EUA: o novo terrorismo financeiro sob máscara jurídica

EUA: o novo terrorismo financeiro sob máscara jurídica
ESCRITO POR ATILIO A. BORON



"Conclusão: estamos na presença de uma nova forma de terrorismo, tanto ou mais letal que a primitiva e com um alcance muitíssimo maior. Um terrorismo que responde às recomendações de teóricos e estrategistas imperiais como Joseph Nye Jr. quando aconselha Washington a navegar nas turbulentas águas do sistema internacional fazendo uso de uma adequada combinação do “poder duro” dos militares com o “poder brando” da indústria cultural e a ideologia (3).

A síntese de ambos seria o “poder inteligente”, mais eficaz que aquele que só se apoia na eloquência das armas. O acosso financeiro seria, segundo tal corrente de pensamento, uma expressão deste “poder inteligente”, que submete e oprime apelando a recursos distintos dos convencionais, mas, dizemos, igualmente terríveis. Porém, os crimes do terrorismo financeiro não são exibidos como tais pelo imenso aparato midiático da direita mundial, pois só aparece como uma questão de técnica jurídica, de respeito aos contratos e à lei, embora se trate da lei de um Estado imperial que com prepotência a impõe sobre o resto do planeta.

Um terrorismo dissimulado, letal que, a diferença do caso do carrasco jihadista, não ofende – por ora, como dissera o comandante Hugo Chávez! – a consciência universal de nosso tempo. Mas que, mais cedo ou mais tarde, será repudiado pela grande maioria de países que compõem este atribulado planeta. Disso ninguém tem a menor dúvida."


O Estado Islâmico tem produzido uma lamentável inovação no formato da longuíssima história do terrorismo. Os exemplos de execuções antigas, cujas testemunhas diretas eram poucas, agora são transmitidos por internet em tempo real e seu horrendo impacto chega aos quatro cantos do planeta. Mas essa mudança não oculta o primitivismo do método, a decapitação, utilizada pelas mais distintas culturas desde tempos imemoriáveis.

A opinião pública mundial se estremece e se escandaliza diante desta nova mostra de barbárie, reforçando a satanização do Islamismo e, por contraposição, exaltando os valores humanistas da (muita) mal chamada “civilização ocidental e cristã”, essa mesma que assistiu indiferentemente os fornos crematórios de Hitler, para expor apenas um dos tantos exemplos aos que poderia apelar neste artigo. Tampouco se estremeceu diante do terrorismo de Estado que Israel perpetrou com calculada selvageria, há apenas poucas semanas em Gaza, corretamente caracterizada como o maior cárcere a céu aberto do mundo.

Talvez porque suas vítimas eram palestinas, ou árabes, e, portanto, suas vidas não valiam tanto como a dos jornalistas norte-americanos ou do refém britânico recentemente executado; ou porque o bombardeio indiscriminado de civis já tenha sido naturalizado, e como diz um grande estudioso norte-americano destes temas, Chalmers Johnson, estamos inundados de eufemismo que ocultam os crimes, com palavras como “danos colaterais”, ou “mudança de regime” para não falar de subversão, “contratistas” para não dizer mercenários ou “embargo” para não dizer bloqueio (1).

Mas há até pouco tempo apareceu uma nova forma de terrorismo, mais sutil do que a do punhal e da cimitarra, mas cujas vítimas são milhões: o terrorismo financeiro. Seu principal cultor e expoente não é o repugnante carrasco islâmico vestido de preto, mas um afrodescendente de modos suaves, premiado no ano de 2009 com um insólito Prêmio Nobel da Paz e que ocupa a presidência dos Estados Unidos. Ocorre que este sujeito tem lançado uma furiosa ofensiva para conseguir a “mudança de regime” em Cuba, ou seja, para subverter a ordem constitucional e social da Ilha, substituindo o governo da revolução por um protetorado norte-americano que fecha o parêntese (segundo a direita imperial) aberto em 1º de janeiro de 1959.

Para alcançar um objetivo tão ignóbil, agora apela para o terrorismo financeiro, superando neste terreno o feito de seu indigno antecessor, George W. Bush. Não só manteve o ilegal, imoral e criminoso bloqueio contra Cuba, caso único por sua duração e intensidade na história universal, como nos últimos meses redobrou sua patológica agressividade ao impor duríssimas sanções aos bancos de terceiros países, pelo imperdoável pecado de participar das negociações ou transações comerciais originadas na ou destinadas à ilha caribenha.

O objetivo terrorista deste empenho é infligir um brutal castigo a toda uma coletividade, à sociedade cubana, para que se ajoelhem diante de seus carrascos. Não há aqui punhal nem espada, mas o objetivo é o mesmo e as vítimas, muitas delas mortais, deste novo terrorismo podem ser medidas por centenas ou milhares, de acordo com o caso.

Ratificando nos fatos que os Estados Unidos são um império, e que suas leis, como as de seu antecessor romano, são aplicadas em todo o mundo, foi feito da extraterritorialidade de sua legislação um poderoso instrumento de dominação. Aplicando as leis Torricelli e a Helms-Burton, Washington decidiu sancionar o Banco BNP Paribas com uma multa de 8.8 bilhões de dólares por sua intervenção em distintas transações para os governos de Cuba, Sudão e Irã, caracterizados como “inimigos” e incluídos na lista de países que promovem, amparam ou protegem o “terrorismo” (2).

Por conta desta descomunal sanção – sem precedentes por seu valor – o banco cancelou todas as suas operações com organismos e entidades cubanas, exemplo que foi velozmente imitado por numerosas instituições bancárias de todo o mundo, também aterrorizadas por esta nova mostra de prepotência imperial, ilegal até a medula, mas que Obama exerce com uma impunidade que supera com sobras aquilo de que se orgulha o carrasco jihadista.

De acordo com um relatório recentemente divulgado pelo Ministério das Relações Exteriores cubano, no período compreendido entre janeiro de 2009 e 2 de junho de 2014, ou seja, anterior à megamulta contra o BNP Paribas, o Nobel norte-americano aplicou sanções a 36 entidades dos Estados Unidos e do resto ao mundo num valor de quase 2,6 bilhões de dólares pelo “delito de relacionar-se com Cuba e outros países”.

Semelhante ato de terrorismo financeiro se fundamenta nas leis citadas, a última das quais foi concebida por dois trogloditas sobreviventes do Paleolítico inferior: o senador republicano ultraconservador da Carolina do Norte, Jesse Helms, um fascista homofóbico de marca maior da nova direita evangélica norte-americana, e o representante republicano de Indiana, Dan Burton, adepto do Tea Party, amante das armas de fogo e acérrimo opositor da vacinação obrigatória estabelecida pela legislação federal porque, segundo este chefe eminente, “produz autismo” em crianças e jovens.

É evidente que entre tantas aberrações estes dois homens das cavernas – que já submergiram nas imundas cloacas da história da reação mundial – se caracterizavam também por seu ardoroso anticomunismo, que os levou a redigir a lei que leva seus nomes. Essa parte legislativa se denomina “Lei da Liberdade Cubana e Solidariedade Democrática”, um eufemismo, mais um de tantos, denunciados por Johnson. Seu verdadeiro nome deveria ser “Lei para destruir a Revolução Cubana, apelando para qualquer recurso”.

Agora, o terrorismo financeiro de Obama tem eficácia, no caso que nos preocupa, pela covardia dos governos que consentem a extraterritorialidade da legislação estadunidense. Se nações pequenas e fracas não têm outra opção que resignar-se diante da prepotência imperial, não ocorre o mesmo com a França, cujo presidente François Hollande demonstrou não só que de socialista não cabe nem o nome, mas também que carece dos mais elementares brios políticos requeridos, não para ser presidente deste país, mas para ser um humilde prefeito de qualquer cidade do Terceiro Mundo.

Arrastou-se para suplicar ao Nobel da Paz 2009 que intercedesse pelo banco francês, ao que Obama respondeu que se tratava de um assunto exclusivamente jurídico e nada podia fazer a respeito. A mesma resposta em relação à ofensiva dos “fundos abutres” sobre a economia argentina. Os Estados Unidos criaram uma norma legal, que é política até a medula, e depois a aplica impiedosamente se escondendo na suposta justiça jurídica e no caráter “apolítico” da mesma.

Se Hollande possuísse a milésima parte da valentia que exibiram seus compatriotas na Comuna de Paris (ou, em um exemplo mais próximo, Charles de Gaulle) haveria dito a Obama que a legislação que o Congresso dos Estados Unidos aprovou não importa e não tem vigência na França, assim como as leis aprovadas na Assembleia Nacional de seu país não vigoram nos Estados Unidos.

Mas a decomposição moral do socialismo francês é irremediável. Prova disso é também a atitude de seu ministro de Finanças, Michel Sapin, que disse que a medida aplicada por Washington era “desproporcional” – não era ilegal, imoral e ilegítima, mas só “desproporcional” – e que confiava que o BNP Paribas poderia “financiar sua atividade econômica de maneira satisfatória”, seguramente consciente de que a multa em questão representa em torno de 80% dos lucros do banco durante o ano de 2013.

Mas, o que fica do “grandeur de la France” depois deste papelão? Napoleão e De Gaulle se revoltariam em suas tumbas se soubessem deste descenso de seu amado país à condição de uma indigna colônia ianque, o que fez o banco se declarar culpado dos processos criminais pelos quais foi acusado pelas autoridades norte-americanas: a falsificação de relatórios financeiros e conspirar contra os Estados Unidos.

Não é só isso: abandonado por seu próprio governo, o BNP Paribas admitiu também a proibição imposta pela justiça norte-americana de efetuar certas transações em dólares durante um ano, a partir de 1º janeiro de 2015, e, por último, a ordem de despedir 13 empregados do banco por sua intervenção durante as diversas transações objetos da penalização. Em outras palavras: o inquilino da Casa Branca tem o poder de cometer todas estas afrontas que violam de A a Z a legalidade internacional e logo se declara impotente para conceder o indulto que faria justiça aos três lutadores antiterroristas cubanos que continuam presos nas masmorras imperiais.

Onipotência de um lado, como para chegar até o extremo de exigir que uma instituição bancária do estrangeiro despeça 13 empregados, e impotência de outro, na hora de conceder um mais que merecido indulto a três inocentes que levam 16 anos de prisão?

Conclusão: estamos na presença de uma nova forma de terrorismo, tanto ou mais letal que a primitiva e com um alcance muitíssimo maior. Um terrorismo que responde às recomendações de teóricos e estrategistas imperiais como Joseph Nye Jr. quando aconselha Washington a navegar nas turbulentas águas do sistema internacional fazendo uso de uma adequada combinação do “poder duro” dos militares com o “poder brando” da indústria cultural e a ideologia (3).

A síntese de ambos seria o “poder inteligente”, mais eficaz que aquele que só se apoia na eloquência das armas. O acosso financeiro seria, segundo tal corrente de pensamento, uma expressão deste “poder inteligente”, que submete e oprime apelando a recursos distintos dos convencionais, mas, dizemos, igualmente terríveis. Porém, os crimes do terrorismo financeiro não são exibidos como tais pelo imenso aparato midiático da direita mundial, pois só aparece como uma questão de técnica jurídica, de respeito aos contratos e à lei, embora se trate da lei de um Estado imperial que com prepotência a impõe sobre o resto do planeta.

Um terrorismo dissimulado, letal que, a diferença do caso do carrasco jihadista, não ofende – por ora, como dissera o comandante Hugo Chávez! – a consciência universal de nosso tempo. Mas que, mais cedo ou mais tarde, será repudiado pela grande maioria de países que compõem este atribulado planeta. Disso ninguém tem a menor dúvida.


Notas:

1) Cf. O futuro do poder (New York: Public Affairs Book, 2011) e sua obra prévia, Suave Poder: Os meios para o sucesso na política mundial (New York: Public Affairs Book, 2004).

2) Ver sua excelente Desmontagem do Império. Última esperança da América (New York: Metropolitan Books, 2010), pp. 99-103.

3) Uma crônica sobre isto encontra se em “O que o BNP Paribas fez para enfrentar uma multa recorde dos Estados Unidos?”



Atilio Boron é sociólogo argentino.




Traduzido por Daniela Mouro, do Correio da Cidadania.





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