A caridade piedosa ocupa o lugar deixado vago pela renúncia ao princípio da dignidade
Teoria e prática da Caridade
Por Jorge Messias
Se os órgãos responsáveis do Estado continuarem a impor as actuais políticas, adeus direitos dos trabalhadores, adeus sonhos de democracia e… adeus derradeiras sombras dos velhos mitos da independência nacional. Dizem os grandes senhores que o simples cidadão deve acatar as ordens dos mais ricos, pagar as dívidas dos especuladores, obedecer à escala de contra-valores das nações poderosas e acabar de vez com essas tontarias dos direitos e liberdades. As «conquistas» são coisas de outros tempos, são «trapos velhos».
Esta invariável e diária introdução mil vezes repetida termina sempre com ameaças veladas expressas num estilo fascizante mais subtil. Mas está à vista que o espectáculo da máquina repressiva visa amordaçar com o medo a ira popular. Que a vaga de despedimentos tenta instalar entre os trabalhadores a instabilidade e a dúvida. E que a caridade piedosa tem o sentido da esmola que se dá ao pobre e que permite, a quem dá, ocupar o lugar deixado vago pela renúncia ao princípio da dignidade, consagrado na Constituição da República e nos Direitos do Homem.
No desenvolvimento deste esquema de subversão dos valores, a igreja-empresa surge da sombra para lembrar aos homens que o fosso entre ricos e pobres nada tem de novo e sempre com ele convivemos. Trata-se de um fenómeno natural, com uma causa simples e única: pecámos e todos temos de arcar com as consequências do pecado. Os pobres sofrem e trabalham; os ricos gozam os prazeres da vida e, no seu caso, «o pecado mora ao lado».
No correr dos anos, a Igreja tem conservado, em silêncio, esse critério histórico que esmaga uns e premeia outros. Porque à Igreja não cumpre tomar partido. A sua vocação é celestial. Na terra, deve ser cega, surda e muda face aos acidentes da história humana. Mas mantém a legenda: ai dos ricos e daqueles que cometam ou ocultem crimes. Virá o dia em que serão julgados… nos céus. Só então a Igreja falará!
A corrupção como linha de força
Entretanto, na sua «luta contra a pobreza», o episcopado propõe uma alternativa baseada numa leitura teórica da realidade. Se é impossível «extinguir a pobreza» (porque assim «Deus a quer»!) então, pelo menos, ela poderá ser «minorada». Mas como e com quem se tornará possível desenvolver este tipo de estratégia sem beliscar interesses comuns a «capitalistas» e a «cristãos»? Manobras que unam exploradores e explorados, conservadores e progressistas, crentes e ateus?
A fórmula encontrada (ou uma delas) foi esta da «luta contra a pobreza». Parte-se de «movimentos da alma» inspirados pela doutrina cristã (amor ao próximo, solidariedade, espírito caritativo, voluntariado, etc.), apoia-se esses sentimentos no «trabalho de campo» de estruturas organizadas pela Igreja (IPSS, ONGS, «Sociedade Civil», Fundações, Movimentos de Voluntariado, etc.) e liga-se discretamente o conjunto ao mundo dos negócios privados e lucrativos.
A «luta contra a pobreza» revela potencialidades muito interessantes. Nasce na «crise» mas não é crise. É forma privilegiada do escoamento e valorização de stocks. E une provisoriamente nas mesmas intenções os exploradores bem-falantes, os ingénuos explorados e os banqueiros calejados na arte de mentir com um sorriso nos lábios e um lampejo de inocência no olhar. É esta a chave do sucesso, se considerarmos que quem a perder desce inevitavelmente de escalão.
Portugal pode assim transformar-se facilmente num lucrativo mercado da «luta contra a pobreza». Terra católica, tudo aqui se compra e vende e muitos se deixam comprar. Na nossa praça, a «luta contra a pobreza» pode muito bem vir a revelar-se alavanca na promoção dos chamados «mercados emergentes». Caridade e banca, em oculta «união de facto», podem vir a gerar ligações passageiras mas de grande interesse estratégico. Seja o que for que se faça: subsídios para as fundações, recolha de rolhas usadas, peditórios, catequeses infantis, lotarias, bancos alimentares pagos pelas esmolas e abastecidos pelas sobras das mesas dos «ricos», estímulos à iniciativa empresarial – seja o que for – tudo vai concorrer para atenuar nos «pobres» as respostas duras às misérias que promovem as revoltas.
O tempo precipita-se. O ano que aí vem ameaça o povo com muito sacrifício e muito sofrimento. Todos nós sabemos isto, é certo, mas o que importa é que «da escuridão nasça a luz». Através da luta, por dura que seja.
Somos comunistas, não nos deixaremos enganar.
TEXTO ORIGINAL NO JORNAL AVANTE - PORTUGAL
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