A Revolução Portuguesa e o socialismo

A Revolução Portuguesa e o socialismo

por ALBANO NUNES


«A história em geral, e a história das revoluções em particular, e sempre mais rica de conteúdo, mais variada, mais multiforme, mais viva e mais “astuta” do que imaginam os melhores partidos, as vanguardas mais conscientes das classes mais avançadas.»Lenine 1
«Enquanto existirem diferenças nacionais e estatais entre os povos e os países – e estas diferenças subsistirão muito e muito tempo mesmo depois da instauração da ditadura do proletariado à escala universal – a unidade da táctica internacional do movimento operário comunista de todos os países exige não a supressão da variedade, nem a eliminação das diferenças nacionais (o que é, na actualidade, um sonho absurdo) mas uma aplicação tal dos princípios fundamentais do comunismo (Poder Soviético e ditadura do proletariado) que modifique acertadamente estes princípios nos pormenores, que os adapte, que os aplique acertadamente às diferenças nacionais e nacionais-estatais. Investigar, estudar, descobrir, adivinhar, captar o que há de particularmente nacional e de especificamente nacional nas abordagensconcretas de cada país na solução da tarefa internacional comum (...) eis a principal tarefa...» (V. I. Lenine, Obras Escolhidas em três tomos, Edições «Avante!»-Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, t. 3, 1979, p. 330).


No processo da revolução portuguesa de 25 de Abril o socialismo ocupa uma posição que encerra ensinamentos de grande valor teórico e prático, em primeiro lugar para o PCP, que tem como objectivo estratégico a construção em Portugal de uma sociedade socialista e comunista.

Assim colocada a questão pode parecer algo surpreendente. A Revolução de Abril foi uma revolução Democrática e Nacional, anti-fascista, anti-monopolista, anti-latifundista, anti-colonialista e anti-imperialista que confirmou, aliás, nas suas linhas fundamentais, as análises e perspectivas apontadas noRumo à Vitória de Álvaro Cunhal e no Programa do PCP adoptado pelo seu VI Congresso em 1965 2.

Expressão das particularidades da situação portuguesa e da natureza do regime fascista a derrubar – «uma ditadura terrorista dos monopólios associados ao imperialismo estrangeiro e dos latifundiários» –, a originalidade da Revolução de Abril é bem conhecida. Ela não foi uma revolução democrático-burguesa como também não foi, nem se propôs ser, uma revolução socialista. O PCP teve mesmo de travar um persistente combate político e ideológico no seio da oposição antifascista, quer contra a burguesia liberal, que pretendia reduzir o derrube do fascismo a uma simples mudança de regime deixando intactos os monopólios e os latifúndios, quer contra o radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista que acusava o PCP de estar feito com a burguesia para impedir a eclosão da revolução socialista que estaria ali mesmo ao virar da esquina 3.

A verdade porém – o que para o PCP não encerra qualquer surpresa nem contradição – é que na revolução portuguesa o seu carácter anti-monopolista e anti-imperialista e o objectivo do socialismo andaram sempre de mãos dadas. Duas etapas diferentes, que não se confundem nem devem ser confundidas mas que não as separa uma qualquer «muralha da China», pelo contrário estiveram sempre dialecticamente ligadas 4.

Estiveram-no, desde logo, na concepção e no Programa dos comunistas onde explicitamente se reconhece que há objectivos da etapa da Revolução Democrática e Nacional que são simultaneamente objectivos da etapa socialista.

Estiveram-no depois no concreto processo da revolução: na aspiração de amplas massas afirmada em poderosas manifestações e mesmo em eleições 5, nas decisões da Assembleia do MFA (7.04.75) após a derrota da tentativa de golpe do 11 de Março, no Pacto MFA-partidos relativo ao processo constitucional e, finalmente, na Constituição da República Portuguesa aprovada e promulgada a 2 de Abril de 1976 6, já depois da desfavorável alteração da correlação de forças resultante do golpe de 25 de Novembro, o que sublinha bem a importância do ideal e da perspectiva do socialismo na Revolução de Abril e ajuda a compreender melhor a razão porque a direita e a social-democracia não cessam de vituperar o «carácter ideológico» da Constituição que procuram calcar aos pés e varrer da memória do povo.

Tudo isto, por si só, tem já um significado que é necessário evidenciar. Resulta por um lado do avanço e radicalização política do processo revolucionário sob o impulso da intervenção criadora da classe operária e das massas, no quadro da aliança Povo-MFA. Reflecte, por outro lado, a época histórica em que a revolução portuguesa tem lugar, a época da passagem do capitalismo ao socialismo, uma época em que, seja qual for o seu carácter (democrática, nacional-libertadora, anti-monopolista, anti-imperialista) qualquer revolução para triunfar nos seus objectivos próprios tem de inserir-se na perspectiva do socialismo. O que é obviamente diferente, radicalmente diferente, de à partida reduzir a luta de classes ao confronto burguesia/proletariado e à dicotomia capitalismo/socialismo, simplificando a política de alianças sociais (e políticas) e negando a existência de etapas e fases intermédias no processo de luta pelo socialismo e o comunismo.

Mas a revolução portuguesa não se limitou a proclamar o socialismo em abstracto, começou a desenhar-lhe contornos e a consagrar na própria Constituição linhas de orientação, aliás em boa medida coerentes com a visão científica do socialismo. E sobretudo, e é isso o que de mais substancial se pretende aqui destacar, criando no plano do sistema económico e das relações de propriedade uma situação objectiva que, se não fosse contrariada (como foi) pelo poder político, encaminharia Portugal para o socialismo.

De facto o avanço do processo revolucionário com as nacionalizações, a Reforma Agrária, a liquidação do capitalista monopolista de Estado, o controle operário – sem esquecer outras realizações capitais em matéria de direitos laborais, sindicais, sociais e outros – criaram no país uma situação nova que colocou a revolução portuguesa perante opções decisivas: ou avançar para o socialismo, como exigia a dinâmica da própria base econômica, ou retroceder pela via da recuperação capitalista com o espectro de nova ditadura.

Infelizmente foi este último o caminho seguido. A força poderosa das massas organizadas e em movimento logrou arrancar ao capital e à reacção grandes conquistas revolucionárias, não conseguiu porém impor um poder revolucionário e construir o correspondente Estado democrático. Confirmando uma tese central da teoria marxista-leninista da revolução – o Estado como questão central 7 – essa limitação revelou-se fatal para a revolução portuguesa.

A revolução portuguesa na encruzilhada

Na abordagem do lugar que o socialismo ocupa na Revolução de Abril o conhecimento da obra do camarada Álvaro Cunhal, A Revolução Portuguesa, o Passado e o Futuro, é indispensável pelo manancial de informação e a reflexão que contém, e por ser uma obra, como muitas outras do seu autor, elaborada «na passada», ao calor da agudíssima luta de classes que se desenvolvia no país e inserida na elaboração colectiva do Partido. Trata-se do Relatório aprovado pelo CC do PCP para o VIII Congresso, realizado em Novembro de 1976 – com o lema «Com a democracia para o socialismo» – e aquele que é talvez o mais importante documento para compreender o que foram, o que representaram e as perspectivas que abriram à luta libertadora do povo português as transformações socioeconómicas do período revolucionário de 1974/76.

Essas profundas transformações, com a liquidação do capitalismo monopolista de Estado e a liquidação dos monopólios e do seu poder econômico e político, criaram uma base económica que na sua dinâmica própria colocou Portugal no caminho do socialismo. A caracterização pelo PCP da situação existente em Portugal em resultado das medidas revolucionárias adoptadas na sequência do 11 de Março como a de uma «democracia a caminho do socialismo», nada tem de voluntarismo pois não se trata simplesmente (e poderia tratar-se) de uma aspiração e objectivo programático a que a grande vitória sobre a contra-revolução dava justificado impulso, mas de uma possibilidade real inscrita na dinâmica do processo revolucionário.

Para avaliar as tendências de evolução o Relatório ao VIII Congresso coloca duas perguntas que são de capital importância de um ponto de vista marxista. Qual actualmente o sistema económico em Portugal? Quais são actualmente as leis que regem a economia portuguesa?

Para lhe responder Álvaro Cunhal sublinha a necessidade de ter em conta «que as estruturas fundamentais do estádio de desenvolvimento capitalista existente antes do 25 de Abril foram destruídas» e que «as relações de produção capitalistas são ainda predominantes, mas não determinantes» pois «quem detém os meios de produção dos sectores determinantes não são os capitalistas, mas o Estado».

É esta realidade que marca uma situação nova que os comunistas têm necessariamente de levar em consideração para orientar com segurança a sua intervenção revolucionária na complexa e perigosa situação existente, situação que «permite que todos os recursos apropriados dantes pelos grupos monopolistas possam (se o poder político for exercido por forças políticas favoráveis ao processo revolucionário) ser colocados ao serviço dos interesses do povo e do País, de uma acumulação não capitalista, de um desenvolvimento da produção e de relações económicas em direcção ao socialismo» 8.

Em 1976 estava pois aberta a Portugal a possibilidade de avançar para uma etapa superior do processo de emancipação social e nacional da classe operária e do povo português, para o socialismo, não tanto por imperativo jurídico constitucional (entretanto existente), mas como fruto das mudanças operadas na própria infraestrutura socioeconómica com novas relações de propriedade que golpearam profundamente o sistema de produção capitalista. Se não fosse contrariado pelo poder político, o desenvolvimento «natural» da economia portuguesa seria no sentido do socialismo 9.

Porém, como já antes se referiu, o poder político não só contrariou como militou contra uma tal evolução. Com o primeiro Governo constitucional – o célebre governo do PS sozinho mas de facto aliado à direita10 – institucionalizou-se o processo contra-revolucionário de recuperação capitalista que, no seu desenvolvimento, conduziu à gravíssima situação em que hoje o país se encontra, confirmando uma vez mais as análises e previsões do PCP.

«Desde o desencadeamento do processo contra-revolucionário a realidade mostrou que o avanço das ofensivas no domínio económico e social para a reestruturação e restauração dos grupos monopolistas e do sistema do capitalismo monopolista caminhou par a par e no fim de contas só foi possível com ofensivas constantes contra a democracia política» 11.

Efectivamente, passados mais de trinta e sete anos de políticas de direita, de vinte e oito anos de desastrosa integração de Portugal na CEE/União Europeia e de capitulação diante do imperialismo e de sete revisões constitucionais mutiladoras, num quadro em que a resistência tenaz e muitas vezes heróica dos trabalhadores e das massas frustrou os mais perigosos projectos contra-revolucionários de cariz fascista, o que hoje temos com a reconstituição dos monopólios e o seu regresso ao poder político é uma democracia profundamente golpeada e empobrecida, já não apenas nas suas vertentes económica, social, cultural e de soberania, mas também na sua vertente política. Os perigos para o próprio regime democrático constitucional e para a soberania nacional são hoje enormes.

Também aqui as prevenções do PCP se confirmaram, mostrando que só no caminho de profundas transformações anti-monopolistas e anti-imperialistas, só colocando Portugal no caminho do socialismo é possível construir um país realmente livre, democrático, próspero e soberano. Mais do que uma questão ideológica (que o é) trata-se de uma necessidade que decorre das próprias contradições da sociedade portuguesa.

A revolução portuguesa é uma revolução inacabada que deixou sulcos profundos de realizações, experiências e valores que se projectam no presente e no futuro de Portugal. Essa a razão porque o Programa (actualizado) do PCP aprovado no seu XIX Congresso se intitula: «Uma democracia avançada, os valores de Abril no futuro de Portugal». Trata-se de sublinhar uma realidade que fundamentalmente distingue a realidade capitalista de Portugal da de outros países capitalistas. Ao mesmo tempo deve também sublinhar-se que tal como na etapa da Revolução Democrática e Nacional também a etapa da Democracia Avançada é parte integrante e constitutiva da luta pelo socialismo 12.

A luta do PCP pela ruptura com décadas de política de direita e por uma alternativa patriótica e de esquerda insere-se na luta por uma democracia avançada, simultaneamente política, económica, social e cultural, de natureza anti-monopolista e anti-imperialista, que por sua vez é inseparável da luta em Portugal por uma sociedade socialista e comunista.

Numa situação internacional contraditória, em que a actualidade e necessidade do socialismo é cada vez mais evidente, e em que perigos de regressão social de dimensão histórica coincidem com grandes potencialidades de desenvolvimento progressista e revolucionário, é de decisiva importância para um partido revolucionário como o PCP ter sempre presente esta perspectiva na sua acção quotidiana e estar preparado para as formas de intervenção que a evolução da luta de classes reclame.



Notas:

(1) V. I. Lénine, Obras Escolhidas em seis tomos, Edições «Avante!»-Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, t. 5, 1986, p. 151.

(2) Este mérito histórico do PCP evidencia, por um lado, o seu profundo conhecimento da realidade nacional e a sua estreita ligação às massas e, por outro lado, a sua capacidade para aplicar criativamente o marxismo-leninismo à situação concreta de Portugal. Um feito de tal dimensão não podia deixar de ser alvo de quantos contestam, deformam e caluniam o papel insubstituível do PCP na Revolução de Abril, de que o exemplo mais recente é o livro de Raquel Varela, História do Povo na Revolução de Abril, repleto de omissões e falsidades e percorrido de ponta a ponta por um doentio preconceito anti-comunista, o que é tanto mais grave quanto a autora se gaba de que «estudou a fundo» a história do PCP.

(3) A luta travada pelo PCP em torno da via para o derrubamento da ditadura e da etapa e natureza de classe da revolução antifascista é uma constante na sua história. Com a crise do regime e a aproximação da situação revolucionária que irrompeu com o 25 de Abril, esta luta tornou-se particularmente aguda com o esquerdismo maoista, então activamente alimentado pela acção cisionista dos dirigentes chineses e albaneses. A este respeito são materiais de estudo «obrigatório» as obras de Álvaro Cunhal, Acção Revolucionária, Capitulação e Aventura e O Radicalismo Pequeno-Burguês de Fachada Socialista (inObras Escolhidas, Edições «Avante!», Lisboa, t. IV, 2013, respectivamente na p. 16 e p. 459). Obras que não têm apenas valor de testemunho histórico, mas que são de uma flagrante actualidade para a crítica e combate à expressão actual do oportunismo de direita e de «esquerda», nomeadamente ao dogmatismo e ao sectarismo que, como assinalou o Comité Central na sua reunião de 14 e 15 de Dezembro de 2013, teve manifestações particularmente negativas no processo de preparação e realização do 15.º Encontro Internacional de Partidos Comunistas e Operários.

(4) Uma fundamentação teórica e prática particularmente esclarecedora desta relação intrínseca encontramo-la em O Radicalismo Pequeno-Burguês de Fachada Socialista,capítulo «A revolução democrática e nacional e a revolução socialista».

(5) É importante recordar que a influência alcançada pelo Partido Socialista, sobretudo eleitoral, é inseparável da viragem à esquerda dos herdeiros da ASP liberalizante e de um programa e fraseologia em que largas camadas da população viam uma posição revolucionária, socialista. O facto de isso ter permitido ao PS uma margem de manobra que o tornou um precioso aliado da reacção, não põe em causa esta realidade. Não é, aliás, por acaso que no período de ascenso revolucionário praticamente todas as forças com alguma expressão, com excepção do CDS, se reclamavam do socialismo.

(6) «A República Portuguesa é um Estado democrático, baseado na soberania popular, no respeito e na garantia dos direitos e liberdades fundamentais e no pluralismo de expressão e organização política democráticas, que tem por objectivo assegurar a transição para o socialismo mediante a criação de condições para o exercício democrático do poder pelas classes trabalhadoras.» (Art.º 2.º da Constituição da República Portuguesa, «Estado democrático e transição para o socialismo»).

(7) Ver V. I. Lénine em O Estado e a Revolução (in Obras Escolhidas em três tomos, Edições «Avante!»-Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, t. 2, 1978, p. 219) e Álvaro Cunhal em A Questão do Estado, Questão Central de Cada Revolução (in Obras Escolhidas, Edições «Avante!», Lisboa, t. IV, 2013, p. 219).

(8) Álvaro Cunhal, A Revolução Portuguesa, o Passado e o Futuro, Edições «Avante!», Lisboa, 1976, p. 275.

(9) Esta conclusão, que resulta da aplicação do marxismo-leninismo e das leis da economia marxista à situação específica de Portugal, está fundamentada na p. 274 e seguintes, no capítulo intitulado «Duas perspectivas de desenvolvimento» (in A Revolução Portuguesa, o Passado e o Futuro, Edições «Avante!», Lisboa, 1976.

(10) O governo de Mário Soares, minoritário, governou com o apoio da direita, dando depois lugar a um governo de coligação PS/CDS. O PS recusou sempre transformar a maioria aritmética de esquerda – que traduzia a inequívoca aspiração do povo português ao socialismo – numa maioria política, preferindo aliar-se com a extrema direita.

(11) Álvaro Cunhal, «A Revolução de Abril, 20 Anos Depois», artigo inserido na 2.ª edição de A Revolução Portuguesa, o Passado e o Futuro, Edições «Avante!», Lisboa, 1994, p. 12

(12) Resolução Política do XIX Congresso, edição DEP/PCP, Lisboa, 2012, p. 84.




Fonte em Revista O Militante 25 DE ABRILEDIÇÃO Nº 332 - SET/OUT 2014



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