Abutres recarregados: Madelein Albright entra em cena

Abutres recarregados: Madelein Albright entra em cena
ESCRITO POR ATILIO BORON

"é um dado bem significativo (e que retrata de corpo inteiro) que os fundos abutres tenham solicitado os serviços de alguém com a catadura moral da ex-Secretária de Estado para que “solucione” o desacordo que enfrenta a Argentina com a fração mais predatória e repugnante do capital financeiro internacional.


Fiel às suas profundas convicções, é de se esperar que Albright proponha uma “solução” em linha com sua defesa do genocídio infantil praticado no Iraque; um ajuste selvagem na Argentina onde morram os que devem morrer, adoeça quem deve adoecer, se exclua e oprima os que devem ser excluídos e oprimidos e caia na miséria e na pobreza mais abjeta quem deve necessariamente cair para cumprir com a insanavelmente injusta, ilegal e imoral sentença de Griesa, e para que os abutres se apropriem da carniça de que se alimentam em todo o mundo."

Com sua resposta, deixou estupefata a entrevistadora. Ela perguntou se o meio milhão de crianças que haviam sido mortas por causa do bloqueio decidido pelos Estados Unidos contra o Iraque desde 1990 (e validado, a seu pedido, pelo Conselho de Segurança da ONU) tinha sido um preço justo a pagar e se este terrível genocídio infantil teria “valido a pena”.

A pergunta que em 1996 Leslie Stahl, condutora do Programa “60 minutos”, fez à então embaixadora dos Estados Unidos na ONU, durante o primeiro turno da administração Clinton, dizia textualmente: “Ouvimos dizer que meio milhão de crianças morreram. Quero dizer: isto é mais do que as pessoas que morreram em Hiroshima... Vale a pena pagar este preço?”. Sim, diz Madelein Albright, sem hesitar, pois dela se tratava: “nós acreditamos que valeu a pena”. O “nós” fazia alusão ao seu chefe, Bill Clinton, seu gabinete, os congressistas que apoiaram a agressão e, claro, a ela mesma. E disse calmamente, sem que este perverso holocausto deixasse sequer um traço de compaixão ou arrependimento nas duras feições de seu rosto.

Um atroz crime de guerra teria “valido a pena” para esta sinistra personagem. E muito mais crimes se perpetrariam nos sete anos seguintes, durante o segundo mandato de Bill Clinton – e ela como Secretária de Estado – e George W. Bush, até a invasão e destruição produzida em 2003 do país que muitos historiadores, arqueólogos e antropólogos não vacilam em caracterizar como uma das fontes de nossa civilização.

Albright é uma arquetípica representante do imperialismo norte-americano, de seu desprezo pela legalidade internacional e do racismo genocida que informa sua vida política, tanto no interior dos Estados Unidos (recordar o ocorrido em Ferguson há poucas semanas) como no exterior. Se agora nos ocupamos dela é porque dias atrás a empresa de consultoria que preside anunciou que havia sido contratada pelos “fundos abutres”, para buscar “uma solução satisfatória” ao litígio desatado pela sentença do juiz Thomas Griesa.

Obviamente, Paul Singer e seus comparsas procuraram alguém com enorme experiência política e fluidos contatos com os grupos dominantes do império (além de seu assustador orfanato de critérios morais) para colaborar com a quadrilha de jogadores financeiros empenhados em colocar a Argentina de joelhos e concretizar um fabuloso negócio.

Uma pessoa cuja inescrupulosidade foi temperada durante os oito anos da administração Clinton, quando, sendo Secretária de Estado, defendeu os bombardeiros indiscriminados sobre o Afeganistão e o Sudão em 1998 e, no ano seguinte, justificou a intervenção dos Estados Unidos para destruir a antiga Iugoslávia, propiciando o bombardeio que durante dois meses devastou este país.

Esta decisão, implementada pela OTAN sob a liderança de Washington, foi conduzida em flagrante violação da Carta das Nações Unidas e sem contar com a imprescindível aprovação do Conselho de Segurança desta organização, questões que foram desdenhosamente ignoradas pela Sra. Albright.

A intrusão dos Estados Unidos junto a seus lacaios europeus nos Balcãs desencadeou – tal como logo ocorreria na Líbia e agora na Síria – uma das guerras civis mais sangrentas de que se tem memória, ocasião na qual se produziu, “por erro”, o bombardeio da embaixada da República Popular da China em Belgrado. Soma-se a tudo isso o protagonismo de Albright na manutenção do bloqueio e seus periódicos bombardeios sobre o Iraque; no velado apoio do governo norte-americano à operação “Irmãos ao Resgate”, uma provocação montada pela máfia anti-Castro de Miami e que culminou no endurecimento do bloqueio contra Cuba e na sanção da infame Ley Helms-Burton; e, por último, no golpe de Estado no Haiti e na imposição de um governo, o de Jean-Bertand Aristide, sob a condição de executar o programa econômico ditado pela Casa Branca.

Bastam esses fatos para que não se possa aventar qualquer esperança de que algo bom para a Argentina poderia provir da mediação de um personagem que foi artífice ou apologista de todas estas afrontas.

Duas considerações finais em torno desta notícia. Primeiro, para destacar a imoralidade de uma pessoa que encerra sua carreia política e administrativa e que, apesar de gozar pelo resto de sua vida de uma esplêndida aposentadoria, concentra suas energias para acrescentar sua fortuna traficando influências e favorecer ricos e poderosos, porque isto é o que fazem as consultorias como as de Albright, ou a mais famosa, de Henry Kissinger. Poderia utilizar seu tempo livre e sua generosa pensão para fins mais elevados, mas tal raciocínio não encontra eco nesta classe de personagens.

Segundo, é um dado bem significativo (e que retrata de corpo inteiro) que os fundos abutres tenham solicitado os serviços de alguém com a catadura moral da ex-Secretária de Estado para que “solucione” o desacordo que enfrenta a Argentina com a fração mais predatória e repugnante do capital financeiro internacional.

Fiel às suas profundas convicções, é de se esperar que Albright proponha uma “solução” em linha com sua defesa do genocídio infantil praticado no Iraque; um ajuste selvagem na Argentina onde morram os que devem morrer, adoeça quem deve adoecer, se exclua e oprima os que devem ser excluídos e oprimidos e caia na miséria e na pobreza mais abjeta quem deve necessariamente cair para cumprir com a insanavelmente injusta, ilegal e imoral sentença de Griesa, e para que os abutres se apropriem da carniça de que se alimentam em todo o mundo.

Se chegar a consumar essa tragédia, coisa que não acredito, seguramente em uma futura entrevista Albright também diria que todo este sofrimento, graças a seus bons ofícios, infligidos ao povo argentino “valeu a pena”.


Atílio Borón é sociólogo argentino.


Traduzido por Daniela Mouro, do Correio da Cidadania.


Texto original em :  Correio da Cidadania 



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