Europa : Um sistema irreformável

Um sistema irreformável
por Miguel Viegas


"A actual crise tem profundas raízes na natureza do sistema financeiro erigido ao longo de décadas e com particular ênfase a partir da década de oitenta que marca o início da hegemonia do paradigma neoliberal monetarista da escola de Chicago. Este sistema assenta na capacidade exclusiva de criação monetária ex nihilo (do nada) atribuída aos bancos através do crédito. Os limites que existiam a esta criação monetária foram sendo desmantelados. Assim a taxa de reservas obrigatória (que os bancos devem ter junto do banco central para satisfazer os levantamentos dos clientes) foi fixada a dois por cento dos depósitos em 1999 e posteriormente baixada para um por cento (na China esta taxa é de 20 por cento). Uma vez que os bancos vivem da remuneração do crédito concedido, é óbvio que estes procuram maximizar os empréstimos. Está na sua natureza."
"O PCP tem como premissa fundamental a dissolução da União Económica e Monetária, a reconquista da nossa soberania monetária e a recuperação, por via da intervenção do Estado, do controlo público sobre o sector financeiro."
A actualidade da semana passada obriga-nos a voltar a falar do BCE e do Eurosistema. Com efeito, após oito anos de crise, o BCE anunciou um plano de expansão quantitativa, seguindo o exemplo da reserva federal e do banco de Inglaterra. De acordo com o anúncio de Mário Draghi, o BCE pretende comprar quantidades massivas de dívida pública detida pelos bancos à razão de 60 mil milhões de euros mensais até aumentar o seu balanço em 1100 mil milhões de euros.

Esta operação demonstra acima de tudo o completo fracasso de todas as medidas postas em prática pelo BCE ao longo dos últimos anos e que representam já muitos milhares de milhões de euros injectados no sistema financeiro. Além disso, o facto de acontecer passados vários anos de outras medidas revela profundas contradições no seio da UE acerca do mandato do BCE. 

O custo da cedência alemã foi o de deixar quase todo o risco de crédito desta operação para os bancos centrais nacionais que arcam sozinhos com 80 por cento dos riscos de incumprimento, mais uma transferência de riscos dos bancos privados para a esfera pública. No caso português, esta situação coloca legítimas dúvidas sobre a operação. Com efeito, sendo a compra realizada na proporção do capital que cada banco central nacional tem junto do BCE, isto implica em números redondos que a compra de dívida portuguesa poderia representar 24 mil milhões de euros. Sucede no entanto que o BCE já detém 19 mil milhões de títulos de dívida nacional. Uma vez que o BCE, de acordo com os seus estatutos não pode deter mais de 1/3 dos títulos de dívida emitidos por um Estado membro (Portugal tem neste momento 93 mil milhões de dívida titularizada), podemos desde já adiantar que esta medida terá relativamente pouco impacto no nosso País.

Esta medida revela igualmente a completa incapacidade do sistema em resolver as suas próprias contradições. A UE vive hoje uma situação paradoxal. Os países que podem emprestar não o querem fazer e aqueles que precisam de pedir emprestado não o podem fazer. Existe capacidade produtiva não utilizada, desemprego em massa e pessoas ávidas de consumir mas sem capacidade aquisitiva. Presa neste círculo vicioso, a UE persiste na sua cegueira de resolver problemas económicos com medidas monetárias e recusa usar a política orçamental como meio para intervir na chamada «economia real». Em vez disso, propõe este plano de expansão quantitativa voltando a encher os bolsos do sistema financeiro e limpando-o de riscos de incumprimento, sem qualquer garantia sobre o destino destes fundos e sem perceber que a falta de investimento, neste momento, não decorre da falta de liquidez mas antes da falta de perspectivas de crescimento económico que decorrem da diminuição da capacidade aquisitiva das massas. 

Natureza do sistema financeiro

Naturalmente que para nós, as causas são mais profundas. A actual crise tem profundas raízes na natureza do sistema financeiro erigido ao longo de décadas e com particular ênfase a partir da década de oitenta que marca o início da hegemonia do paradigma neoliberal monetarista da escola de Chicago. Este sistema assenta na capacidade exclusiva de criação monetária ex nihilo (do nada) atribuída aos bancos através do crédito. Os limites que existiam a esta criação monetária foram sendo desmantelados. Assim a taxa de reservas obrigatória (que os bancos devem ter junto do banco central para satisfazer os levantamentos dos clientes) foi fixada a dois por cento dos depósitos em 1999 e posteriormente baixada para um por cento (na China esta taxa é de 20 por cento). Uma vez que os bancos vivem da remuneração do crédito concedido, é óbvio que estes procuram maximizar os empréstimos. Está na sua natureza. E não havendo separação entre a actividade de retalho e a de investimento, sobressai outro factor de instabilidade que decorre das maturidades serem sempre mais curtas da parte dos aforradores em relação aos investidores. Não é por acaso que ¾ dos países membros do FMI (131 em 181) revelaram problemas graves do seu sistema financeiro entre 1980 e 1995.1 Mantendo-se a actual tendência depressiva, é natural que esta injecção de liquidez possa alimentar novas bolhas especulativas em vez de reanimar a economia real.

As necessidades de investimento são gritantes para fazer face aos novos desafios do presente e do futuro. Precisamos de repensar o nosso modelo produtivo, num quadro de escassez de matérias-primas e tendo como horizonte a redução drástica dos combustíveis fósseis. Só uma economia planificada, no quadro de uma política e um governo patriótico e de esquerda poderá estar à altura desta tarefa. O sistema monetário representa um instrumento fundamental que não pode ser deixado ao livre arbítrio e à voragem da iniciativa privada que já mostrou até à evidência do que é capaz. Como é concebível, por exemplo, que se impeça o BCE de financiar directamente o plano de investimento de Juncker, para imediatamente a seguir ser o mesmo BCE a injectar 1100 milhões de euros na banca e nos investidores institucionais? O PCP tem como premissa fundamental a dissolução da União Económica e Monetária, a reconquista da nossa soberania monetária e a recuperação, por via da intervenção do Estado, do controlo público sobre o sector financeiro. A história recente parece confirmar a justeza e premência desta orientação.



1 Lindgren, Carl-Johan, Garcia Gillian; Saal Matthew I. Bank Soundness and macreconomic policy. Washington, DC: IMF, 1996



Fonte: Avante



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