A Esquerda e a Direita políticas, hoje. Sentido útil da utilização destes conceitos

A Esquerda e a Direita políticas, hoje
Sentido útil da utilização destes conceitos
por Alexandrino Saldanha

"Com efeito, a utilização de interpretações e significações diversas destes conceitos pela ideologia burguesa pretende esvaziar o antagonismo entre o conteúdo progressista da esquerda – numa perspetiva de superação do capitalismo através da luta pelo socialismo e o comunismo – e o conteúdo reacionário da direita, numa perspetiva de considerar o capitalismo como o fim da história. Assim, a socialdemocracia seria a esquerda."
 
Em concreto, defendemos que é de esquerda quem defende o socialismo e o fim da exploração do homem pelo homem; e que é de direita quem defende o capitalismo, independentemente do regime que o consubstancia.


1. A subversão de conceitos como forma de luta política

Uma vertente fundamental do domínio ideológico da burguesia, sustentado no seu domínio económico, é a da subversão de conceitos que explicam e fundamentam a luta pela superação do capitalismo, atribuindo-lhes os significados e as interpretações que mais interessam, em cada momento, aos objetivos da continuação desse domínio e da inerente apropriação individual do trabalho social.

“Já ninguém sabe como dar combate às técnicas de manipulação que invadiram o debate no espaço público. Convidado, perante milhões de telespectadores, a explicar por que motivo os seus militantes assassinaram um jovem comorense que passava perto deles numa noite de colagem de cartazes, o principal dirigente de um partido da extrema-direita francesa conseguiu criar a convicção de que os seus homens eram as vítimas e a vítima o culpado.”1

A propósito, refira-se que, já nos finais do século XIX, Engels abordou a questão da inexatidão científica da denominação “social-democrata”, designadamente, quando aplicada a um partido com um programa económico comunista: “Os nomes dos partidos reais (sublinhado de Engels) porém, nunca estão completamente certos; o partido desenvolve-se, o nome permanece”2.

Em Portugal e na atual e grave crise cíclica económica do capitalismo a subversão de conceitos (e a manipulação da palavra) é particularmente visível. Desde logo nas arengas políticas e económicas do governo e das organizações políticas da burguesia, quer das ditas socialistas/social-democratas, quer das liberais/neoliberais ou democratas cristãs, mas não só. Por exemplo, assistimos constantemente a discussões públicas, por vezes acaloradíssimas, sobre a situação política e perspetivas futuras de  desenvolvimento social. Mas quando a alternativa do socialismo é equacionada – pois na maioria das vezes é como se não existisse – é imediatamente caricaturada, para então se rechaçar tal caricatura e atirá-la para o baú das velharias ideológicas imprestáveis, pela esmagadora quantidade de comentadores e economistas da burguesia que enxameiam os órgãos de comunicação social.

Dos inúmeros exemplos da subversão de conceitos, há três que são recorrentes:
 

- Um, é o conceito de Estado3, designadamente na formulação de “Estado social”, como entidade acima das classes, isento, independente e ao serviço de todos é talvez o mais utilizado, designadamente na propaganda partidária e nas discussões político-ideológicas nos média, onde há sempre (ou quase sempre) o cuidado de afastar quem tem uma opção de classe assumida e a defende com convicção.
 
Daí que vejamos, até, altos dirigentes de organizações sindicais de classe convencidos de que há um mínimo de funções sociais que são inerentes à existência do próprio Estado (entendido não como Estado da burguesia/ditadura da burguesia, mas como entidade acima das lutas de classes) e que os órgãos criados por quem domina esse Estado, designadamente os Tribunais (maxime, o Tribunal Constitucional), conseguirão salvaguardar tais funções através do seu funcionamento e atividade normais. A realidade está a encarregar-se de ridicularizar esta conceção, o que se clarifica com dois exemplos: (1) a evidente existência de uma justiça para os ricos e outra para os pobres, que não a podem pagar; (2) a suspensão da Constituição da República pelo Tribunal Constitucional durante o ano de 2012.
 
Aliás, já Marx e Engels haviam concluído, em 1848, no “Manifesto do Partido Comunista ” que “O executivo do Estado moderno não é mais do que uma comissão para administrar os negócios coletivos de toda a classe burguesa4. Dito de outra forma, Engels reiterava, na obra “Do socialismo utópico ao socialismo científico”: "O Estado era o representante oficial de toda a sociedade, a sua reunião num corpo visível, mas só era isso na medida em que era o Estado classe que representava ela própria, para o seu tempo, a sociedade toda. Na Antiguidade o Estado dos cidadãos proprietários de escravos, na Idade Média o da nobreza feudal, no nosso tempo o da burguesia5.
 
- Outro, é o conceito de democracia – o sentido etimológico da palavra é o de domínio do povo – apresentado como contendo um valor intrínseco, como se numa sociedade de classes a democracia não fosse sempre uma democracia de classe: democracia para a(s) classe(s) dominante(s) e ditadura para a classe(s) dominada(s). O exemplo muitas vezes invocado da democracia na Grécia antiga pode ajudar a perceber a relatividade do conceito: uma democracia em que aqueles que tinham acesso à propriedade privada – os  cidadãos livres – podiam possuir escravos, em cuja mão-de-obra se baseava uma parte importante do processo produtivo. Assim, a democracia não o era para todos. De facto, numa sociedade de classes, a democracia só existe para a(s) classe(s) que detém(êm) o poder e é sempre uma ditadura (imposição) para a(s) restante(s) classe(s).
 
A este propósito, escreveu Lénine: “No mais democrático Estado burguês, as massas oprimidas deparam a cada passo com a contradição flagrante entre a igualdade formal, que a ‘democracia’ dos capitalistas proclama, e os milhares de limitações e subterfúgios reais que fazem dos proletários escravos assalariados"6. Referiu também que a democracia mais completa é “a forma política do Estado” "depois da revolução socialista”, “... que a democracia é também um Estado e que, consequentemente, a democracia também desaparece quando desaparece o Estado ” e “…esquece-se constantemente que a supressão do Estado é também a supressão da democracia, que a extinção do Estado é a extinção da democracia7. Com efeito, quando não houver ninguém para reprimir a democracia deixará de ter sentido.
 


- O terceiro, é o conceito que, por contraposição, abrange a esquerda e a direita políticas, e a confusão entre a definição e identificação destas conceções, questão sobre a qual me deterei a seguir.

Claro que o problema não se esgota nos três exemplos apontados, dos mais utilizados e visíveis. Muitos outros, como “liberdade”, “totalitarismo”, “desideologização”, ou solidariedade” também são diariamente utilizados com um significado ou outro diferente (às vezes o seu contrário), conforme os interesses de momento dos ideólogos defensores e (re)produtores da ideologia dominante.


2. A esquerda e a direita políticas


A utilização dos termos “esquerda” e “direita” para definir posições político ideológicas antagónicas e em confronto está associada à Revolução Francesa e derivou do lugar que os membros da Assembleia Constituinte (passou a ser assim denominada em 9 de julho de 1789) ocupavam em relação à presidência. À direita, os moderados e conservadores, partidários da monarquia; à esquerda, os elementos mais radicais da burguesia, então revolucionária.

Assim, em terminologia vulgar, a “direita” passou a identificar-se com o conservadorismo, o passado, a reação e a defesa de privilégios dos detentores da riqueza; e a “esquerda” com os valores do progresso, da razão, da igualdade, da justiça social. Mas, só assim identificadas, estas noções têm uma componente de grande indefinição e relatividade, pois não são diferenciadas por um critério objetivo, unívoco, científico, dado que, por exemplo, nada impede um conservador de se
afirmar partidário do progresso e da justiça social (o próprio conceito de justiça não é unívoco). E a utilização destas (e doutras) noções deverá servir para ajudar à compreensão e clarificação das diversas teorias e posições políticas, económicas e sociais que nos ajudem a compreender a sociedade e o mundo em que vivemos e não para nos confundir.

Daí o interesse em encontrar um critério objetivo de diferenciação.

O aparecimento e desenvolvimento do marxismo e do marxismo-leninismo deu um novo sentido à visão progressista do mundo, com a perspetiva do socialismo/comunismo e com a respetiva fundamentação teórico-científica da luta por uma sociedade sem a exploração do homem pelo homem. Esta teoria veio, assim, introduzir um elemento progressista concreto, que pode diferenciar objetivamente “direita” e “esquerda”: a defesa de uma sociedade sem exploração do homem pelo homem – ou, de uma forma mais comum mas menos rigorosa, a defesa do trabalho contra o capital.

Fora deste enquadramento teórico – independentemente de o socialismo científico não precisar deste conceito –, o recurso às noções de “esquerda” e “direita” tem o objetivo, não de ajudar à melhor compreensão da sociedade e do mundo, mas o de servir a ideologia dominante para melhor enganar os dominados.


3. O antagonismo esquerda/direita e a tentativa do seu esvaziamento substantivo

Com efeito, a utilização de interpretações e significações diversas destes conceitos pela ideologia burguesa pretende esvaziar o antagonismo entre o conteúdo progressista da esquerda – numa perspetiva de superação do capitalismo através da luta pelo socialismo e o comunismo – e o conteúdo reacionário da direita, numa perspectiva de considerar o capitalismo como o fim da história. Assim, a socialdemocracia seria a esquerda.

Desta forma, a abordagem da esquerda e da direita (e de políticas de esquerda e de direita) é sempre considerada em sistema capitalista. No limite, concluem que ambas têm o mesmo objetivo de melhorar a vida de todos; apenas difeririam na forma de o alcançar, sempre através da gestão do capitalismo, com maiores ou menores “preocupações sociais” – a luta ideológica (na vertente da luta de classes, por uma alternativa socialista) deixaria pois de ter sentido. Daqui resulta a chamada desideologização, eufemismo usado para escamotear a existência/imposição de uma única ideologia, a capitalista – dito de outro modo, passaria a existir apenas a ideologia da direita.

No seguimento deste raciocínio, deixaria de se justificar a utilização política destes dois conceitos, que deixariam de se referir a realidades diversas e mesmo antagónicas, com o apaziguamento ideológico daí resultante e a vitória da direita.

Uma variante desta teoria mantém a distinção entre esquerda e direita, mas faz a demarcação destes conceitos de forma idealista, subjetiva e não objetivamente: a esquerda teria uma maior preocupação com a justiça social e a retificação das maiores desigualdades sociais, quer as produzidas pelo mercado, quer as de género ou outras; a direita realçaria a liberdade individual, no âmbito económico e no funcionamento “livre” do mercado, considerando que esta seria a melhor forma de alcançar a referida justiça social e proceder à possível retificação das desigualdades.

Com base neste critério de distinção é possível considerar de esquerda ou de direita este ou aquele partido e esta ou aquela política, conforme o grau de exigência que cada um considera bastante, quer como justiça social, quer como retificação das desigualdades, quer como liberdade individual ou funcionamento “livre” do mercado. Isto é, por este critério pode considerar-se de esquerda ou de direita quase todas as forças políticas, pois é sempre possível equacionar uma maior ou menor possibilidade de defender as retificações das desigualdades ou a “liberdade” de funcionamento do mercado. E, então, tanto seria de esquerda um defensor da rutura com o capitalismo e duma via socialista, como um defensor do capitalismo com preocupações em minorar as desigualdades sociais ou em intervir, ainda que limitadamente, no funcionamento dos mercados.

Um exemplo paradigmático deste confusionismo, mesclado de pretensiosismo modernaço, redondo e bacoco, é aquilo que um ex-deputado e ministro do PS, Augusto Santos Silva, escreveu num artigo do Diário de Notícias de 2009/09/02: “A melhor maneira de me identificar ideológica e politicamente é dizer que sou de esquerda. Mas acrescento: o campo em que me revejo é a esquerda democrática e moderna, uma esquerda que abarca o grande arco do centro-esquerda e da esquerda, e que tem uma relação não dogmática, mas desenvolta, com o mundo e a sua novidade...” Claro que em todo o artigo, o conceito de democracia é abstratizado e absolutizado e não visto objetivamente, numa inevitável perspetiva de classe (pequeno-burguesa) – é a desenvoltura da “relação desenvolta com o mundo e a sua novidade”…

Ainda dentro desta concepção, há quem faça uma distinção entre a “esquerda” e a “direita”, por um lado, no plano político e, por outro, no plano económico (quanto às políticas económicas), admitindo que se pode ser de esquerda num plano e de direita no outro.

Esta salgalhada ideológica permite que o capitalismo possa apresentar como alternativas político-partidárias, as ditas de esquerda e de direita, mas sempre dentro do sistema capitalista – escamoteando que a alternativa de esquerda ao capitalismo é o socialismo. Percebe-se assim que denominem “de esquerda” os partidos sociais-democratas e os governos de maioria social-democrata – ou, levando mais longe a mistificação, a denominação seja a de “a esquerda”, considerando os partidos marxistas-leninistas como extrema-esquerda ou esquerdistas.

Esta é a filosofia adotada (com variantes diversas) pela ditadura da burguesia em regime de democracia burguesa, sobretudo popularizada e desenvolvida pela chamada Terceira Via, de queTony Blair e Anthony Giddens8 foram expoentes destacados e o filósofo italiano Norberto Bobbio (1909-2004) um dos seus principais teorizadores.

Perante esta barragem ideológica, torna-se necessário aprofundar cada vez mais a análise e denúncia das subversões concetuais e definir o mais objetivamente possível os conceitos a utilizar, para potenciar a luta contra a exploração do homem pelo homem, pelo socialismo e o comunismo.

Claro que, em capitalismo, a ditadura da burguesia pode dominar com medidas políticas mais “de esquerda” (mais direitos aos trabalhadores, menos desigualdades sociais…) ou mais “de direita” (funcionamento “livre” do mercado, mais exploração, …), dependendo sobretudo da relação de forças existente no país em causa. E para a esquerda (na concepção que defendemos) não é indiferente o regime em que se exerce a ditadura da burguesia – o exemplo da luta determinada dos comunistas contra o fascismo (ditadura terrorista do capital financeiro), antes, durante e após a Segunda Guerra Mundial, não deixa margem para dúvidas.

De qualquer forma, os trabalhadores têm de lutar para conquistar o máximo de direitos e regalias à burguesia, com a exigência de profundas transformações sociais. O alargamento e aprofundamento dessa luta, com a mais adequada política de alianças, potencia e abre caminho à revolução socialista.

4. Distinção objetiva entre “esquerda” e “direita”

A dicotomia esquerda/direita, para ter um sentido unívoco e útil – e não ser usada pela ditadura da burguesia como uma cortina de fumo para escamotear a alternativa à exploração capitalista – tem de ser definida através de um ou mais fatores objetivos.

Assim como na Revolução Francesa a esquerda era o conjunto dos que pretendiam levar até ao fim os objetivos da então classe revolucionária – a burguesia –, hoje, a esquerda é o conjunto dos que pretendem levar até ao fim os objetivos da classe revolucionária (acabar com a exploração) – o proletariado.

Está cada vez mais claro que os partidos socialistas e sociais-democratas da UE, assim como a política dos seus governos, defendem o capitalismo; por mais que se afirmem de esquerda e se mascarem com ideologia e princípios dúbios, sempre para imporem políticas de consolidação capitalista, antissociais e antitrabalhadores, muitas vezes mais reacionárias do que as de partidos que se afirmam de direita. E conseguem este objetivo, porque a sua retórica “de esquerda” tem um efeito deletério no movimento operário e sindical, contribuindo para desmobilizar a resistência e luta dos trabalhadores contra essas políticas.

Ora, atualmente, na luta feroz entre a barbárie capitalista e o socialismo, a fronteira entre esquerda e direita, como atrás se disse, só tem sentido e utilidade se for objetivamente delimitada pela defesa ou não – na teoria e na prática – do objetivo de superar o capitalismo e instaurar uma sociedade onde não exista a exploração do homem pelo homem.

Em concreto, defendemos que é de esquerda quem defende o socialismo e o fim da exploração do homem pelo homem; e que é de direita quem defende o capitalismo, independentemente do regime que o consubstancia.






Alexandrino Saldanha


Notas:
 
 

1-Da introdução da obra “A Palavra Manipulada”, de Philippe Breton, Editorial Caminho, Coleção
Nosso Mundo, 2002.


2-Referência e transcrição retiradas de “O Estado e a Revolução” de Lénine, em Obras Escolhidas em
três tomos, Ed. Avante!, 1978, tomo 2, pp. 276/277.

 




3-Lénine referiu que “a questão do Estado é uma das mais complexas, mais difíceis e, talvez, a mais embrulhada pelos eruditos, escritores e filósofos burgueses” – “Sobre o Estado” – Conferência na Universidade de Sverdlov, 11 de junho de 1919 – em V.I.Lénine, Obras Escolhidas em três tomos, Ed. Avante!, 1978, tomo 3, p. 177.


4-Marx-Engels, “Manifesto do Partido Comunista”, Obras Escolhidas em três tomos, Ed. Avante!,
1985, tomo I. p. 109.


5-Marx-Engels, “Do socialismo utópico ao socialismo científico”, Obras Escolhidas em três tomos, Ed.

Avante!, 1985, tomo III. pp. 162/3.


 
6-V.I.Lénine, em “A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky”, Obras Escolhidas em três tomos, Ed. Avante!, 1978, tomo 3, p. 17.

 
7-V.I.Lénine, em “O Estado e a Revolução”, Obras Escolhidas em três tomos, Ed. Avante!, 1978, tomo

2, pp. 234 e 277.
 8-Ver, de Anthony Giddens: “Para Além da Esquerda e da Direita” e “Para uma Terceira Via”.



Fonte: www.pelosocialismo.net



Mafarrico Vermelho

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