Os jogos vocabulares

Os jogos vocabulares
por Jorge Messias
 
"Os cidadãos portugueses – comunistas, católicos, com outras opções mas que eram e se mantêm cidadãos honestos – uniam-se contra o fascismo assumido de Salazar e de Marcelo Caetano. Nos dias que correm, na prática, a situação é exactamente a mesma. Lutar contra a exploração dos trabalhadores ou contra a troika e contra a Nova Ordem, equivale a resistir à fome, ao analfabetismo ou à censura e às cadeias dos anos 40. Ao fim e ao cabo, a democracia há-de ser aquela que o povo português quiser..."
 
«O Marxismo faz descer a política do Céu à Terra. Reconhece no Estado a expressão de uma relação de classes e, na pessoa que dirige, o agente e a figura dessa ligação. Não há pois lugar para a relação teopolítica (de política divina); nem céu marxista, nem marxistas no céu !» (Karl Marx, «Sobre as Religiões»).
 
«Não nos situamos numa posição idealista em que o diálogo é a fonte da acção comum, posição que está na base do orgulhoso isolamento de cada um dos lados e de mútuas acusações recíprocas: não é a acção definida por um diálogo mas, quase sempre, um agir comum, que deve representar uma constante preocupação» (padre J.F.Six, «Comentários à encíclica Gaudium et Spes», 1965).
 
«Citando as palavras do Papa: “Nunca a gente se engana quando se abandona à vontade da Providência, sobretudo quando esta nos fala por via hierárquica. Nas inspirações particulares pode haver ilusão; na obediência ao representante de Cristo, nunca!”».
 
«Não temos aqui em vista discutir a obediência que, em matéria religiosa e no que respeita ao espírito e costumes, os católicos devem aos seus superiores hierárquicos e ao chefe da Igreja de Roma. Queremos apenas sublinhar que o Papa não é apenas o representante de Cristo na terra e um chefe espiritual. Ele é ao mesmo tempo o chefe de um Estado estrangeiro – o Vaticano – que como tal é considerado nas relações com os outros Estados… O Vaticano tem gigantescos interesses financeiros e económicos em bancos estrangeiros...» (Álvaro Cunhal, «O Partido Comunista, os católicos e a Igreja», 1947).


Retomando o seu pensamento crítico referia depois o camarada Álvaro Cunhal: «Como Estado, o Vaticano tem a sua política própria. Obedecer a esta política não pode ser considerado, em relação à Igreja de cada país, como obediência hierárquica em matéria religiosa, mas sim como obediência política a uma potência estrangeira».

Aliás, mais de 70 anos após estas considerações de Cunhal, verifica-se que a situação mundial mantém quadros muito semelhantes e que as características da Igreja católica oficial são as mesmas, ontem, hoje e amanhã. No passado, as economias estavam destruídas, havia fome, o desemprego esmagava milhões de trabalhadores, da crise mundial resultavam miséria e fortunas como nunca se vira. Agravava-se a luta de classes e a dúvida central que se mantinha continuava a ser, mesmo depois da derrota nazi:

democracia ou fascismo?

Tal como no presente, a imagem democrática degradava-se continuamente. Os políticos confundiam-se com os homens de negócios e começavam a criar-se estruturas mundiais (ou globais, como se queira) que invocavam as liberdades mas nada mais eram do que esmagadores grupos de pressão capitalista. Isto, associado a uma cadeia infinda de escândalos e de crimes. A palavra servia cada vez menos para comunicar. Com o avanço do capitalismo moderno, a mentira passou a usar-se como estratégia banal do negócio. Moral, valores, religião, resumiam-se a meros jogos vocabulares.

Assim foi e assim é. Mas nem sempre assim será.

Os cidadãos portugueses – comunistas, católicos, com outras opções mas que eram e se mantêm cidadãos honestos – uniam-se contra o fascismo assumido de Salazar e de Marcelo Caetano. Nos dias que correm, na prática, a situação é exactamente a mesma. Lutar contra a exploração dos trabalhadores ou contra a troika e contra a Nova Ordem, equivale a resistir à fome, ao analfabetismo ou à censura e às cadeias dos anos 40. Ao fim e ao cabo, a democracia há-de ser aquela que o povo português quiser...

Nas relações entre a Igreja e os crentes há, claramente, um caminho paralelo com distinções a respeitar e outras a desprezar. Uma coisa é a Igreja de Roma, herdeira dos medos e dos feitiços da religião judaico-cristã e do império romano. Outra, bem mais límpida, a que conduz à aproximação e à colaboração permanente de comunistas e de católicos progressistas que podem ver na sua Igreja um dinamizador e não um travão das lutas futuras pela independência da pátria e pelo seu livre desenvolvimento. Lutas em comum mas com «paredes de vidro». Sem proselitismos ou planos pré-concebidos de conquista do poder.

E, tal como começámos, assim terminamos, com Álvaro Cunhal:

«O nosso desejo é que na obra de reconstrução democrática de Portugal não haja convicções religiosas nem ideias filosóficas que afastem os homens e prejudiquem o seu esforço conjugado para assegurar, ao nosso Povo e à nossa Pátria, dias melhores e mais livres...».





 
Fonte: Jornal Avante em www.avante.pt
 
 

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