Brasil - Trabalho análogo ao escravo: para entender a senadora Kátia Abreu

Trabalho análogo ao escravo: para entender a senadora Kátia Abreu
por Vitor Filgueiras

"Na nossa sociedade, em regra, as pessoas não precisam ser coagidas fisicamente por um indivíduo determinado para laborar, já que, com exceção dos proprietários, o restante da população é obrigado a vender sua força de trabalho para se reproduzir física e socialmente. Por isso, os trabalhadores, mesmo destinatários de liberdades individuais, podem ter que se submeter a qualquer tipo de condição de trabalho, eventualmente semelhantes ou piores do que aquelas vividas pelos escravos típicos."
"A identidade entre os escravos juridicamente constituídos até o século XIX e os trabalhadores assalariados em situação análoga à de escravos é a natureza e objetivos da relação que os subordina. Deixada ao curso de sua natureza histórica, a relação tende à exploração do trabalho sem limite prévio, em todos os aspectos, podendo incluir a eliminação física do trabalhador."
"Colocar trabalhadores para dormir em chiqueiros, alojados sobre fezes de frangos, fornecer água contaminada e alimentos em putrefação, ou mesmo manter empregados em condição famélica, são algumas das formas de tratamento dispensadas por empregadores aos trabalhadores que produzem seus lucros, apuradas in loco pela Inspeção do Trabalho, e que subsidiam a caracterização da degradância."

Vivemos tempos de ofensiva patronal contra o trabalho, e são várias suas frentes. No que concerne ao ordenamento jurídico brasileiro, o trabalho análogo ao escravo é um dos principais objetos das iniciativas empresariais. Mas não para combater esse crime.

Quando o tema é o trabalho análogo ao escravo, a senadora Kátia Abreu, representante de entidade patronal, está entre as figuras mais destacadas.Ela costumeiramente ataca o conceito que tipifica esse crime, cuja redação atual existe desde 2003 (art. 149 do Código Penal). Nas últimas semanas ela encampou uma nova ofensiva, a exemplo da publicação de artigo em jornal de grande circulação,pela qual tenta vincular seu ataque contra o conceito de trabalho análogo ao escravo com um caso de suposta suspeita individual sobre a honestidade de um Auditor Fiscal do Ministério do Trabalho (MTE).

Para entender o ímpeto da senadora, é necessário saber o que é o trabalho análogo ao escravo e, por conseguinte, ter a dimensão do que o artigo 149 significa para a regulação do mercado de trabalho e qualquer pretensão civilizatória em nosso país.

Na nossa sociedade, em regra, as pessoas não precisam ser coagidas fisicamente por um indivíduo determinado para laborar, já que, com exceção dos proprietários, o restante da população é obrigado a vender sua força de trabalho para se reproduzir física e socialmente. Por isso, os trabalhadores, mesmo destinatários de liberdades individuais, podem ter que se submeter a qualquer tipo de condição de trabalho, eventualmente semelhantes ou piores do que aquelas vividas pelos escravos típicos.

Apenas para ilustrar, a professora Maria Aparecida Silva demonstrou como a força de trabalho de cortadores de cana no Brasil tem vida útil menor do que na época da utilização do trabalho escravo tradicional. Em outro caso, este ano, num cruzeiro de luxo foram resgatados empregados que trabalhavam até duzentos dias seguidos, sem nenhum dia de descanso, com jornada diária mínima de 11 horas. Em ambos os casos, há registros de mortes por exaustão decorrentes do excesso de trabalho.

A submissão a tais condições possui requinte de crueldade, pois, dadas a liberdade individual do titular da força de trabalho e a necessidade compulsória de vendê-la, há normalmente o consentimento imediato do trabalhador explorado à sua situação (o que torna desnecessário mantê-lo preso ou amarrado a uma corrente).

A identidade entre os escravos juridicamente constituídos até o século XIX e os trabalhadores assalariados em situação análoga à de escravos é a natureza e objetivos da relação que os subordina. Deixada ao curso de sua natureza histórica, a relação tende à exploração do trabalho sem limite prévio, em todos os aspectos, podendo incluir a eliminação física do trabalhador.

Ocorre que, ao contrário do século XIX, hoje o Estado é impelido a prescrever e tentar implementar limites à exploração do trabalho. No Brasil, além de limites internos à relação de emprego (como o registro do empregado), existem limites à existência da própria relação. Esse limite essencial é justamente o conceito de trabalho análogo ao escravo. É um limite à exploração do trabalho assalariado que, se ultrapassado, ou seja, se as condições de trabalho verificadas se tornam semelhantes à dos escravos, o Estado não admite a relação e a desconstitui (rescinde o contrato).

Esse limite é previsto no referido artigo 149, que tipifica as ações que caracterizam o trabalho análogo ao escravo. Dentre elas estão: submeter trabalhadores a condições degradantes e impor jornadas exaustivas, situações que não dependem necessariamente da coerção individual direta sobre o trabalhador, constituindo, assim, limites à coerção do mercado de trabalho, típica da nossa sociedade.

Trata-se, portanto, de um limite mínimo à civilidade do tipo de sociedade instaurada em nosso país. Este é o cerne do conceito de trabalho análogo ao escravo e também o cerne da indignação dos capitalistas e seus representantes.

Senadora Kátia Abreu
Um dos ataques da senadora ao conceito de trabalho análogo ao escravo é afirmar que ele seria impreciso. Essa alegação não faz sentido, dentre outras razões, porque há infinitas possibilidades de a exploração atingir o crime da degradância, que necessariamente são apuradas caso a caso.

Colocar trabalhadores para dormir em chiqueiros, alojados sobre fezes de frangos, fornecer água contaminada e alimentos em putrefação, ou mesmo manter empregados em condição famélica, são algumas das formas de tratamento dispensadas por empregadores aos trabalhadores que produzem seus lucros, apuradas in loco pela Inspeção do Trabalho, e que subsidiam a caracterização da degradância.

As próprias empresas concordam que são criminosas as condições detectadas pela fiscalização, tanto que quase sempre tentam transferir a responsabilidade para outrem(empresa terceirizada ou “gato”), ou questionam os fatos narrados pela fiscalização. Quando aceitam os fatos, os empregadores classificam as condições a partir da ótica de que o trabalhador seria uma subespécie “acostumada” aquele tipo de tratamento.

De todo modo, há duas instâncias administrativas e autônomaspara os empregadores se defenderem da acusação de terem explorado trabalhadores em condições análogas à de escravos, e em nenhuma hipótese um auditor analisa seu próprio trabalho. Além disso, há mais 4 instâncias judiciais para defesa empresarial. Trata-se de amplíssima defesa e o que falta, pelo contrário, é punição de empregadores criminosos, que normalmente não vão presos por conta do farto aparato para protelação processual. Com esses artifícios, mesmo os empresários acusados de assassinar 4 servidores do MTE, em 2004, até hoje não foram julgados em primeira instância.

Caso seja comprovada alguma irregularidade na conduta de algum Auditor Fiscal do Trabalho, esse fato demonstrará apenas que essa carreira, assim como senadores, deputados, juízes, médicos, pedreiros, ou qualquer outra profissão, não está apartada de valores (ou falta deles) que compõem nossa sociedade, cabendo as devidas medidas nos âmbitos administrativo, civil e criminal.

Essa acusação em nada se relaciona com o conceito de trabalho análogo ao escravo. Nem poderia se relacionar, pois é o caráter de quem aplica, e não a redação de uma lei, que explica a corrupção, a qual pode manipular qualquer texto.Mas, no vale tudo departe dos empresários e seus representantes, que inclui ameaças (frequentes) e mortes de fiscais para lutar pela sua impunidade para explorar, não surpreende a tentativa de usar esse episódio para atacar o conceito de trabalho análogo ao escravo, este sim, o inimigo mirado pela senadora e empresas que representa, por constituir um limite à exploração do trabalho.

* Vitor Araújo Filgueiras é pesquisador do CESIT e pós-doutorando em Economia na UNICAMP. Integrante do grupo de pesquisa “Indicadores de Regulação do Emprego no Brasil”.






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