O milagre econômico soviético

O milagre econômico soviético
por Valentine Katassonov 1
"Dificilmente se poderá discordar dos autores no que respeita às consequências da destruição da «Corporação Econômica URSS». Apenas se pode questionar se tal destruição ocorreu instantaneamente, no momento da dissolução da URSS, em Dezembro de 1991. Na verdade, o processo de destruição começou antes, nos anos 60 do século passado, e prolongou-se durante quase três décadas."
"A economia de Stáline passou o teste do tempo. Caso não se seja um opositor preconceituoso ou um inimigo da Rússia, então deve-se reconhecer que a economia de Stáline permitiu assegurar a superação do atraso econômico secular do país, tornando-o a par dos EUA na maior potência econômica do mundo; criar um complexo econômico nacional unificado que a tornou independente do mercado mundial; vencer a Alemanha e os países da coligação hitleriana; garantir o aumento incessante do bem-estar do povo, na base da redução consequente dos custos da produção; mostrar a todo o mundo a ineficiência da chamada economia de «mercado» (capitalista) e reorientar muitos países para a chamada «via não capitalista de desenvolvimento»; garantir a segurança militar do país através da criação da arma nuclear.

A mim parece-me que isto basta para se poder compreender mais em pormenor o que é a «economia de Stáline». Não o fazemos por mera curiosidade, mas porque vemos que a Rússia atravessa uma séria crise econômica. O conhecimento da economia de Stáline permite-nos encontrar mais depressa a saída para os impasses de hoje"

Em 1913, o peso da Rússia na produção industrial mundial era de cerca de quatro por cento. Em 1937 já representava dez por cento. Em meados dos anos 70 este indicador elevou-se para 20 por cento e manteve-se neste nível até ao início da perestroika. Na história da União Soviética os períodos mais dinâmicos foram os anos 30 e os anos 50. O primeiro período foi o da industrialização, conduzida nas condições da «economia de mobilização». Em meados dos anos 30, a URSS tornou-se o primeiro país da Europa e o segundo no mundo em termos de produção industrial, apenas atrás dos EUA, mas muito à frente da Alemanha, da Grã-Bretanha e da França. Em três quinquênios incompletos foram construídas 364 novas cidades, erguidas e colocadas em funcionamento nove mil grandes empresas, o que é um número colossal: cerca de duas grandes empresas p or dia!

Naturalmente que a economia de mobilização exigiu sacrifícios e a utilização máxima de todos os recursos. No entanto, na véspera da guerra, o nível de vida do povo era substancialmente mais elevado que no arranque do primeiro quinquénio. Todos nos recordamos da conhecida frase de Stáline de que a URSS estava atrasada 50 a 100 anos em relação aos países industrializados e que a história nos concedia uma década para recuperarmos este atraso, em caso contrário seríamos esmagados. Estas palavras, pronunciadas em Fevereiro de 1931, são surpreendentes pela sua precisão histórica: o desfasamento é de apenas quatro meses.

O segundo período é o do desenvolvimento econômico na base do modelo que se formou após a II Guerra, em cuja definição Stáline participou activamente. Por inércia, este modelo econômico continuou a funcionar ao longo de uma série de anos depois da sua morte (até ao momento em que se iniciaram as «experiências» de diversos tipos de N.S. Khruchov). No período de 1951-1960 o Produto Interno Bruto da URSS cresceu duas vezes e meia, a produção industrial mais de três vezes e a produção agrícola cerca de 60 por cento. Se em 1950 o nível de produção industrial da URSS representava 25 por cento em relação aos EUA, em 1960 constituía já 50 por cento. O Tio Sam dava sinais de nervosismo, dado que estava a perder definitivamente a competição econômica com a União Soviética. 

O nível de vida dos soviéticos crescia ininterruptamente, apesar de o país destinar para o investimento uma parte do PIB muito mais importante do que os EUA e outros países ocidentais.

O período de 30 anos da nossa história (do início dos anos 30 ao início dos anos 60) pode ser designado de «milagre econômico» soviético. Neste período incluem-se os anos da II Guerra e da subsequente reconstrução da URSS. O nosso país foi capaz de vencer Hitler e toda a sua coligação. Isto não foi apenas uma vitória militar, mas também econômica. Depois da guerra, no período da reconstrução do país, fomos capazes de recuperar o nível anterior à guerra mais rapidamente que os países europeus, bem como de criar um «escudo nuclear», que tinha uma importância vital para o país nas condições da «guerra-fria» declarada pelo Ocidente. 

Nos anos 60 começámos a perder a dinâmica econômica que tinha sido criada no período precedente. E, em meados dos anos 70, começaram a tornar-se visíveis sinais da chamada «estagnação», com perdas no manancial de desenvolvimento interno que eram camufladas com os petrodólares que inesperadamente entraram no nosso país. A partir de meados dos anos 80 começou a ser destruído o que ainda restava do modelo econômico criado nos anos do «milagre econômico».

Stáline – um tema tabu

Não sou o primeiro a debruçar-me sobre o «milagre econômico de Stáline». Para explicá-lo, outros autores sublinham justamente que foi criado um modelo fundamentalmente novo, distinto do modelo de «economia de mercado» do Ocidente (modelo de economia capitalista).

Os primeiros anos da história soviética foram marcados pela economia de «comunismo de guerra» (1917-1921). Trata-se de um modelo particular, que evidentemente não tem nada em comum como o «modelo de mercado» (mais que isso, é considerado com o antípoda do mercado). Mas também não pode ser chamado de soviético. Alguns autores, por incompreensão ou deliberadamente, tentam colocar um sinal de igualdade entre a economia do «comunismo de guerra» e a «economia de Stáline». Se quiséssemos personificar a primeira, então deveríamos chamá-la economia de Lénine-Trótski. Elementos do modelo de «economia de mercado» existiram apenas no período inicial da história da URSS (o período da NEP: 1921-1929) e na sua fase final (a perestroika de M.S. Gorbatchov: 1985-1991). Ou seja, ao todo cerca de 15 anos. Se quiséssemos personificar este modelo, então poderíamos chamá-lo simbolicamente de economia de N. Bukhárine-M. Gorbatchov. Recordo que Nikolai Bukhárine era considerado nos anos 20 o ideólogo principal do partido e bateu-se pela construção do socialismo e do comunismo precisamente com base nos princípios de mercado. Depois tornou-se um membro activo da «nova oposição», que combateu fortemente o modelo proposto por Stáline e seus partidários (o «modelo de Stáline»).

Há ainda um intervalo de tempo de aproximadamente 25 anos (1961-1985), o período da chamada «estagnação», no qual não vigorava ainda o modelo de mercado, mas em que o modelo soviético foi sendo lentamente minado a partir do interior, com a ajuda de diferentes «aperfeiçoamentos parciais», que não aumentaram a sua eficiência, mas apenas o desacreditaram. Tudo para que no final da existência da URSS os «mestres-de-obra da perestroika» pudessem afirmar a plena voz: «o modelo soviético é ineficiente, é preciso substituí-lo pelo de mercado». Se quiséssemos personificar a «economia da estagnação», então deveríamos chamá-la a economia de Khruchov-Bréjnev-AndrópovTchernenko.

Deste modo, de toda a história de 74 anos de existência da URSS (1917-1991), o período do «milagre econômico» durou no máximo três décadas. Este período é marcado pela permanência no poder de I.V. Stáline. É verdade que entre 1953 e 1960, Stáline já não existia. Mas a economia criada por ele continuava a funcionar, sem sofrer grandes alterações. Por isso este período de 30 anos (1930-1960) pode ser chamado de época da «economia de Stáline», e as realizações económicas deste período de «milagre econômico de Stáline».

Hoje, no nosso país, domina o alegado «pluralismo» de opiniões. É natural que alguns encontrem defeitos no modelo soviético e prefiram o modelo da «economia de mercado».Mas não deixa de ser surpreendente que 99,99 por cento de toda a informação sobre economia sejam dedicados à «economia de mercado» e apenas 0,01 por cento da informação esteja relacionada com o modelo soviético. Além disso, nos materiais publicados, artigos e livros, não há praticamente uma descrição pormenorizada desse modelo, redundando tudo numa «crítica» vazia e na tradicional conclusão: «é uma economia de comando-administrativo». Não se encontra qualquer definição inteligível de «economia de comando-administrativo», com excepção de que é o antípoda da «economia de mercado».

Parece que foi o economista Gravil Popov, um dos mais acérrimos defensores do mercado, quem inventou este rótulo na alvorada da perestroika. «Economia de comandoadministrativo» é uma espécie de veredicto que dispensa fundamentação. Penso que o silenciamento do tema do «modelo econômico soviético» tem uma explicação muito simples: uma análise comparativa séria dos dois modelos é extremamente desfavorável aos que proclamam a ideologia da «economia de mercado». Tal é a política do «Comité do Partido de Washington».

Tentar avaliar a economia de Stáline na base dos critérios da «economia de mercado» e nos princípios do liberalismo econômico é um exercício inútil. Estava em curso uma guerra contra a URSS, que por vezes se tornou visível e tangível (a Guerra da Finlândia, Khalkhin Gol, a II Grande Guerra), outras vezes tomou formas implícitas e camufladas. Vencer uma tal guerra observando as regras da «economia de mercado» seria o mesmo que um boxista
vencer um combate no ringue com os olhos tapados.

A essência da economia de Stáline

A essência do modelo soviético (1930-1960) pode ser resumida aos seguintes traços principais: propriedade social dos meios de produção; papel decisivo do Estado na economia; direcção centralizada; planificação directora; complexo econômico nacional unificado; carácter mobilizador; auto-suficiência máxima (sobretudo no período em que ainda não havia campo socialista); prioridade aos indicadores naturais (físicos), (os indicadores de valor desempenham um papel auxiliar); carácter limitado das relações monetário-mercantis; aceleração do desenvolvimento dos ramos da indústria do grupo A (produção de meios de produção) em relação aos ramos do grupo B (produção de bens de consumo); combinação de estímulos materiais e morais ao trabalho; inadmissibilidade de rendimentos não provenientes do trabalho e acumulação individual excessiva de bens materiais; garantia da satisfação das necessidades vitais a todos os membros da sociedade e elevação incessante do nível de vida; apropriação social dos resultados da produção, etc. 

O carácter planificado da economia merece uma atenção particular. Com efeito, os detractores do modelo de Stáline, ao utilizarem a expressão depreciativa «sistema de comando-administrativo», referem-se antes de mais à planificação da economia nacional, a qual se opõe ao chamado «mercado», expressão que esconde uma economia orientada para o lucro e o enriquecimento. No modelo de Stáline do que se trata é justamente de uma planificação directora, na qual o plano director tem o estatuto de lei e o seu cumprimento é obrigatório. 

Isto distingue-o dos chamados planos indicativos que foram utilizados depois da II Guerra nos países da Europa Ocidental e no Japão, os quais tinham um carácter orientador sob a forma de recomendações para os agentes econômicos. A propósito, os planos directores não são apenas característicos da «economia de Stáline». Eles existem ainda hoje. Onde? Perguntar-se-á. Nas grandes corporações. Por isso, se os detractores do «modelo de Stáline» gostam assim tanto da expressão «sistema de comando administrativo» deviam também criticar com o mesmo fervor as grandes corporações transnacionais como a IBM, a British Petroleum, a General Electric ou a Siemens. Em todas elas, em pleno século XXI, existe efectivamente um estrito sistema de comando administrativo, sem quaisquer impurezas «democráticas» ou de participação dos trabalhadores na administração.

Numa entrevista em 29 de Janeiro de 1941, Stáline assinalou que foi precisamente o carácter planificado da economia soviética que permitiu assegurar a independência econômica do país:
«Se não tivéssemos no nosso país (…) um centro de planificação que assegura  autonomia da economia nacional, a indústria ter-se-ia desenvolvido por uma viacompletamente diferente. Tudo teria começado pela indústria ligeira, e não pela indústria pesada. Nós demos uma volta às leis da economia capitalista, viramo-las de cabeça para baixo. Começamos pela indústria pesada, e não ligeira, e vencemos. Sem uma economia planificada isso seria impossível. Afinal como é que a economia capitalista se desenvolveu? Em todos os países as coisas começaram com a indústria ligeira. Porquê? Porque a indústria ligeira proporcionava mais lucros. Que interesse tem para capitalistas isolados desenvolver a metalurgia siderúrgica, a indústria petrolífera, etc.? O que lhes importa é o lucro, e era sobretudo a indústria ligeira que proporcionava lucros. Nós, pelo contrário, começamos pela indústria pesada, e aqui reside a razão pela qual não somos um apêndice das economias capitalistas. (…) A rentabilidade é uma questão que no nosso país está subordinada à construção, em primeiro lugar, da indústria pesada, a qual exige grandes investimentos por parte do Estado e, naturalmente, não é rentável no período inicial. Se, por exemplo, se entregasse a construção da indústria ao capital – a indústria das farinhas é a que dá maiores lucros, e a seguir ao que parece é a produção de brinquedos – então, o capital começaria por aqui a construir a indústria».2
O desenvolvimento acelerado dos ramos do grupo A (produção de meios de produção), em relação aos ramos do grupo B (produção de bens de consumo), não é apenas um slogan do período do «grande arranque» dos anos 30. É sim um princípio permanentemente em vigor, dado que não se trata aqui da «sociedade socialista» em abstracto. Do que se fala é da economia concreta da URSS, que se encontrava (e se encontrará num futuro visível) sob o cerco capitalista inimigo. Um cerco que procurará destruir a União Soviética tanto por meios econômicos como militares. Apenas um alto nível de desenvolvimento dos ramos do grupo A poderá garantir uma luta eficaz da URSS contra o cerco capitalista inimigo. A consideração consequente do referido princípio significa de facto que o modelo de Stáline é o modelo da economia de mobilização. Não podia ser de outro modo. Stáline fundamentou isto de uma maneira absolutamente justa ao formular a seguinte tese geopolítica: O conteúdo fundamental da época actual é a luta entre dois sistemas socioeconômicos, o socialista e o capitalista. 

É amplamente conhecido (das obras dos clássicos do marxismo) que a principal contradição do capitalismo é a contradição entre o carácter social da produção e a forma privada de apropriação. Assim, o princípio mais importante da economia de Stáline é o carácter social da apropriação, o que elimina a «maldita» contradição existente no capitalismo. O princípio da distribuição segundo o trabalho é complementado com o princípio da apropriação social. Em concreto, isto significa que o sobreproduto criado pelo trabalho é distribuído de forma bastante uniforme entre todos os membros da sociedade, através do mecanismo da redução dos preços de venda dos bens de consumo e serviços e através da dotação de fundos sociais de consumo.

A prioridade dada em primeiro lugar aos indicadores naturais (físicos) durante a planificação e a avaliação dos resultados da actividade econômica é outro princípio-chave. Desde logo porque os indicadores em valor eram pouco fiáveis (sobretudo na esfera da produção, não no comércio retalhista). Depois porque tinham um papel auxiliar. O lucro não era o indicador mais importante. O critério mais importante da eficiência era, não o aumento do lucro financeiro, mas a redução do custo unitário da produção.

A economia de Stáline como uma enorme corporação

O modelo soviético pode ser equiparado a uma corporação gigante chamada «União Soviética», que é composta por diferentes secções e sectores de produção, os quais trabalham para a criação de um produto final. Na qualidade de produto final analisa-se, não o resultado financeiro (lucro), mas o conjunto de mercadorias concretas e serviços, que satisfazem as necessidades pessoais e da sociedade. O indicador do produto social (e os seus elementos) expresso em valor desempenha apenas um papel orientador na realização dos planos anuais e quinquenais, e na avaliação dos resultados do cumprimento dos planos. Graças à divisão do trabalho, à especialização e à estreita cooperação obtém-se a máxima eficiência da produção de toda a corporação. Não tem sentido existir qualquer tipo de concorrência entre secções e sectores de produção. Tal concorrência apenas desorganiza o trabalho de toda a corporação e gera custos desnecessários. Em vez da concorrência há colaboração e cooperação no quadro do processo comum. Determinadas secções e sectores produzem matérias-primas, energia, pré-fabricados e componentes, dos quais no final se forma o produto social. Depois este produto comum é distribuído entre todos os participantes na produção. A distribuição e redistribuição do produto social não se efectuam ao nível das secções e sectores, salvo no que está definido.

Toda esta enorme produção, troca e distribuição são administradas pelos órgãos dirigentes e de coordenação da corporação «URSS». Incluem-se aqui o governo, múltiplos ministérios e departamentos. Em primeiro lugar os ministérios de ramos de produção. À medida que a estrutura da economia nacional se ia tornando mais complexa, o seu número crescia constantemente. No quadro de cada ministério da União ainda havia subsecções, chamadas direcções principais, e diferentes instituições territoriais nas regiões (em particular os ministérios das repúblicas da União). Órgãos como o Gosplan da URSS, o Ministério das Finanças, o Banco Estatal da URSS e outros desempenhavam também um papel de coordenação e controlo. Também estes tinham a sua rede territorial, nomeadamente com departamentos com designações idênticas ao nível das repúblicas da União. 

Refira-se a propósito que as grandes empresas ocidentais (sobretudo as transnacionais) ligadas ao sector real da economia utilizam um esquema semelhante de organização e administração. Não há quaisquer relações de mercado no seu interior, existe apenas uma contabilidade nominal baseada em preços de «transferência» (no interior da corporação). A diferença fundamental entre o modelo das corporações ocidentais e o modelo de Stáline é o facto de a corporação pertencer a proprietários privados e a sua actividade estar orientada antes de mais para a obtenção de resultados financeiros (lucro). Além disso, os resultados não são distribuídos entre os trabalhadores, mas apropriados pelos donos da corporação. É verdade que hoje este esquema de organização e administração da actividade das corporações está a ser abandonado. A razão é que, nas actuais condições do enorme desenvolvimento do sector financeiro da economia, a actividade produtiva deixou de ser competitiva e mesmo rentável. As corporações tradicionalmente ligadas à produção estão a reorientar a sua actividade para os mercados financeiros. Essas corporações financeiras estão organizadas de modo completamente diferente.

Devo dizer que encontrei comparações da economia de Stáline com as grandes corporações numa série de autores nacionais e estrangeiros. Eis uma citação de um trabalho recente:

«Muito antes do surgimento de corporações nacionais e transnacionais, a URSS já era a maior estrutura econômica corporativa do mundo. Os objectivos e funções econômicas corporativas do Estado estavam consagrados na Constituição. Enquanto corporação econômica, a URSS desenvolveu e pôs em prática um sistema científico de preços vigentes internamente, que permitiam utilizar eficientemente as riquezas naturais no interesse da economia nacional. Uma das particularidades deste sistema eram, nomeadamente, os preços reduzidos dos combustíveis, da energia e outros recursos naturais, em comparação com o mercado mundial (…)

A visão corporativa da economia, enquanto organismo integral, pressupõe a libertação de amplos recursos para o investimento, a defesa, o exército, a ciência, ensino e cultura, ao contrário das posições egoístas e de curto prazo dos sujeitos do mercado, para os quais o importante é embolsar rapidamente lucros. A rejeição da concepção do Estado como corporação econômica, a destruição das ligações entre ramos industriais e entre regiões, e o isolamento das empresas tiveram um efeito catastrófico na economia da Rússia».3

Dificilmente se poderá discordar dos autores no que respeita às consequências da destruição da «Corporação Econômica URSS». Apenas se pode questionar se tal destruição ocorreu instantaneamente, no momento da dissolução da URSS, em Dezembro de 1991. Na verdade, o processo de destruição começou antes, nos anos 60 do século passado, e prolongou-se durante quase três décadas. 

A «economia de Stáline» comprovada pela vida

A economia de Stáline passou o teste do tempo. Caso não se seja um opositor preconceituoso ou um inimigo da Rússia, então deve-se reconhecer que a economia de Stáline permitiu assegurar a superação do atraso econômico secular do país, tornando-o a par dos EUA na maior potência econômica do mundo; criar um complexo econômico nacional unificado que a tornou independente do mercado mundial; vencer a Alemanha e os países da coligação hitleriana; garantir o aumento incessante do bem-estar do povo, na base da redução consequente dos custos da produção; mostrar a todo o mundo a ineficiência da chamada economia de «mercado» (capitalista) e reorientar muitos países para a chamada «via não capitalista de desenvolvimento»; garantir a segurança militar do país através da criação da arma nuclear.

A mim parece-me que isto basta para se poder compreender mais em pormenor o que é a «economia de Stáline». Não o fazemos por mera curiosidade, mas porque vemos que a Rússia atravessa uma séria crise econômica. O conhecimento da economia de Stáline permite-nos encontrar mais depressa a saída para os impasses de hoje.

Sobre as «deformações» e «erros» da «economia de Stáline»

Naturalmente que uma série de princípios atrás referidos não foram realizados na prática real da construção da economia, na sua forma «pura». Por um lado devido a certos «desvios» conscientes à linha política de Stáline por parte de algumas figuras do Estado, por outro devido à fraqueza da «natureza humana» (por exemplo, debilidades no controlo de execução), e finalmente porque o próprio Stáline fez algumas correcções à sua linha política. Essas correcções foram feitas de forma intuitiva, ao passo que o aperfeiçoamento do modelo econômico deveria ter sido efectuado na base do aprofundamento teórico. Stáline tentou impulsionar o processo de desenvolvimento dessa teoria, nomeadamente ao escrever, em 1952, a obra Problemas Econômicos do Socialismo na URSS.

«O desconhecimento da teoria ser-nos-á fatal» – costumava dizer Stáline, e infelizmente estas palavras revelaram-se proféticas. O desvio acentuado e injustificado aos referidos princípios provocou a erosão e minou o modelo de Stáline. A erosão verificou-se no período 1960-1985. Alguns casos ocorreram logo na segunda metade dos anos 50, quando Khruchov começou a realizar perigosas experiências econômicas.

Pode-se dar muitos exemplos dessa erosão. Já falamos do princípio da prevalência dos indicadores naturais (físicos) na planificação e avaliação dos resultados da actividade econômica. Pois bem, a reforma de Kossíguine de 1965 começou a introduzir como parâmetro principal o indicador de produto bruto em valor (ou seja o volume da produção calculado segundo o chamado «método fabril»). Tornou-se assim possível e vantajoso empolar este indicador, ao mesmo tempo que a evolução dos indicadores reais (naturais) ficava cada vez mais longe do produto bruto expresso em valor.

O paradoxo é que a orientação para o lucro tornou a economia cada vez mais «gastadora». Problemas sérios na planificação foram camuflados. Formalmente os planos centralizados começaram a abranger uma lista cada vez maior de produtos intermédios e finais dos diferentes ramos da indústria, em comparação com a época de Stáline (isto tornou-se possível com a introdução das primeiras máquinas de computação eletrônica no Gosplan e em muitos ministérios). Nos diferentes níveis dizia-se que na prática da  planificação se estava a introduzir o chamado «método integral programado» Todavia, na vida real e a todos os níveis, os indicadores concretos do plano não eram definidos em função de quaisquer objectivos superiores, mas sim segundo o método que partia do nível «atingido» do ano anterior (do período panificado). 

Em toda uma série de aspectos a economia de Stáline não se enquadra no marxismo. Não houve qualquer fundamentação e aprofundamento teórico prévios deste modelo, que foi criado na prática, segundo o método da experimentação e do erro. Aliás, naqueles anos não havia sequer um manual de economia política do socialismo. A sua elaboração arrastou-se por 30 anos, e a primeira edição só surgiu em 1954, já depois da morte de Stáline. Note-se ainda que o manual contém contradições, pois procurou-se ligar as realidades da vida (da economia de Stáline) ao marxismo. Não era em vão que Stáline dizia aos seus correligionários: «Se para todas as questões procurarem respostas em Marx, fracassarão. É preciso que pensem pela própria cabeça».

O desmantelamento da «economia de Stáline»

Infelizmente, depois da morte de Stáline, os dirigentes do partido e do Estado recusaram-se pensar pela própria cabeça, preferindo orientar-se por dogmas do marxismo ou simplesmente agir por inércia, parasitando as realizações da «economia de Stáline».

Khruchov conseguiu debilitar a economia de Stáline, mas não conseguiu destruí-la. Um golpe muito mais sério foi assestado pela reforma econômica de 1965-1969, personificada então pelo presidente do Conselho de Ministros da URSS, A. Kossíguine. Por vezes também é designada como reforma de E. Liberman, um dos consultores de Kossíguine. O resultado foi um modelo que alguns críticos mais severos designam de capitalismo de Estado. A reforma de 1965-1969 transformou as empresas socialistas em produtores mercantis isolados, orientados para o lucro (o principal indicador do plano), e não em dar o seu contributo para a construção do resultado do complexo econômico nacional unificado. Em substituição do modo socialista de produção surgiu o modo mercantil de produção.

Depois da reforma de Kossíguine não houve praticamente mais tentativas sérias de aperfeiçoamentos econômicos durante quase duas décadas. Tão pouco houve tentativas para suspender a «experiência» mortífera de Kossíguine-Liberman. A economia afundou-se na «estagnação», apesar de a vida indicar com insistência a necessidade de verdadeiras mudanças para reforçar o país.

Na primeira metade dos anos 70, a URSS alcançou a paridade militar com os EUA e a NATO. Tendo isto em conta era possível e necessário corrigir as proporções do desenvolvimento dos grupos A e B, a favor do segundo grupo de ramos da indústria. Deveria ter-se acelerado o desenvolvimento de ramos como a indústria ligeira, a indústria alimentar, construção automóvel, produção de mobiliário, electrodomésticos e aparelhos radioeléctricos, assim como aumentar a escala da construção de habitações. Em vez disto, os investimentos foram direccionados para a construção da linha ferroviária Baikal-Amur, na ligação de rios, etc. Tanto mais que nessa época ainda veio a «ajuda» dos petrodólares (subida dos preços do «ouro negro» no mercado mundial em 1973). Mas em vez de se puxar pelo Grupo B, foi adoptada a linha de eliminar a escassez de uma série de artigos de consumo através das importações. A partir de 1985 começou o período de destruição deliberada da economia sob o slogan astucioso da «perestroika». Iniciou-se uma turbulenta transição do capitalismo de Estado para outro modelo de capitalismo, que se pode designar em igual medida de «proprietários privados», de «banditismo» ou «comprador». 

O «factor humano» e os «fins superiores»

O funcionamento eficiente da economia de Stáline dependia não só do modo consequente como os dirigentes da economia nacional aplicavam os princípios atrás enumerados da «economia de Stáline». Dependia ainda mais do grau de prontidão da sociedade e de cada um dos seus membros para participar na realização dos planos. Stáline compreendeu isto muito bem. Por isso, no seu tempo, formulou a tarefa tripla da construção do comunismo, que incluía:

a) O desenvolvimento por todos os meios das forças produtivas;

b) O aperfeiçoamento das relações de produção;

c) A formação do «homem novo».

Os princípios da «economia de Stáline» atrás analisados apontam o tipo de relações de produção necessárias, naquele momento histórico, para o avanço do país para o comunismo. A tarefa da formação do «homem novo» foi definida por Stáline de forma muito mais deficiente do que as primeiras duas componentes desta tripla tarefa. Não só pela ordem em que surge, mas também pela prioridade que lhe foi dada, ela aparece em terceiro lugar. Não obstante, muito foi feito no tempo de Stáline para realizar esta terceira tarefa. Os meios de informação de massas, a cultura, a ciência e a literatura subordinaram a sua acção ao objectivo de formar o «homem novo». O problema foi que o conceito de «homem novo» assentou no fundamento metodológico do materialismo marxista. Dêem-se as voltas que se quiser, mas nos esquemas marxistas o homem não é um fim, mas um meio. Tanto é assim que era designado com frequência de «factor humano», «factor de produção», «força de trabalho», «recurso laboral».4

Em meados dos anos 50 surgiu uma fórmula mais elaborada da lei fundamental do socialismo que definia como objectivo da economia socialista «a garantia do bem-estar e desenvolvimento integral de todos os membros da sociedade, através da mais plena satisfação das suas necessidades materiais e culturais crescentes, alcançada por via do crescimento incessante da produção socialista, com base no progresso científico-técnico». O marxismo não consegue propor outros fins mais «elevados» (antes de mais espirituais) simplesmente porque é puro materialismo. (…)

Mas é preciso dizer que no tempo de Stáline muito foi feito para que os cidadãos do País dos Sovietes se inserissem o mais plenamente possível no modelo da «economia de Stáline». Diz-se que usou métodos coercivos para impor esta economia. Sim, nos primeiros momentos isso existiu. Refiro-me à colectivização «voluntária-coerciva» da agricultura.

Mas não se vai longe apenas com métodos coercivos. O escravo não pode ser um trabalhador eficiente.

A partir de meados dos anos 30, Stáline seguiu uma linha de elevação por todos os meios do estatuto dos trabalhadores. Os incentivos materiais foram complementados com estímulos morais. Surgiu a emulação socialista (como antípoda da concorrência capitalista). Nos anos 30, o país foi dominado pelo movimento stakhanovista. Foram instituídos os títulos de «Herói do Trabalho Socialista», de «Trabalhador Emérito», de «Figura Emérita», etc. Em todos os níveis desenvolvia-se um trabalho de educação, orientado para o reforço da disciplina no trabalho, formou-se um espírito de colectivismo, de entreajuda, uma atitude de desvelo para com a propriedade socialista, etc. Combatia-se o parasitismo. Aliás, a luta consequente do Estado contra diferentes manifestações de riqueza e luxo provenientes de rendimentos ilícitos também consolidou a confiança das pessoas na justiça social e constituía um estímulo ao trabalho. Surgiu o movimento dos racionalizadores e inventores, no qual participaram não só engenheiros e técnicos, mas também milhões de simples operários.

Deve-se dizer que Stáline conseguiu em grande medida elevar o activismo laboral dos soviéticos, sendo que os métodos coercivos desempenharam aqui um papel secundário. O povo soviético aderiu ao «modelo de Stáline» (apesar de não imediatamente). Isto aconteceu precisamente porque esse modelo ia para além do estrito quadro da economia. Esse fim supra-econômico era a defesa do país da agressão externa. Depois da morte de Stáline, que legou a arma atômica ao povo soviético, o sentimento de ameaça externa passou para segundo e mesmo para terceiro plano (apesar de o Ocidente nos ter declarado a «guerra-fria»). Em primeiro plano foram colocadas as tarefas econômicas que decorriam da referida «lei fundamental do socialismo». Mas eis o paradoxo: objectivos meramente econômicos não consolidam e não mobilizam o povo, não revelam o seu potencial criativo, mas, pelo contrário, quebram, enfraquecem e anulam a sua criatividade edificadora. Esta, no melhor dos casos, transforma-se no chamado «empreendedorismo».5

Com objectivos estritamente econômicos, a «economia de Stáline» não funciona, fica condenada ao desaparecimento e à substituição por diferentes variantes do modelo de «economia de mercado».

Poderemos regressar à «economia de Stáline»? – Podemos se formularmos fins «superiores», supra-econômicos. Esses fins pairam hoje no ar. Neste momento seria crucial que alguém fosse capaz de enunciar esses fins em voz alta de modo a ser ouvidos pelo povo. Não só podemos, nós devemos regressar à economia de Stáline. Não nos devemos iludir: «a economia de mercado» condena a Rússia ao perecimento. 



Notas:


1 Valentine Iúrievitch Katassonov (1950), como já referimos num outro artigo aqui publicado (ver nota biográfica em http://www.hist-socialismo.com/docs/KatassonovEconomiaparalela. pdf), não é marxista, nem tão pouco materialista no domínio filosófico. No entanto, a objectividade da sua abordagem, apesar de insuficiente em vários aspectos e das objecções pontuais que levanta, é um contributo válido para o estabelecimento da verdade histórica. O presente texto resulta de uma compilação de oito artigos, publicados pelo autor ao longo do mês de Fevereiro de 2014, no portal www.km.ru. (N. Ed.) 

2 Conversa sobre o Manual de Economia Política (registo resumido), 29 de Janeiro de 1941, I.V. Stáline, Obras (em russo), ed. Pissatel, 1997, t. 15, p. 8. (N. Ed.). 

I.M. Bratichev, C.N. Krachninnikov, A Rússia Pode Tornar-se Rica!, ed. Graal, Moscovo,
1999, pp. 15-16. 

4 Como é evidente não subscrevemos esta posição do autor, cujo misticismo religioso deturpa a essência do marxismo. Ao contrário do que afirma, o marxismo é a única doutrina político filosófica que efectivamente coloca o homem como fim, libertando-o da opressão e exploração, e abrindo-lhe um horizonte de realização individual e colectiva. Esse ideal foi concretizado pela primeira vez na URSS, o que aliás, contraditoriamente, o nosso autor também reconhece. (N.Ed.)

5 É certo que a iminente ameaça externa obrigou o povo soviético a um esforço hercúleo para construir a sua defesa e vencer o inimigo. Todavia é uma explicação demasiado redutora da extraordinária mobilização social observada nos anos 30. O povo soviético tinha consciência da ameaça, mas o que o mobilizava era a defesa do seu sistema político, econômico e social, a perspectiva da construção do socialismo e do avanço para o comunismo. Eis pois o ideal supra econômico que, depois da morte de Stáline, foi esmorecendo, não por falta de promessas dos dirigentes, mas porque as palavras deixaram de ter correspondência nos actos e na realidade da vida. (N. Ed.) 




Tradução do russo e edição por CN, 26.02.2014


Fonte: Para a História do Socialismo 



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