental as lutas reivindicativas da classe operária. É na luta por melhorias salariais e outras reivindicações imediatas, acentua Álvaro Cunhal, que «a classe operária sente diante de si o inimigo, tem consciência de que não está a lutar apenas contra um patrão, um indivíduo, mas contra a classe exploradora e o Estado fascista».
Por isso Álvaro Cunhal vai insistir numa «tarefa central e decisiva» para o desenvolvimento da luta popular de massas: a de organizar. Mas fazer trabalho de organização não é propagandear a sua necessidade, é levá-lo a cabo efectivamente, não só nas organizações do Partido, mas na «organização das lutas económicas e políticas», na «constituição de variados organismos de unidade para conduzirem tais lutas», na «utilização de organizações legais para reforçar o contacto com as massas, alargar o movimento de massas e dirigi-lo no melhor sentido». E salienta: sem trabalho de organização é possível «fazer-se coisas», mas não desencadear e dar continuidade a grandes lutas, elevando-as a um nível superior, sobretudo na perspectiva da condução do movimento popular ao levantamento nacional para derrubar a ditadura.
Ora, se para lançar e mais ainda para dirigir uma grande acção política é necessária uma organização prévia, para «fazer confluir num mesmo caudal todas as forças revolucionárias, todas as forças latentes no povo», realça Álvaro Cunhal, «é necessário criar toda uma ampla e forte organização enraizada nas massas», não bastando «que um pequeno núcleo de direcção política esteja organizado».
Para o Partido estar à altura das suas responsabilidades históricas, Álvaro Cunhal enumera as «tarefas decisivas» cujo cumprimento então se impunha: «O reforço da defesa, um superior trabalho de direcção e a sua continuidade, uma justa política de quadros, o desenvolvimento da organização, o melhoramento da agitação e propaganda, a intensificação do trabalho ideológico, a melhor aplicação dos princípios do centralismo democrático, o estabelecimento de uma firme unidade de pensamento e acção de todo o Partido».
Focaremos a nossa análise nas questões ideológicas, pois, como Álvaro Cunhal acentua, o partido tinha então «diante de si, como tarefa essencial, uma grande batalha ideológica, em defesa dos princípios do marxismo-leninismo, em defesa da sua justa orientação».
Essa batalha tinha como direcções fundamentais o combate ao «esquerdismo e sectarismo, em relação à linha política e táctica», e à «tendência anarco-liberal» em relação «à vida interna do Partido». Esta última tendência foi já amplamente caracterizada no tomo II, pelo que apenas referiremos porque se considerava necessário continuar a lutar contra as manifestações do oportunismo de direita: é que, como sintetiza Álvaro Cunhal, este «tende a reduzir o Partido à passividade», a colocá-lo e à classe operária «a reboque da média burguesia» entregando a esta a «hegemonia no movimento democrático», tende «a refrear a acção das massas populares, a roubar-lhes uma perspectiva revolucionária, a impedir a luta independente do proletariado e do seu Partido».
Mas as tendências então prevalecentes eram as tendências sectárias e esquerdistas que se traduziam na negação de «quaisquer possibilidades de actuação legal» e de qualquer interesse do «trabalho nos Sindicatos Nacionais e outras organizações de massas»; na afirmação de que «a luta económica “está ultrapassada”», que «as manifestações pacíficas de rua» «deram já tudo quanto tinham a dar»; ou condensavam as suas concepções na consigna da «acção directa» para a qual todos os esforços deveriam ser dirigidos e encetando «desde já a preparação técnica da insurreição». Havia mesmo quem afirmasse existirem as condições «para passar directamente do fascismo para o socialismo». A necessidade de lutar contra o esquerdismo, contra o revolucionarismo verbal, resultava de que ele tendia «a reduzir o Partido à actividade dum pequeno grupo ou seita» separado da «classe e das massas», tendia «a refrear o desenvolvimento da luta popular, a lançar a vanguarda em acções precipitadas e aventureiristas, a transformar o Partido num agrupamento subsidiário do radicalismo pequeno-burguês». Por tudo isso, afirma Álvaro Cunhal, «o esquerdismo constitui hoje o perigo principal no nosso Partido».
Concluindo a sua obra, Álvaro Cunhal lembra que «a grande tarefa que se coloca ante o Partido é a união das largas massas populares, de todos os democratas e patriotas, para o derrubamento da ditadura fascista e a realização da revolução democrática e nacional», que só poderá ser lavada até ao fim pelo «proletariado, dirigido pelo seu Partido» o Partido Comunista Português!
Texto publicado originalmente na Revista O Militante ( Orgão teórico do PCP)
O MAFARRICO VERMELHO
Obras Escolhidas de Álvaro Cunhal – Tomo III: O Rumo à Vitória
Por Francisco Melo
Publicam-se neste tomo III das Obras Escolhidas de Álvaro Cunhal três textos fundamentais para a compreensão do processo revolucionário que levaria ao derrube da ditadura fascista: Rumo à Vitória, de Abril de 1964; Relatório da Actividade do Comité Central ao VI Congresso, de Setembro de 1965; e Contribuição para o Estudo da Questão Agrária, de Fevereiro de 1966.
A importância matricial de Rumo à Vitória em relação aos textos reunidos neste tomo III e as limitações de espaço levam-nos a que centremos nele a nossa atenção.
Rumo à Vitória, apresentado na reunião do Comité Central do PCP de Abril de 1964, é de leitura obrigatória para todos quantos queiram compreender não apenas os objectivos, as formas de luta, a estruturação orgânica, a via que o PCP indicava para a revolução portuguesa, mas o próprio processo histórico da Revolução de Abril.
Por outro lado, Rumo à Vitória é exemplo da fecundidade do marxismo-leninismo como método de análise cientificamente fundado: ele permitiu a Álvaro Cunhal apreender a realidade objectiva no seu devir contraditório específico, definir objectivos, discernir perspectivas de acção, apontar formas e orientações de luta apropriadas à situação concreta, e combater ideias e concepções erróneas, desviantes de uma prática verdadeiramente revolucionária.
Desmentindo com dados e factos a demagógica lamúria fascista sobre «a natural pobreza do país», Álvaro Cunhal mostra que a pobreza e o atraso se deviam à exploração pelos monopólios, pelos latifundiários e pelo imperialismo estrangeiro das riquezas nacionais. Exploração essa que fazia com que as proclamações dos fascistas «de “estarmos a apanhar” os países mais desenvolvidos» — ainda há pouco nos repetiam essa conversa — apenas encobrissem um distanciamento real cada vez maior, colocando Portugal no último lugar da Europa. E como se não bastasse, as classes trabalhadoras e as camadas médias tinham ainda que suportar o fardo tributário que sustentava a máquina militar e burocrática do Estado fascista, o que contudo não impedia o recurso crescente a empréstimos, tornando-se a dívida pública, como acentua Álvaro Cunhal, «um permanente sorvedoiro de recursos». Sorvedoiro que, com determinantes mudadas, continua hoje.
Analisando o desenvolvimento do capitalismo em Portugal, Álvaro Cunhal mostra a particularidade de os monopólios terem resultado não da livre concorrência capitalista, com a consequente centralização e concentração de capitais, mas da utilização do poder coercivo do Estado para, ao serviço das forças reaccionárias do grande capital e dos grandes agrários, esmagar a pequena e média burguesias e reprimir o movimento operário. A «missão histórica da ditadura fascista», instaurada com o golpe militar de 1926, consistiu precisamente em fazer com que os grandes grupos monopolistas, «de braço dado com o imperialismo estrangeiro, se tornassem os senhores omnipotentes da vida portuguesa». Neste processo, papel de relevo teve o desenvolvimento das sociedades anónimas, demagogicamente apresentadas como uma forma de «democratização do capital», criando no pequeno accionista a ilusão de que participa na orientação da «sua» empresa e numa divisão equitativa dos lucros. O que na verdade acontecia, observa Álvaro Cunhal, é que «os grandes capitalistas instalam-se nos corpos gerentes» das sociedades anónimas, «não para trabalharem, mas para receberem desde logo uma parte substancial dos lucros». Assim, um punhado de grandes capitalistas aos «vencimentos» juntam «gratificações» que a si próprios atribuem. E, acrescenta Álvaro Cunhal, esse reduzido número de capitalistas «ainda considera isso pouco», recebendo por isso «verbas complementares sob a forma de “ajudas de custo”, “emolumentos”, “despesas de representação”, etc.» Os gestores de hoje aprenderam bem a lição dos seus homólogos do tempo do fascismo!
Porém, para além destes e de outros mecanismos económicos, os monopólios beneficiavam ainda do apoio e auxílio financeiro directo do Estado fascista. Este, refere Álvaro Cunhal, entregava à aristocracia financeira os recursos do país mediante «a comparticipação do Estado no capital das grandes empresas», dispensando os lucros resultantes e tornando «possível que os grandes capitalistas, arriscando muito pouco», se assenhoreassem de «gigantescos empreendimentos». E acrescenta: «No domínio das finanças públicas, o escândalo vai ao ponto de poupar dos impostos os grandes lucros, ao mesmo tempo que se agravam enormemente os impostos que atingem directamente as classes trabalhadoras e médias.» A este propósito basta pensar no que se passa hoje com os lucros, por exemplo, da banca, para vermos que, se o traje com que o capitalismo se apresenta em público muda, não muda contudo a sua natureza.
Da análise do capitalismo monopolista em Portugal não poderia ser extraída senão a conclusão de que «só a libertação do poder dos monopólios poderá permitir o aproveitamento das riquezas nacionais, o amplo desenvolvimento da economia, a criação de uma base industrial que assegure a independência do país, a eliminação da principal base social da reacção e do fascismo». Ao colocar como seu objectivo central a liquidação do poder dos monopólios, a revolução democrática preconizada revelava o seu claro conteúdo de classe.
Um outro pilar do regime fascista era constituído pelos grandes proprietários fundiários. A concentração da propriedade atingida, no conjunto de Portugal continental, revelava-se bem no facto de que, como anota Álvaro Cunhal, «os 500 maiores proprietários têm mais terra que os 500 000 mais pequenos!» Tal situação determinava a «necessidade urgente de uma reforma agrária» que entregasse a terra aos assalariados rurais e aos camponeses pobres. A expropriação das muito grandes propriedades constituiria, por si só, um benefício imediato para centenas de milhares de trabalhadores da terra em prejuízo de um reduzido número de grandes proprietários. Com a Reforma Agrária, adverte Álvaro Cunhal, eliminava-se «uma das principais bases sociais da reacção e do fascismo».
A centralização e a concentração da riqueza nas mãos dos monopolistas e dos latifundiários tinham como contraponto dialéctico a acumulação da miséria na classe trabalhadora. A ideologia da classe dominante procurava encobrir com o manto da religião tão gritante contradição. Conta Álvaro Cunhal que o padre Santos Carreto, deputado fascista na Assembleia Nacional, chamou a essa contradição «“uma diversidade maravilhosa” criada por Deus»! Porém, descendo do Céu à Terra, o marxismo mostrou, lembra Álvaro Cunhal, «que a jornada de trabalho se divide em duas partes: uma em que o operário produz o valor correspondente ao seu salário (chamado tempo de trabalho necessário), outra em que produz para o capitalista (tempo de trabalho suplementar ou mais-valia). A relação entre a mais-valia e o salário é a chamada “taxa de mais-valia”, que traduz o grau de exploração existente». A «diversidade maravilhosa» nada tinha de criação divina; era simplesmente resultado da muito terrena exploração capitalista do trabalho assalariado. E também nessa exploração a força do Estado fascista intervinha ao serviço do grande capital na sua ânsia de alongar a jornada de trabalho e dentro dela aumentar o trabalho suplementar, de diminuir os salários reais, de incrementar a intensidade e a produtividade do trabalho. Essa desenfreada exploração capitalista exigia, como conclui Álvaro Cunhal, «o melhoramento urgente das condições de vida das classes trabalhadoras», tornado assim «um dos objectivos fundamentais da revolução democrática» e constituindo uma outra clara determinação de classe desta.
Outro ponto que em seguida Álvaro Cunhal aborda é a libertação de Portugal do domínio imperialista. O quadro da dependência era impressionante: «Ao estrangeiro se paga a luz e a lâmpada que nos ilumina, o petróleo que consumimos, o sabão e o sabonete com que nos lavamos, a margarina que comemos, o leite condensado ou o refrigerante que bebemos, muitas portuguesíssimas sardinhas que petiscamos, a louça de que nos servimos, o fósforo que acendemos, o cigarro que fumamos, o bilhete de eléctrico em que nos transportamos, o telefonema que fazemos.»
Ora, a guerra colonial, a partir de 1961, veio agravar ainda mais a submissão de Portugal ao imperialismo. Na verdade, diz Álvaro Cunhal, «se, até recentemente o governo aceitava, permitia e facilitava a penetração imperialista, agora apela desesperadamente para ela». O atraso, o baixo preço das matérias-primas e da força de trabalho eram, como hoje, os apregoados atractivos para o investimento estrangeiro, a quem o governo além disso garantia chorudos lucros com a «estabilidade» do regime, a repressão do Partido Comunista e do movimento operário, a inexistência de liberdade sindical, e a dominação do capital financeiro sobre toda a economia. Os grupos monopolistas, por seu turno, procuravam cada vez mais associar-se com os monopólios internacionais, de quem procuravam obter comparticipações de capital nas suas empresas, financiamentos e formação de empresas mistas. «O capital financeiro, diz Álvaro Cunhal, partilha hoje voluntariamente com o imperialismo a exploração do nosso povo, torna-se um instrumento da dominação crescente de Portugal pelo imperialismo estrangeiro.» Portugal encontrava-se reduzido, prossegue, «à trágica situação de país semicolonial», em que as suas riquezas eram rapinadas, o produto da exploração da classe operária portuguesa ia parar aos bolsos dos milionários ingleses, americanos, alemães, belgas e franceses entre outros, e o país era colocado no fim da escala dos países europeus. E essa perda da independência económica, sublinha Álvaro Cunhal, acarreta «a perda da independência política», visto que com aquela «vêm a intervenção e a influência na política nacional, as exigências de carácter político, diplomático e militar, e o auxílio ao governo fascista que serve os imperialistas».
No quadro da dependência do imperialismo, Álvaro Cunhal evidencia as consequências que teve para Portugal a adesão à EFTA em 1960:
— liquidação da pequena e média empresa, e cada vez maior domínio da economia nacional por um reduzido número de grandes grupos monopolistas;
— agravamento da exploração da classe operária, com a intensificação do trabalho, com o aumento do desemprego, com a diminuição dos salários reais;
— invasão do mercado interno por mercadorias estrangeiras com as quais as nossas indústrias não estão em condições de competir, com a consequente dependência de todo o nosso comércio externo;
— agravamento da crise da agricultura portuguesa, sujeita a medidas discriminatórias e de desfavor em relação aos produtos agrícolas, acentuando a dependência do comércio externo e piorando a situação económica geral;
— invasão renovada de capitais estrangeiros, interligando-se cada vez mais com o capital financeiro português, reforçando a dominação imperialista.
Tudo isto, claro, como sempre, em nome da concorrência e da competitividade! Por outro lado Álvaro Cunhal advertia sobre a eventual adesão ao Mercado Comum: não interessa a Portugal passar do domínio do imperialismo inglês no seio da EFTA para o domínio dos monopólios alemães-ocidentais e franceses no seio do Mercado Comum. Ignorada a advertência, a triste realidade veio dar-lhe razão, conferindo toda a actualidade à exigência então formulada de que fosse o povo português a beneficiar das riquezas nacionais e de que as relações comerciais de Portugal com outros países tivessem por base a independência, a igualdade e o respeito mútuo.
A revolução democrática em Portugal exigia, assim, lutar contra o domínio imperialista, lutar patrioticamente pela verdadeira independência da nossa Pátria. Tal exigência tornava possível já então afirmar inequivocamente que, se derrubado o fascismo, «se deixasse intactas as posições dos imperialistas, não só não se poderia encaminhar Portugal para o progresso e bem-estar como o novo regime democrático em qualquer momento poderia ser apunhalado pelas costas». A história do pós-25 de Abril confirmou tragicamente este lúcido aviso!
Intimamente ligada com a questão da dependência do imperialismo estava a questão colonial. Na verdade, tal como acontecia em Portugal, também nas colónias se verificava uma associação dos imperialistas estrangeiros com os monopólios nacionais, que eram em muitos casos «meros agentes» daqueles. A exploração colonial, além de factor de dependência do imperialismo, fora também historicamente factor de atraso do País. A libertação do jugo do colonialismo português não era apenas um acto de justiça para os povos vítimas dele, mas também uma exigência da libertação do povo português.
A natureza terrorista da ditadura fascista provinha de que os interesses de classe de que era instrumento afrontavam não só os interesses da classe operária e dos trabalhadores, mas também os dos pequenos e médios agricultores, da pequena burguesia urbana e de sectores da média burguesia e da intelectualidade. Derrubar a ditadura e destruir o aparelho de Estado fascista, conquistar a liberdade política surgia, pois, «como um dos objectivos da revolução democrática» e «objectivo central comum do movimento antifascista». Mas o PCP considerava tal conquista também como «um passo necessário» «para alcançar outros objectivos da revolução democrática: a abolição dos monopólios, a Reforma Agrária, a elevação do nível de vida material e cultural das classes laboriosas, a independência nacional, a paz, o reconhecimento à independência dos povos coloniais». E integrada nessa dinâmica a conquista da liberdade política constituía também «uma condição para o desenvolvimento da luta da classe operária pelo socialismo».
Nessa caminhada, a unidade das forças democráticas e patrióticas apresentava-se como um imperativo da situação nacional e tarefa central do Partido. A base fundamental dessa unidade residia na unidade da classe operária e da sua aliança com o campesinato e a pequena burguesia urbana. E, com o desenvolvimento da luta nacional-libertadora nas colónias portuguesas, adquiriu uma importância decisiva a aliança com os respectivos povos. Mas no que se refere ao sistema de alianças, a situação em Portugal também apresentava particularidades. Nomeadamente a inexistência de outros partidos operários e de outros sindicatos além dos fascistas. Sendo o Partido Comunista o único partido operário, a unidade da classe operária, espinha dorsal da unidade antimonopolista e antifascista, existia «no fundamental sob a direcção superior do Partido», traduzindo-se «nas lutas económicas e políticas e nos diversos organismos unitários». E por isso, acentua Álvaro Cunhal, é na «acção de massas que se forja e se consolida a unidade e que se pode conseguir concretizá-la em formas correctas de organização». O Partido, sem pretensões sectárias hegemónicas, que levariam ao seu isolamento, devia prosseguir contudo, dentro do movimento unitário abarcando diversas forças sociais e políticas, «a sua acção independente como Partido marxista-leninista», sem nunca dela abdicar.
E qual a perspectiva revolucionária que então se impunha ao movimento antifascista para derrubar a ditadura fascista e instaurar a democracia? Tal como no IV Congresso em 1946, Álvaro Cunhal indica a necessidade do recurso à força, que resultava do facto de que a ditadura era um «Estado fortemente centralizado», dispondo de «um aparelho militar, policial e judicial cuidadosamente organizado e depurado, em que não existiam «quaisquer liberdades e as mais modestas reclamações» tinham como resposta o desencadear da violência, e em que os «círculos governantes» se mostravam firmemente dispostos a «resistir pelas armas até ao fim». Era o governo fascista que cortava a possibilidade de qualquer solução pacífica. Porém, de que acto de força se tratava? O Partido Comunista, diz Álvaro Cunhal, responde que «é o levantamento nacional, é a insurreição popular, é a luta armada do povo e dos militares revolucionários, vencendo e destruindo o aparelho militar e repressivo fascista.»
Se a insurreição popular era o acto de força necessário, ele não poderia ser confundido «com uma ou várias manifestações de massas por muito grandiosas que sejam», precisa Álvaro Cunhal. A insurreição é o culminar de uma movimentação revolucionária das massas em que as organizações revolucionárias se multiplicam e forjam os seus quadros, capazes de orientar no momento oportuno as massas na procura das armas, de desencadear acções populares violentas e, sublinha Álvaro Cunhal, «na base de uma forte organização ligada às massas populares e com fundas raízes nas forças armadas, decidir o momento do assalto final».
Contra concepções radicalistas e aventureiras pequeno-burguesas, lembrava Álvaro Cunhal, com todo o sentido de responsabilidade revolucionária, que «só numa situação revolucionária e com elevado grau de consciência política e de organização se pode lançar uma insurreição popular vitoriosa». E para esta o ser requer-se ainda que esteja em condições de derrotar o aparelho militar de que o fascismo dispõe, o que só poderá ser conseguido se houver «a participação nela e a neutralização de parte considerável das forças armadas».
Preparar o levantamento nacional requeria, pois, não frases de exaltação pseudo-revolucionária, mas inserir a vertente militar do movimento revolucionário num trabalho quotidiano de desenvolvimento da luta popular que criasse as condições subjectivas em correspondência com a evolução das condições objectivas. Como escreve Álvaro Cunhal, «o único caminho para o levantamento nacional é a luta popular de massas». É nela que se ganham para a acção as várias classes, que da luta económica se passa para a luta política, que de reclamações e reivindicações se desencadeiam greves, que às manifestações se sucedem os confrontos com as forças repressivas, num processo não linear, mas com uma direcção única: o derrube da ditadura. Eis o que escapava aos teorizadores pequeno-burgueses desligados das massas e que só o Partido Comunista, sublinha Álvaro Cunhal, «que vive enraizado nas massas, que acompanha o processo revolucionário no seu conjunto e tem nele um papel determinante», estava em condições de discernir.
Ora, no conjunto do processo revolucionário têm um papel fundamental as lutas reivindicativas da classe operária. É na luta por melhorias salariais e outras reivindicações imediatas, acentua Álvaro Cunhal, que «a classe operária sente diante de si o inimigo, tem consciência de que não está a lutar apenas contra um patrão, um indivíduo, mas contra a classe exploradora e o Estado fascista».
Por isso Álvaro Cunhal vai insistir numa «tarefa central e decisiva» para o desenvolvimento da luta popular de massas: a de organizar. Mas fazer trabalho de organização não é propagandear a sua necessidade, é levá-lo a cabo efectivamente, não só nas organizações do Partido, mas na «organização das lutas económicas e políticas», na «constituição de variados organismos de unidade para conduzirem tais lutas», na «utilização de organizações legais para reforçar o contacto com as massas, alargar o movimento de massas e dirigi-lo no melhor sentido». E salienta: sem trabalho de organização é possível «fazer-se coisas», mas não desencadear e dar continuidade a grandes lutas, elevando-as a um nível superior, sobretudo na perspectiva da condução do movimento popular ao levantamento nacional para derrubar a ditadura.
Ora, se para lançar e mais ainda para dirigir uma grande acção política é necessária uma organização prévia, para «fazer confluir num mesmo caudal todas as forças revolucionárias, todas as forças latentes no povo», realça Álvaro Cunhal, «é necessário criar toda uma ampla e forte organização enraizada nas massas», não bastando «que um pequeno núcleo de direcção política esteja organizado».
Para o Partido estar à altura das suas responsabilidades históricas, Álvaro Cunhal enumera as «tarefas decisivas» cujo cumprimento então se impunha: «O reforço da defesa, um superior trabalho de direcção e a sua continuidade, uma justa política de quadros, o desenvolvimento da organização, o melhoramento da agitação e propaganda, a intensificação do trabalho ideológico, a melhor aplicação dos princípios do centralismo democrático, o estabelecimento de uma firme unidade de pensamento e acção de todo o Partido».
Focaremos a nossa análise nas questões ideológicas, pois, como Álvaro Cunhal acentua, o partido tinha então «diante de si, como tarefa essencial, uma grande batalha ideológica, em defesa dos princípios do marxismo-leninismo, em defesa da sua justa orientação».
Essa batalha tinha como direcções fundamentais o combate ao «esquerdismo e sectarismo, em relação à linha política e táctica», e à «tendência anarco-liberal» em relação «à vida interna do Partido». Esta última tendência foi já amplamente caracterizada no tomo II, pelo que apenas referiremos porque se considerava necessário continuar a lutar contra as manifestações do oportunismo de direita: é que, como sintetiza Álvaro Cunhal, este «tende a reduzir o Partido à passividade», a colocá-lo e à classe operária «a reboque da média burguesia» entregando a esta a «hegemonia no movimento democrático», tende «a refrear a acção das massas populares, a roubar-lhes uma perspectiva revolucionária, a impedir a luta independente do proletariado e do seu Partido».
Mas as tendências então prevalecentes eram as tendências sectárias e esquerdistas que se traduziam na negação de «quaisquer possibilidades de actuação legal» e de qualquer interesse do «trabalho nos Sindicatos Nacionais e outras organizações de massas»; na afirmação de que «a luta económica “está ultrapassada”», que «as manifestações pacíficas de rua» «deram já tudo quanto tinham a dar»; ou condensavam as suas concepções na consigna da «acção directa» para a qual todos os esforços deveriam ser dirigidos e encetando «desde já a preparação técnica da insurreição». Havia mesmo quem afirmasse existirem as condições «para passar directamente do fascismo para o socialismo». A necessidade de lutar contra o esquerdismo, contra o revolucionarismo verbal, resultava de que ele tendia «a reduzir o Partido à actividade dum pequeno grupo ou seita» separado da «classe e das massas», tendia «a refrear o desenvolvimento da luta popular, a lançar a vanguarda em acções precipitadas e aventureiristas, a transformar o Partido num agrupamento subsidiário do radicalismo pequeno-burguês». Por tudo isso, afirma Álvaro Cunhal, «o esquerdismo constitui hoje o perigo principal no nosso Partido».
Concluindo a sua obra, Álvaro Cunhal lembra que «a grande tarefa que se coloca ante o Partido é a união das largas massas populares, de todos os democratas e patriotas, para o derrubamento da ditadura fascista e a realização da revolução democrática e nacional», que só poderá ser lavada até ao fim pelo «proletariado, dirigido pelo seu Partido» o Partido Comunista Português!
O MAFARRICO VERMELHO
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