A intolerância na ofensiva: 1-temporada de caça aos ateus


A intolerância na ofensiva:

1-temporada de caça aos ateus


A liberdade de religião é hoje reconhecida universalmente, embora esteja longe de ser em toda parte efetivamente respeitada. Mesmo porque, na prática, são muitos os que militam pela liberdade da própria religião e poucos pela religião dos outros (ou pelo direito alheio de não ter nenhuma). A dificuldade, não apenas filosófica, mas especialmente ético-jurídica está em traçar a linha divisória entre a consciência religiosa enquanto tal e sua exteriorização nas práticas culturais. Nem mesmo os otimistas imaginam ter ocorrido progresso linear no reconhecimento de que a fé é assunto de convicção íntima de cada qual e de que portanto ninguém deveria ser perseguido nem discriminado por causa de suas idéias sobre a religião. Steven Runciman constatou em seu notável The Medieval Manichee. A Study of the Christian Dualist Heresy (há boa tradução mexicana editada pelo Fondo de Cultura Econômica em 1989: Los maniqueos de la Edad Media. Un estudio de los herejes dualistas cristianos), que embora seja “certamente útil para a felicidade de uma sociedade encarar com abertura de espírito as crenças privadas dos demais”, “a tolerância é uma virtude mais social que religiosa”, inacessível àqueles “cuja religião pessoal é muito forte”, pois quem pensa “ter encontrado a chave e o princípio orientador da vida, não pode permitir que seus amigos andem perdidos pelas trevas”. Amigos? Somente num sentido muito lato ou então irônico do termo. Com efeito, “as opiniões a respeito da natureza da ajuda que se deve prestar podem variar desde a persuasão serena e o exemplo brilhante até a espada e o auto da fé”.

As eleições de outubro passado suscitaram múltiplas manifestações de obscurantismo teológico a serviço da caça aos votos. Os candidatos progressistas e culturalmente esclarecidos ficaram reféns dos manipuladores do fundamentalismo. Os ateus foram um dos alvos preferidos desses solertes inquisidores. Entre as agressões que sofreram duas foram especialmente torpes. Já nos referimos em artigo recente a uma delas. Comparecendo no dia 1º de maio passado a uma reunião de evangélicos, José Serra desenvolveu a seguinte comparação: o fumante “sabe que o cigarro vai fazer mal, mas continua assim mesmo. Depois, adoece e mesmo assim continua fumando. Assim é uma pessoa sem Deus. Sabe que ele está ali, mas não o procura”. Esse pendor místico de boca de urna, que não salvou o candidato da direita à presidência de sua segunda derrota, suscitou réplica indignada da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea): “Esse tipo de comportamento é inadmissível em qualquer cidadão civilizado, quanto mais de um pretendente ao cargo mais alto da nação”. “O contexto sugere que Serra teria feito esse tipo de declaração para satisfazer uma platéia que ele aparentemente imaginava ser tão preconceituosa quanto ele”.

Vindo de quem veio, essa charlatanice reacionária não chega a surpreender, salvo por sua extrema estultice. Serra parecia um pouco mais inteligente do que isso. Surpreendeu mais um outro golpe baixo contra os ateus. Num momento em que, perante a ofensiva eleitoreira dos fundamentalistas, açulados por Serra, Dilma teve de fazer concessões para evitar hemorragia de votos, o festejado frei Bettto aproveitou-se para destilar, na Folha do Frias, seu ódio contra quem não aceita dogmas religiosos. Assegurando que Dilma nunca foi “marxista ateia” (as aspas são do frade), ele alega que “nossos torturadores, sim, praticavam o ateismo militante ao profanar com violência os templos vivos de Deus: as vítimas levadas ao pau de arara, ao choque elétrico, ao afogamento e à morte”.

Carlos Pompe, nas Colunas do Vermelho, criticou com objetividade essa grosseira satanização dos ateus, assinalando que a Atea (que já tinha se erguido contra a estulta agressão de Serra), desmistificou a falácia do frade. “Trata-se de expressão clara de preconceito. [...] E o contexto não poderia ser pior: o mote do artigo é salvar a candidata de ‘acusações’ de ateísmo, ao invés de mostrar que ateísmo não é matéria de acusação em sociedade não discriminadora. [...] A maldade dos ateus é mais uma dessas lendas preconceituosas, reafirmada ‘ad nauseam’ pela sacrossanta Bíblia Sagrada”.

Acrescento apenas uma observação às críticas pertinentes de Pompe e da Atea. Se Bettto estivesse prioritariamente preocupado em contribuir para a vitória de Dilma, teria dito simplesmente que a conhece desde menina e que ela era católica. Mas preferiu aproveitar a ocasião para injuriar os ateus. Os protestos indignados de muitos leitores não o sensibilizaram. Em vez de reconhecer com evangélica humildade ou pelo menos com honestidade intelectual (qualidade presente em muitos ateus) que tinha escrito frases odiosas, preferiu usar a proteção de que desfruta no jornal do Frias para voltar à carga, dizendo ter amigos ateus e que estes “compreenderam” suas declarações. Compreenderam o quê? Que praticar o ateismo militante é próprio a torturadores? Bettto comprovou assim não somente que é intolerante mas também que pertence àquela esquerda da qual a direita gosta.

João Quartim de Moraes

Prof. Universitário e Escritor


Texto recebido por e-mail enviado à ESK

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