O corpo

Tempos de vivência do supérfluo

O corpo industrial

Esse conjunto de práticas físicas que violentam um corpo posturalmente frágil são marcas de um capitalismo impiedoso
 
 
Enquanto componente da História humana, a história do corpo não pode deixar de ser atendida na sua relação muita significativa com o capital e a industrialização.

Texto escrito por  Luís Coelho


Apesar de ter sido relegada para segundo plano por um ainda bem vivo platonismo milenar, a historicidade corpórea não deixa de se consubstanciar como significante, ainda mais porque existe um paralelo entre a actividade laboral e ocupacional humana e a forma como o corpo é usado, tratado e investido; paralelo que expressa quase sempre uma noção de instrumentalização, num objecto corporal que foi tantas vezes fortemente maltratado, seja num sentido utilitário, seja num sentido mais abstracto.


 Se numa época feudal o corpo foi usualmente escravizado (mas ainda mantinha o seu contexto natural de inserção), numa época posterior, iniciada com a primeira revolução industrial, o corpo não deixou de ser usado primacialmente como uma máquina capaz de produzir e fabricar (correspondente ao que Hannah Arendt designa de homo faber), e posteriormente como invólucro de conservação de energia e conversão e propulsão (homo motor), o que designa que o corpo foi tratado em função da sua utilidade produtiva, transformando-se numa máquina mecânica naturalmente desenraizada.

Esta época de modernidade já concebe o corpo humano como um sistema biomecânico que tem determinadas funções. Quando avariadas essas funções, o corpo deixa de possuir qualquer sentido, e uma figura de autoridade (médica) precisa de restaurar a função em perda. Já aqui, tanto a funcionalidade quanto a saúde do corpo apelavam a um conjunto de relações de poder (aqui é relevante o trabalho de Foucault) e à sempre inexistente relação de autonomia para com os «mecânicos do corpo».

Por outro lado, na época actual de pós-modernidade e de «hiperconsumo» (Lipovetsky), o corpo perdeu parcialmente o seu estatuto de máquina produtiva, exceptuando claro as profissões fortemente manuais, mas ainda assim não perdeu o estatuto de «corpo industrial» ou «corpo do capital». É que, na verdade, novas «indústrias culturais» agitam estes tempos de vivência do supérfluo...

Perseguir o efémero

Certas terapias, como o Wellness ou determinadas medicinas não convencionais, assim como o Fitness, esse conjunto de práticas físicas que violentam um corpo posturalmente frágil, são marcas de um capitalismo impiedoso em que o objecto corpóreo passa a funcionar como um receptáculo passivo da efemeridade. Efemeridade, seja pelo prazer alienante a que se induz o corpo (capaz de funcionar como um antídoto para a sofreguidão dos dias de trabalho e também para a necessidade de manter a necessária alienação face ao poder do determinismo liberal), seja pela mistificação a que se submetem terapêuticas que tentam a subjugação do cliente/doente face ao poder de uma prática «divina» ou «mágica» (tendo como intermediários agentes do «poder», que fazem uso do dogma ou até mesmo da «banha da cobra»), artifício de um sempre inebriante e sufocativo marketing de pendor hipnótico.

Em particular, o Fitness reduz o corpo vivido e com história a um mero artefacto que só importa no sentido quantitativo... Um corpo que deveria ser objecto histórico e fenomenológico, no sentido em que é fenómeno sempre complexo, único e irrepetível, necessariamente criativo, intencional e inventivo, é transformado num vale de capacidades e classificações, numa lógica que é a do resultado e nunca a do processo (quando, no fundo, o caminho importa sempre mais que o destino...). O corpo é reduzido a um desempenho quantificável, quando só deveria ser visto enquanto ente em constante renovação heurística...

É este corpo, que é aparentemente vivido e experienciado, mas na verdade não verdadeiramente integrado, que tende a ser negado todos os dias, numa cultura que é, por natureza, de negação e desaproximação do Eu. Merleau-Ponty referia a dicotomia «Tenho um corpo» versus «Sou um corpo». É pouco dubitável que a primeira parte da dicotomia continua a vencer o estatuto do corpo como parte da própria identidade.

O corpo expressivo, o corpo intencional, o corpo cúmplice que ama e se associa em comunidade... O corpo livre de paternalismos e de artifícios quiméricos... O corpo feito comuna... É este corpo global que propende à verdadeira descoberta do sentido de um Eu verdadeiro para consigo e para com os outros.

Fonte: Avante!

O Mafarrico

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