No Reino da Estupidez

 
No Reino da Estupidez
por António Iria Revez
«É hora de uivar, porque se nos deixarmos levar pelos poderes que nos governam e não fizermos nada para os contestar, pode-se dizer que merecemos o que temos».
(José Saramago)

"Einstein disse: «só duas coisas são infinitas, o Universo e a estupidez humana, mas não estou seguro quanto ao primeiro». "


O historiador holandês Matthijs Boxsel, autor da «Enciclopédia da Estupidez», defende que «ninguém é suficientemente inteligente para compreender a sua própria estupidez», acrescentando que «a nossa cultura é o produto de uma série de tentativas fracassadas de compreender a estupidez», e ainda que «a estupidez é a base da nossa civilização».


Seguindo esta linha de pensamento, creio que, na hora que passa Portugal estará no pelotão da frente no que concerne ao contributo para o avanço desta civilização que é o orgulho dos povos, comumente designada de ocidental e cristã. E isso sucede graças à sábia conduta dos nossos egrégios governantes, e ainda à prudência e sabedoria dos seus não menos ilustres conselheiros. É mais uma «obra velerosa» para a consagração daqueles que irão permanecer na memória dos portugueses para todo o sempre. São eles que, como exemplo da sua abnegação e do seu amor a Portugal e aos portugueses, são capazes de, «a bem da nação», ir mais alto e mais além do que aquilo que promete a força humana. Quando a troika diz mata, o governo diz logo esfola. O povo agradece, mas não era preciso tanto.


Logo que aquela senhora que foi ministra de Cavaco se saiu com o despautério de propor que para os insuficientes renais com mais de setenta anos o Estado deveria deixar de suportar os custos da hemodiálise, eu pensei que tinha sido atingido o «zenith» da órbita da estupidez humana. Assumo humildemente que errei.
 
Talvez isso tenha resultado do esquecimento momentâneo daquele pensamento de Einstein em que ele diz: «só duas coisas são infinitas, o Universo e a estupidez humana, mas não estou seguro quanto ao primeiro». Eu sei que para muitos economistas, particularmente aquela rapaziada que bebe a sabedoria pela gamela de Chicago, os números são tudo e os contribuintes são nada. Daí, a desumanização dos seus conceitos e a delirante colecção de receitas administradas às economias doentes.
 
Quando as coisas ficam mesmo feias, face à inoperância destes aprendizes de feiticeiro, são chamados os «especialistas» que a autoridade suprema do capitalismo põe à disposição dos clientes para os bem servir. Os apóstolos desta doutrina aparecem em grupos de três (vulgo troika), e aplicam aos doentes um tratamento de choque tipo chapa cinco, que pelos resultados se poderia equiparar àquilo que a sabedoria popular transformou no paradigma da ineficácia e da frustração – a banha da cobra.
 
Se temos realmente de conviver com o elogio bacoco destas barbaridades, ao menos que elas sejam sentenciadas por tecnocratas da treta, pois quem já é pecador, enfim. Mas os médicos, Senhor? E ainda por cima pelo chamado Conselho de Ética para as Ciências da Vida? É isto possível? Pode o Conselho de Ética dizer claramente «a ética que se lixe»? Pode o presidente do dito conselho, na sua qualidade de médico, putativo discípulo de Hipócrates, Apolo, Esculápio, Higia e Panaceia, assinar por baixo um qualquer parecer que nega a prescrição de «medicamentos caros» a pacientes com «curta» (onde começa e acaba a curteza?) esperança de vida? Pode um membro da Ordem dos Médicos subscrever esta suprema hipocrisia, lamentável a todos os títulos, que o tratamento nesses casos deve ser negado «com toda a transparência e colaboração do doente»? Podem os médicos alinhar com aqueles que defendem que os velhos, os doentes crónicos, os pensionistas, os desempregados e toda a espécie de deficientes é que devem pagar a crise, fazendo a única coisa de útil que deles se espera – morrer (e depressa)? Não faço mais perguntas porque sei muito bem que eles não são parvos nem ingénuos. Têm perfeita consciência de que são coniventes, cúmplices e conluiados com o crime que o ministro da Saúde planeia perpetrar contra o SNS, contra o povo, contra a humanidade.
 
Este parecer da Comissão de Ética era tudo o que o ministro precisava para dar cobertura a mais esta malfeitoria sem nome. Usasse eu tal adereço e tiraria o meu chapéu ao Bastonário da Ordem dos Médicos que, interpretando o sentimento da esmagadora maioria dos seus colegas, teve a coragem de, na hora, condenar vivamente esta atitude e envidar esforços no sentido de clarificar as águas.

Claramente Paulo Macedo está decidido a sentenciar um conjunto de medidas, com as ajudas e as cumplicidades que conhecemos, tendentes a inscrever o seu nome numa página de ouro da lusa história, ao lado de outros nomes não menos ilustres que aqui relembramos:
– Maldonado Gonelha, o homem que quebrou a espinha à Intersindical;
– António Barreto, o homem que partiu as pernas à Reforma Agrária;
– Mário Soares, o homem que suicidou a maioria de esquerda;
– Paulo Macedo, o homem que apertou o gasganete ao SNS.

A propósito desta competência do Macedo, veio-me à memória aquele conto com que Miguel Torga abre o seu livro «Novos Contos da Montanha», intitulado «Alma Grande». 
 
Se bem se lembram, a estória passa-se nos tempos da Inquisição, numa pequena aldeia onde preponderavam os cristãos-novos. Não obstante frequentarem a igreja católica, as pessoas professavam em segredo o judaísmo. Na hora da morte, com receio de que o moribundo pudesse soltar a língua perante o padre, sempre vigilante, que lhe viria inevitavelmente ministrar os últimos sacramentos, as famílias recorriam aos serviços do Ti Alma Grande que se encarregava de abreviar a morte do moribundo, antes que ele pudesse fazer confissões perigosas para a comunidade.
 
As mãos no pescoço e o joelho no peito eram o suficiente para que o morto encontrasse a paz antes da hora aprazada. Na peça, Miguel Torga revela-nos que certa vez um moribundo, de seu nome Isaac, não estava tão moribundo quanto parecia, e que por razões de natureza circunstancial, o Ti Alma Grande que tinha sido chamado para o que se sabe, não conseguiu levar a tarefa até ao fim. O Alma Grande chegou solenemente à casa de Isaac, onde à entrada havia gente em lágrimas, e com passos lentos e pesados dirigiu se ao quarto onde o paciente ardendo em febre agonizava sozinho. Depois de um primeiro olhar ambos ficaram cientes do papel que cada um iria desempenhar naquele encontro dramático, e após uma curta hesitação em que se mediram um ao outro, o matador avançou resoluto. Todavia, suspendeu o gesto de agarrar o pescoço da vítima, ao pressentir a entrada no quarto de alguém estranho, no caso o filho de Isaac, que iludira a vigilância dos adultos, perturbando assim, com a sua presença, a cena onde era suposto estarem apenas o assassino e a vítima, frente a frente. Foi esse incidente que salvou Isaac. Acabou por sobreviver e recuperar a saúde, mas jamais conseguiu esquecer que vira as garras da morte ao natural, pelo que era permanentemente assaltado por um sentimento de vingança. Passado tempo, o Ti Alma Grande encontrou a morte às mãos do homem a quem tinha tentado apressar o passamento. Morte assaz violenta, diga-se.

Aí está um epílogo que todos os algozes deveriam ter em conta, pois às vezes o Diabo tece malhas tão surpreendentes que, das quais, até nem ele próprio se lembraria.

ANTÓNIO IRIA REVEZ
 
 
 
 

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