A INCORPORAÇÃO SUBALTERNA BRASILEIRA AO CAPITAL-IMPERIALISMO

A INCORPORAÇÃO SUBALTERNA BRASILEIRA AO CAPITAL-IMPERIALISMO
Por Virgínia Fontes*

Neste texto – “visão extremamente sintética da segunda parte do seu livro O Brasil e o capital-imperialismo: Teoria e História” –, Virgínia Fontes ajuda-nos a “Compreender o processo brasileiro atual [o que] exige incorporar e ir além dos indicadores, averiguando a forma da política, isto é, a maneira pela qual se organizam, formulam e expressam as vontades socialmente organizadas, identificando os principais fulcros de luta social.” E conclui que “fermentam novas contradições [no Brasil], pois se traduzem numa ampliação vertiginosa da classe trabalhadora, contraposta a um punhado de grandes capital-imperialistas brasileiros e seus gigantes aliados de procedência externa, ainda que cercados de subservientes egressos do âmbito sindical. Assim como ao longo do século XX, tudo leva a crer que as exigências igualitárias retornarão, já tendo feito agora a experiência da democracia menor que o capital-imperialismo contemporâneo tem a oferecer

Ao longo dos últimos 30 anos, várias pesquisas trouxeram enorme contribuição para compreender a formação social brasileira e permitiram vislumbrar sua aproximação à forma predominante no mundo contemporâneo, o capital-imperialismo.
 
As características que sublinharemos dizem respeito tanto à escala crescente da concentração de capitais sob o predomínio do capital portador de juros internamente (solidária à sua dominação externa sobre o Brasil), quanto ao impacto da expropriação primária (expropriação do povo do campo) no Brasil, que perdurou todo o século XX, ao lado de avassalador avanço de expropriações secundárias realizadas nas últimas décadas do século XX e que ainda tendem a se aprofundar.
 
Compreender o processo brasileiro atual exige incorporar e ir além de tais indicadores, averiguando a forma da política, isto é, a maneira pela qual se organizam, formulam e expressam as vontades socialmente organizadas, identificando os principais fulcros de luta social. A forma da política inclui, para além dos partidos, o conjunto da sociedade civil, pensada enquanto espaço de luta de classes, como sugeriu Gramsci. A sociedade civil não se contrapõe ao Estado, mas o integra, ampliado-o.
 
A plena expansão do capitalismo no Brasil ocorreu sem a interveniência de uma revolução burguesa de cunho nacionalista ou democrática. Sua posição de dependência econômica frente aos capitais estrangeiros e, em especial, aos Estados Unidos, permitiu porém longa persistência de dúvidas sobre se existiria aqui ou não capitalismo.

A clarificação da composição heteróclita, que o capital-imperialismo permite identificar, nos leva admitir que, no bojo de sua expansão a partir dos pólos dominantes, em especial os Estados Unidos, se tenham constituído novos pólos também capital-imperialistas, embora subalternos. Tais resultados não foram necessariamente desejados ou fruto de uma atuação intencional de capital-imperialistas singulares, ou dos Estados, eventualmente mais propensos à modalidades neo-coloniais.

A incorporação ao capital-imperialismo ocorreu na medida em que o Brasil reunia algumas de suas condições econômicas fundamentais: um ciclo avançado de industrialização e monopolização do capital, com a existência dos diferentes setores econômicos complexamente entrelaçados; um Estado plasticamente adaptado ao fulcro central da acumulação de capitais e com razoável autonomia frente a pressões emanadas por capitalistas singulares ou por um único setor econômico, capaz de garantir a manutenção complexa da acumulação expandida através de uma atuação externa consequente; formas razoavelmente estáveis de contenção das reivindicações igualitárias populares.

Em outros termos, a situação atual do Brasil parece resultar de novos processos de incorporação de países retardatários. Agudizam-se antigos contrastes, como o escasso suporte popular interno para tais vôos, tanto pela penúria de grande parte da população brasileira, quanto por uma forte tradição popular antiimperialista.

Contradições intraburguesas não são pequenas, dado o controle estatal das burguesias internas contraposto ao poderio externo e interno dos capitais estrangeiros e de suas formulações políticas, culturais e ideológicas. O contorcionismo realizado pelas burguesias brasileiras e suas associadas forâneas, entre a obediência à dependência subalterna e as necessidades de sua própria reprodução enquanto classe capital-imperialista com base no Brasil volta a se constituir em fonte de tensão entre setores burgueses, expressos por exemplo nos debates que cercam a condução da política exterior brasileira.

Tais debates tendem, entretanto, a configurar-se como oposições fictícias, isto é, como uma disputa de posições no interior do mesmo terreno, constituindo-se uma direita dura para para fora mas com algum alívio social no contexto interno, e uma esquerda para o capital, mais maleável e plástica no trato com os países periféricos, embora olvidada de suas próprias origens, ou das reivindicações igualitárias. Tornam-se assim apenas a face esquerda e direita do mesmo processo (Coelho, 2005).

A democracia, demarcada como processos eleitorais nos quais entram em jogo os direitos civis, políticos e sociais, mas não a existência do capital, embora resulte de conquista significativa das lutas sociais desde o século XIX, foi desde seus primórdios fortemente domesticada e domesticadora. Sob o capital-imperialismo travou-se uma enorme batalha em torno de sua limitação, para adequá-la às condições da expansão internacional do capital sob a Guerra Fria, o que permitiu período de prolongado alívio às classes trabalhadoras dos países centrais e seu aceno distante aos demais países. Uma vez consolidadas tais condições – internacionalização da propriedade do capital e de suas condições de exploração, sem prejuízo de sua base estatal, em paralelo ao encapsulamento nacional dos trabalhadores – as pressões expropriatórias voltaram a incidir, sempre de maneira desigual, mas agora voltadas também contra as populações dos países centrais.

Gradualmente, as exigências de socialização da política nos âmbitos nacionais deixavam de corresponder à socialização efetiva do processo produtivo, posto que este tendia a ocorrer crescentemente em âmbitos inter-trans-multi-nacionais. Esse fator opera como potente limitador do alcance das lutas dos trabalhadores e dos setores populares e como fermento de racismos e de xenofobias.
 
Não obstante, a questão democrática continuou atravessando todo o século XX e persiste no século XXI como elemento ideológico, político e cultural fundamental, como aspiração das grandes massas populares nos mais diferentes quadrantes. Ora, suas condições fundamentais se transformaram. Em lugar de uma ampliação internacional do escopo democrático, ocorreu seu enrijecimento nos quadros estatais, inclusive nas situações de unificação entre países, como a da União Européia. Reafirmava-se a luta eleitoral como a única possível e legítima, ainda que essa via jamais tenha sido respeitada, como se observa através dos inúmeros precedentes abertos quando eleições geraram situações inadmissíveis para o capital (casos, por exemplo, na América Latina, como Granada, Chile, Haiti e, mais recentemente, Honduras; mas também na relação obscura com a constituição européia, diversas vezes recusada em plebiscitos).

O que Gramsci analisou para os Estados Unidos e a Europa de seu tempo, a constituição de aparelhos privados de hegemonia, se tornaria a forma cosmopolita por excelência da política do capital, organizada tanto nos diferentes planos nacionais, quanto em agências e entidades internacionais. Verdadeiras frentes móveis de ação internacional se multiplicavam, ao mesmo tempo procurando capturar as reivindicações igualitárias no plano internacional e reconvertê-las em formas anódinas ou, mais grave, em espaços de atuação lucrativa.
 
Apresentaremos alguns desses aspectos para o caso brasileiro, enfatizando o papel das lutas de classes e o crescimento peculiar da sociedade civil como espaço de embates sociais e de dominação. Esta vem se constituindo em locus privilegiado de elaboração de estratégias de convencimento burguesa voltadas para a organização de uma

sociabilidade adequada ao enorme salto para a frente na escala da acumulação de capitais realizado internamente. Em outros termos, estamos lidando com a construção de uma hegemonia burguesa no país, voltada para assegurar a governabilidade para o capital (estabilidade das regras do jogo econômico), qualquer que seja sua origem nacional, tanto para sua atuação interna quanto externa. Para compreender tais modificações, é essencial apresentar a forma histórica peculiar da ampliação seletiva do Estado realizada no Brasil, através da expansão de aparelhos privados de hegemonia patronais e burgueses integrados ao Estado, contraposta a extrema repressão dirigida contra as formas da associatividade popular.
 
 
 

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