Liberdade de imprensa/liberdade de empresa - Censura e manipulação

Liberdade de imprensa/liberdade de empresa - Censura e manipulação
por CÉSAR PRINCIPE




"A Censura desocupou os edifícios oficiais e camuflou-se nas empresas de Comunicação, investindo nas respectivas funções e missões, já não a patente de coronel, mas a de bacharel. Isto é, o regime censório de fachada democrática, compelido a esconder as vergonhas do fascismo, acabaria por resolver as suas necessidades com esperteza e poupança: passou a exercer o Exame Prévio dentro do espaço empresarial e redactorial, dando lugar a uma nova figura executiva. Essa nova figura reconhecer-se-á no director-censor ou no censor-editor, hierarquizadores de evidências, manipulações e omissões. Este golpe de mestre tem permitido disfarçar a existência de um corpo censório, colando as duas peles (jornalista e censor) numa só pele, numa só pena e num só salário."
 


Tudo o que o homem não conhece não existe para ele. Por isso, o mundo tem para cada um o tamanho que abrange o seu conhecimento.Carlos Bernardo González Pecotche (1)
 

A consciência individual é anulada pela quantidade de informação empacotada.Edward W. Said (2)


Os actores e os actos da Censura no Regime Democrático adaptaram-se ao novo contexto. Quais as diferenças formais e funcionais entre a Censura do Estado Novo e a Censura do Novo Estado? Muitas há e não seria historicamente fundamentado nem intelectualmente correcto meter as duas no mesmo saco ou no mesmo Index. As vicissitudes e os desenganos deste ciclo democrático não justificam equiparação apressada nem cegueira relativamente às malhas e manhas da Nova Administração da Opinião Pública. Comecemos pelas alterações gerais do regime censório. No plano físico da Arquitectura do Poder, verificou-se uma mudança de domicílio ou uma deslocalização. Na verdade, no período do Estado Novo/Fascista, a Censura passou da fase castrense à fase paisana (não deixando, todavia, nos seus 48 anos, de incorporar militares na Guerra Civil da Informação-Contra-Informação), sedeando os Serviços Centrais no Palácio Foz (Lisboa) e em delegações distritais, com especial zelo no Porto, onde se editavam três centenários matutinos: O Comércio do Porto, Jornal de Notícias, O Primeiro de Janeiro. Conquistada a Liberdade de Imprensa, em 25 de Abril de 1974, naturalmente a Comunicação passou a espelhar a nova correlação de forças, elevando a rua a protagonista da revolução.
 
O modelo mediático popular e revolucionário alterar-se-ia a partir do 25 de Novembro de 1975, paulatinamente emergindo outro modelo, elitista e contra-revolucionário, corporizado na Rede Nacional-Imperial da Informação. Apontaremos algumas singularidades do actual paradigma censório. A Censura desocupou os edifícios oficiais e camuflou-se nas empresas de Comunicação, investindo nas respectivas funções e missões, já não a patente de coronel, mas a de bacharel. Isto é, o regime censório de fachada democrática, compelido a esconder as vergonhas do fascismo, acabaria por resolver as suas necessidades com esperteza e poupança: passou a exercer o Exame Prévio dentro do espaço empresarial e redactorial, dando lugar a uma nova figura executiva. Essa nova figura reconhecer-se-á no director-censor ou no censor-editor, hierarquizadores de evidências, manipulações e omissões. Este golpe de mestre tem permitido disfarçar a existência de um corpo censório, colando as duas peles (jornalista e censor) numa só pele, numa só pena e num só salário.
 
Os censores acobertam-se, agora, sob a capa da Carteira Profissional de Jornalista. O capitalismo procedeu a uma vingança a frio, com requintes sadomasoquistas: transferiu as atribuições e o odioso da Máquina Censória. Também evitou encargos com aposentos distintos. Assim se processou a ascensão e consagrou a promoção do Censor New: Leve dois e pague um. A chamada classe jornalística e os naipes de colaboradores movem-se neste território e neste contraditório. A selecção dos comunicadores assenta mais no mercado do que no mérito. A Liberdade de Empresa sobrepôs-se à Liberdade de Imprensa. Os grupos económicos assumiram o encargo político de triar os mensageiros e assessorar a gover(nação) e, amiúde, certa oposição, parceira da alternância, além de alienar a psicologia colectiva e desincentivar a democracia participativa, regendo-se pela máxima romana: o mínimo de pão e o máximo de circo. Lançados os dados, importa apurar em que medida os assalariados da República Mediática ou da coisa pública e publicada não serão cúmplices da lei da rolha do BCI/Bloco Central de Interesses. De facto, confrontados com os Códigos de Barras Deontológicas e os Artigos da Constituição, não poucos optam pela Caninização ou, no classificativo de Halimi, por reencarnarem em chiens de garde (3) ou cães de guarda de serviço,(4) variante filogenética de Frola. Claro que a relação cão-dono (intimidade pessoal, historial sanitário, cadastro de incidentes) diferencia os currículos e determina as sortes. Não é cão de estimação ou de colo apenas quem quer ou se põe a jeito ou rosna à passagem de um veículo da concorrência. O dono do cão distingue as raças e as rações. (5) Alguns tudo fazem para imitar a voz do dono, adoptando poses de elementos da família, outros manifestam a triste condição de cadelos.(6)

 
 
Sob intervenção externa

O regime censório de fachada democrática recruta, de preferência, jornalistas com vocação de serviço privado e intelectuais orgânicos. São os castrati ou meninos de coro mediático. Cantarolam na Casa do Senhor e manejam, com prontidão, o lápis azul do Profano Ofício, um lápis modernista: acoplado a um computador. A agenda doméstica conta ainda com a eficiência das patrulhas check-point, treinadas pela OMG/Ordem Mediática Global. Assim se organiza a cadeia de censura em sede económica, sem cuidar de normativos profissionais e referentes legais. Impera o Regulador Patronal em prejuízo do Regulador Constitucional, Regulador Social, Regulador Laboral. A Lei Fundamental inverteu-se: passou a ser a subscrita pela Assembleia Constituinte dos Onze, tantos são os grupos que mais ordenam no espectro mediático português: Cofina, Controlinveste, Estado, Igreja Católica, IURD, Impala, Impresa, Média Capital, Sojormédia, Sonaecom, Zon Multimédia. A nova ordem mediática implicou o varrimento do grosso dos jornalistas que tinha sobrado do 25 de Abril, esvaziando as redacções de memória e consistência.
 
O capitalismo expulsou das fileiras ou colocou na reserva os Capitães de Abril da Informação, fazendo ingressar jovens escolarmente anglo-saxonizados e profissionalmente desprotegidos. Geração que há anos, com algum acento paternal, cognominei de infantário electrónico. De resto, para o sistema, um jornalista não passa de um computador com carteira profissional. Assim se desenha um perfil de redacção que não investe em activos intergeracionais (éticos e dialécticos). A vida interna foi sendo esvaziada de personalidade e património. Quanto à interferência externa, atente-se nas Agências de Publicidade, enquanto persuasoras do relevante: modelam a Agenda Diária e o Design Editorial. A Primeira Página, outrora tida por sagrada, a roçar o intocável, foi sendo invadida e capturada pela Publicidade, de tal modo que, com frequência (sempre que o cliente ordena), é oferecida como Espaço de Simulação Noticiosa, de grande mancha editorial. Concorrendo com esta valência mediática, também é visível a actuação das Empresas de Comunicação (vocacionadas para o catering ou a comida pronta e embalada). Somam-se a estes actores subcontratados os Gabinetes de Imprensa/Relações Públicas que empenhada e graciosamente vazam os seus recados, por vezes, ipsis verbis. Junta-se a este complexo intervencionista a arma selectiva dos colaboradores. Cumpre-lhes elaborar teses de enquadramento e remates de emissão. São quase sempre os mesmos ou defendem quase sempre o mesmo. Para isso foram recrutados.

 


Filhos da pauta

O papel desta Redacção Colateral raramente diversifica ou enriquece o produto, já pré-condicionado pelo poder patronal e pelo treino educativo. No campo dos actores extraterritoriais, os órgãos de Comunicação acham-se ainda reféns (por critérios de redução de custos e colagem ideológica) das orquestrações mediáticas mundiais. Bastará um relance pela Imprensa Internacional de grande tiragem ou saltitar de canal em canal para surpreender um jornalismo made in, propagador de infopandemias. Tal transbordo inclui matéria informacional corrente e não só: se atentarmos na vertente musical, cerca de 70% da música emitida nas estações nacionais é de filhos da pauta anglo-saxónica. Queiramos ou não, temos as antenas censuradas e colonizadas. A generalidade dos jornalistas coopera na retransmissão por contágio sistémico ou indolência funcional. Uma minoria é especialmente adestrada para manter a massa crítica longe das redacções e audiências. Neste mercado de revenda, bom jornalista é aquele que agita tudo que o patrão lhe meta na mão. E não faltam agitadores voluntários ou apanhados na onda. As Redacções estão, de resto, formatadas como microondas fast-food, reaquecendo enlatados das Empresas de Comunicação, Publicidade & Marketing, dos Gabinetes, das Agências, das CNN`s, das conferências dos Novos Doutores da Lei e dos briefings dos Generais da Ordem do Império.
 

Livro de Estilo do Império

A telemanipulação cobre o vasto campo de conflitos de interesses (imperiais, regionais, nacionais), construindo enciclopédias do quotidiano, sobrecarregadas de calão incriminador ou branqueador: exemplos – de um lado, são apresentados fundamentalistas, extremistas, radicais, a violência fanática, irracional; de outro lado, aparecem soldados, exércitos, forças da ordem, missões humanitárias. Os massacres, os desalojamentos e a punição colectiva passam à categoria de acções de retaliação, operações de limpeza, raids de advertência, fogo amigo. A ignomínia vai até à reprodução pura e dura do dialecto imperial: milhares de civis têm sido liquidados sob a etiqueta de insurgentes, rebeldes, terroristas. Ataques por engano ou terror programado? O Livro de Estilo do Império Mediático contém fórmulas intencionalmente confusas e difusas, de geometria variável. Um das mais vertidas tem a ver com o conceito de comunidade internacional. De facto, há 245 entidades nacionais e 193 compõem as bancadas das Nações Unidas, mas, a todo o momento, um porta-voz do cânone invoca, em coro ou a solo, a CI, usurpando a legitimidade da ONU. O confronto israelo-palestiniano é pródigo em chavões: enquanto se mantém uma semântica penalizadora ou anuladora da resistência, reproduz-se a cartilha do invasor. Há órgãos que recorrem a terminologia hebraica para esbater a palavra Exército: o tshall entrou em Gaza. Assim, parece que algo de irreal se moveu na zona. A invasão é noticiada como uma passeata. A Euronews é viciada neste adoçante. Por seu turno, a CNN socorre-se de uma sigla: IDF. As Israel Defence Forces agradecem a discrição. O Estado Sionista também goza de cobertura e indulgência no que toca a Direitos Humanos. Raramente se interpela a existência de milhares prisioneiros palestinianos, incluindo centenas de adolescentes, enjaulados em Israel, na maioria, por haverem sido eleitos pelo seu povo ou por delito de manifestação ou por arremessarem uma pedra aos blindados do ocupante.(7)

 
Igualmente não suscita o mínimo de apreensão que o Estado Confessional de Israel possua 200 cargas nucleares mas o Estado Teocrático do Irão, que não possui nenhuma, é tema residente da Agitprop. (8) É proibido bater, mesmo com uma flor, em certos países e determinados terroristas. Outros exemplos? Os holofotes são afastados da Índia e da Arábia Saudita, pesos a considerar na balança dos negócios estratégicos (civis e armamentistas). A agenda cumpre voto de silêncio ou de benevolência perante estados párias, em muitas facetas dignos da Idade das Cavernas e da Baixa Idade Média. A Índia é rotulada como a maior democracia do mundo; a Arábia Saudita, tirania corrupta e escola exportadora de terrorismo, sobrevive como estado cliente e parceiro estabilizador da região. E outras certificações de boas práticas poderíamos citar, desde Marrocos à Guiné Equatorial, da Colômbia ao México, onde se normalizou a fraude cívica e banalizaram os atentados à vida e à decência económico-social. Se quisermos apontar exemplos de aplicação da regra das duas medidas a organizações, poderemos, mais uma vez, sintonizar a independente Euronews, mais Voz da América do que Voz da Europa. Dignifica e indulgencia como comando checheno o grupo terrorista-infanticida da escola de Beslan/Rússia/2004 (331 mortos). (9) Por outro lado, organismos ocidentais e brigadistas mediáticos empolam casos de Humans Rights em Cuba, na Venezuela, na Rússia, no Irão ou na China.

 


Dicionário Mediático Nacional

Para deteriorar sobremaneira este panorama de Liberdade de Imprensa também se está perante uma ofensiva contra a Língua Portuguesa e o seu lastro identificativo. Para lá do já exposto no que toca à radiodifusão musical, com os Camones a usurpar o verbo de Camões, assistimos a um Serviço Público & Privado em litígio com os repositórios do Idioma. A Censura da Competência manifesta-se através de pontapés nos Dicionários Correntes e na Gramática Elementar, socos na Sintaxe. Os dislates vão desde confundir mandado com mandato, detenção com prisão, lock-out com greve, discrição com descrição, modulação com modelação, baias com vaias, abstenção com abstinência, iminente com eminente, acidente com incidente, interino com interno, previdência com providência, tráfego com tráfico, evento com invento, encarregue com encarregado, aceite com aceitado, agnóstico com gnóstico, fundamentais com fundamentalistas, quotas com cotas, preparativos com preservativos, portista com portuense, reconstituir com reconstruir, embater com colidir, exultar com exortar, desmarcar-se com demarcar-se, retratar-se com retractar-se, despoletar com espoletar, conselho com concelho, soalheiro com solarengo, estofado com estufado ou surpreender contróis ao deparar com controlos, ver competividade na competitividade, inverosímel no inverosímil – e por aí adiante – até vender um arboredo em Mondim de Basto, construir pneus em Vila Nova de Famalicão ou abater um Boeing na Colômbia com um relâmpago ou localizar 700 toneladas de explosivos da ETA em Óbidos em vez de 700 quilogramas ou situar Katmandu na China ou reportar ferimentos de capacetes azuis na Líbia, facto ocorrido no Líbano. Outros chumaços vão desde a metalurgia uterina à ortopédica (dama de ferro, braço-de-ferro); passam pelas ciências de emergência médica (à beira de um ataque de nervos, impróprio para cardíacos); por indultos da autoridade ou jornalismo oficioso (a polícia foi ou viu-se obrigada a usar a força); pelo filosofismo voluntarista, animador das hostes (proibido perder, obrigatório vencer); pelo sensacionalismo, tremendismo social (casamento do século, assalto do século, furacão do século, chuvas diluvianas, pavoroso incêndio, arrasar); por expedientes de suspense militar-diplomático (visita-surpresa, comunicação de última hora). É evidente que todos nos socorremos de apoios frásicos ou próteses verbais, o que não tem a ver com erros crassos e pendor para o incorrigível e a vulgata saturante. Terminaremos a amostra com uma preocupação patriótica e um desejo pessoal: que a Língua Portuguesa não venha a ter o destino da língua de vaca, normalmente apreciada morta e com ervilhas. Haja esperança. Talvez o remédio chinês passe um dia a ser ministrado no nosso Hospital das Letras.(10).

Na República Popular da China, os pivôs estão sujeitos a uma coima por cada calinada. (11)
 

Palha na sopa

Na divisão de tarefas há que conferir super-relevo a pequenas tragédias e a médias delinquências do quotidiano, emprestando às instituições democráticas e aos formatadores da consciência social um álibi de humanismo e biodiversidade, destacando meia dúzia de micro-sujeitos de rosto humano no planeamento editorial. O capitalismo neoliberal-mediático concede umas fracções de antena a algumas vítimas e a alguns empurrados para as filas da penúria ou caídos nas sarjetas da carne ou nos alçapões da Casa da Moeda. Esta política de conteúdos produziu uma vaga de Jornalismo Esmoler e Judiciário apenas suplantado pelo Jornalismo Eroline. Uma grande fatia desta programação prende-se com dramatizações de choradinho garantido e diversões de rendimento mental mínimo. Na agenda de 2007, por exemplo, a adopção de uma menina (caso Esmeralda/sargento Gomes) ou o desaparecimento de uma criança inglesa (Madeleine/Algarve), não poupou meios logísticos e talentos redactoriais para fazer render o historiograma. Televisões houve que focaram 30 minutos a porta da Polícia Judiciária em Portimão.
(12) Para memória futura, aqui se deixa um balanço dos tempos de antena dedicados a Maddie nos primeiros seis meses: 104 horas, correspondentes a 2191 notícias. Assim distribuídos: SIC (43h33m19s), TVI (28h08m48s), RTP1 (28h08m48s), RTP2 (04h09m27s). (13) É certo e sabido que morrem ou definham ou se pervertem diariamente milhões e milhões de crianças, vítimas da fome, de falta de água potável, carências sanitárias, trabalho escravo, mendicidade organizada, exploração sexual, tráfico de órgãos, militarização bandidesca, violência doméstica-sistémica. Isto é, nuns cases, é importante sobrevalorizar, noutros cases, importa desvalorizar. Tratando-se, então, de crianças brancas e louras, os cases ganham projecção transfronteiriça. Eis-nos diante um modelo de dupla censura: pela copiosidade do tratamento e pela discriminação negativa. Outro exemplo de circo mediático: a obsessão sexual, a cabaretização do espaço público. Este bloco programático e publicitário alcançou foros epidemiológicos e de indigência depressiva. Ainda um pouco neste registo e no que respeita às coisas do baixo-ventre: o caso Casa Pia preencheu, em Fevereiro de 2003, 716 pontos da agenda das três televisões de bandeira nacional, num total de 968 blocos temáticos; em Maio, o gráfico da febre de écran Sexo & Crime já ia nas 794 peças; em Outubro, o massacre dos inocentes somava 900 agendamentos. As coisas do sexo são inesgotáveis. Aos espectáculos da libido ou das suas perversões adicionam-se arroubos de estádio, milagres da fé, concursos milionários para quem quiser pertencer ao Clube dos Crentes ou ao Clube dos Ricos, embora ninguém seja obrigado a ser devoto ou milionário. A liberdade de não ser milionário é, de resto, uma das Liberdades Fundamentais do Capitalismo. Eis o Programa da Nova Junta de Salvação Nacional: lixeiras a céu aberto, transformadas em Sopa dos Pobres de Espírito.

Censor: alguém cuja função é separar a palha do grão, a fim de ser publicada a palha.
(14)

 
A medida de todas as coisas

Também procuraremos dar um contributo para a focagem do futebolês como objecto de sedução e manipulação de massas: para a Comunicação Anti-Social, grandes clássicos não são os livros dos Grandes Escritores ou os autores de Grandes Obras mas os Jogos Benfica-Porto-Sporting ou os seus artistas, mágicos da relva ou da outra galáxia, alguns já feitos best-sellers, pois deram em escreventes ou confidentes de pena alheia, com direito a chefe de Estado em sessões de apresentação. De resto, o futebolês tornou-se a medida de todas as coisas, uma gazua semiótica para plebes acabrunhadas e classes emergentes. Exemplifiquemos: se ocorrer um incêndio, a zona afectada é correntemente avaliada em rectângulos da bola: ardeu o equivalente a 100 campos de futebol; se for projectado um empreendimento, logo se equipara aos custos de um ou vários dos colossos do EURO 2004: o montante rondará cinco estádios do Sporting de Braga. O futebolês tornou-se a língua mais falada em Portugal: não há assunto que gaste tanto papel e tanto potencial radioeléctrico. O português baixo-médio-alto encontra na cultura do esférico o seu PNA/Plano Nacional de Alfabetização. Importante é um jogador ter atitude. Uma boa percentagem do país jaz aos pés de Cristiano após jazer aos pés da Virgem. Portugal é convidado a ficar ao rubro ante qualquer partida de futebol, mesmo na Transcaucásia. Dir-se-á: o povo ama o circo. Certo: mas qual a razão para não se fixar outra medida-padrão e quem estará empenhado em fazer vingar e valer o futebolês e manter este nível de discurso rasteiro? O dito povo – que se saiba – não funda Jornais, Estações de Rádio ou de Televisão. Como não funda Escolas, Igrejas ou Estádios. Apenas sustenta as aparelhagens do Poder e as suas amarras com sufocantes contribuições, levianos votos e alegria sem trabalho.
(15)
 

O fantasma georgiano

Então, se à overdose de vulgaridades e atropelos se adicionar a dose de anticomunismo (primário, secundário, universitário) – eis um recheado prato do dia do censor e propagandista de turno. A infâmia de estalinismo instalou-se. O palavrão visa neutralizar quanto cheire a socialismo, afastado desta tentação as vítimas do capitalismo. É claro que a maioria absoluta dos anti-estalinistas nunca procurou saber o que foi ou não foi o estalinismo e alguns até têm diplomas nas paredes. Acontece que atirar um cidadão ou uma organização para as fossas abissais do estalinismo tem retorno assegurado entre os néscios. Não há agremiação ou sujeito de direita desavergonhada ou de esquerda folk que não dispare amiúde as flechas de caçadores de tesouros tumulares. Independentemente das máculas do estalinismo (de resto, expostas e verberadas pelo PCUS/XX Congresso/1956 e pelo PCP), o que se propõe é estigmatizar constantemente o PCP, alvo histórico de imputações de estalinismo. De facto, os besteiros poderiam usar outro veneno nas pontas. Deveriam, inclusive, virar-se para ditadores caseiros. Mas não. Tentam apagar o perfil delinquente do regime fascista. Irrompe por todo o lado (mediático, académico, editorial) uma vaga de revisionismo. O regime fascista é cerimoniosamente tratado como Estado Novo.

Estado Novo foi a qualificação que o próprio regime fascista melhor conseguiu para se justificar, copiando a emblemática dos congéneres italiano e brasileiro. Os novos estoriadores-opinoticiadores preferem a linguagem da Opressão. Excluem a linguagem da Resistência. Mas a recuperação do dialecto é mais vasta. Apreciemos outra recuperação lexical: a TVI tem o seu Diário da Manhã, um dos programas de aposta da independente estação. Diário da Manhã se intitulava o jornal oficial da ditadura. Poder-se-á admitir que um título não merece eterno anátema. Mote credor de reflexão. No entanto, um antifascista não escolheria este título: ainda não decorreu suficiente período de nojo histórico. Eis a Linha de Ruptura. Uns dirão: O fascismo existiu. Outros dirão: O fascismo nunca existiu. E José Estaline, então? Esse existiu mesmo. O georgiano é tema central da actualidade político-mediática. Parece que governou esta faixa atlântica durante decénios. Ainda se arrisca a ter um museu no Portugal Profundo. Maior concentração de miséria histórico-filosófica só é localizável na Reserva Madeirense, cujo líder ascendeu ao Governo pela finura de pensamento, ao ponto de considerar cubanos os habitantes, votantes e contribuintes do Continente. Entre estalinistas e cubanos, o discurso da classe política no Poder e da classe jornalística do Poder não passa de retórica caceteira e trapaceira.
 
Berlusconização em curso

Como dispor de veículos comunicacionais alternativos? Repare-se nas pirâmides multimédia, nas famiglias mediáticas, na berlusconização da Liberdade de Imprensa, isto é, de Empresa: a concentração, a censurização, a manipulação. O fenómeno transalpino é um modelo de jornalismo que leva ao extremo a tentação totalitária. Mas o modelo não se confina ao Império do Cavaliere Oscuro.
(16) Tende a reproduzir-se na esfera ocidental e mundial como estratégia de negócio e instrumento de domínio político. Não admira a pergunta, seguida de imediata resposta de um escritor e académico italiano, que residiu largos anos em Portugal:

O que é a liberdade de palavra? Em Itália, é-se teoricamente livre de dizer o que se pensa. O problema é onde.
(17)

No período capitalista-fascista, algumas publicações resistiram à Censura na clandestinidade e no exílio, no permanente sobressalto e salto; no regime censório do capitalismo de fachada democrática, a Imprensa não afecta ao sistema defronta-se com pré-condicionantes: desde logo, provida de parcos fundos, não alcança a penetração comunicacional dos Meios Estruturantes (TV, Rádio, Jornais, Revistas, Globonet). Também não obteria créditos da Banca nem poderia depositar expectativas no bolo publicitário. Para coroar este quadro de pré-carência, qualquer órgão que procure instituir uma autêntica vox populi acarretará com o cerco judiciário, já que os alvejados moveriam processos em carrossel a exigir indemnizações incomportáveis e a exigir, nos termos da lei, o apeamento das direcções, com jus à reposição da honra e do bom-nome. O caso de o diário ficou inscrito no Guiness do reyno cadaveroso. (18) Neste panorama, a Imprensa alternativa subsiste por militância dos redactores e dos leitores e raramente se afoita pelo Jornalismo de Investigação, a fim de não ser presa fácil da vendetta judiciária. A Imprensa livre e popular funciona como suplemento vitamínico e vital, alarme cívico e cultural, de momento, cercada pelo alarido dos Onze, os donos da bola mediática. Mas cerco não significa resig(nação) nem derrota. Cercos houve muitos e terminaram repelidos e levantados. O Jornal da História trará a notícia. Amanhã. Como já trouxe ontem. Em 1974. Por exemplo.
 

Notas

(1) Pecotche, Carlos Bernardo González (1901-1963). Filósofo, pedagogo, escritor. Argentino.

(2) Said, Edward W. (1935-2003). Académico, escritor, musicólogo. Palestino de origem.

(3) Halimi, Serge, Nouveaux Chiens de garde, Liber-Raison d`agir, 1997.

(4) Frola, Leann, Poynter Online, 05/01/2007.

(5) O autor deste artigo também publicou um tratado da especialidade: Curso de Chiens de Garde, AJHLP, 2012.

(6) Teixeira Neves, Nuno (1922-2007). Licenciado em Histórico-Filosóficas, impedido de leccionar, enveredou pelo jornalismo no JN (1957-1987). Em 1969, o Suplemento Literário, dirigido por NTN, foi extinto como reprimenda por haver integrado as listas da Oposição Democrática. Sofreu seis prisões por motivos políticos. Em 30/11/2007, o mesmo JN inseriu uma notícia, A história da PIDE numa série documental da RTP, ilustrada com uma fotografia, que fixava para a posteridade Nuno Teixeira Neves, jornalista-cidadão, entre outros cidadãos, nas instalações da PIDE, Porto, 25 de Abril. NTN não aparece identificado. Alude-se vagamente a um jornalista. A falta de memória e o banimento de certos nomes tornou-se doutrina na generalidade das redacções. Já existe um Monumento ao Soldado Desconhecido. Começa a ser tempo de erigir um busto ao Jornalista Desconhecido/Jornalista Banido.

(7) Exemplo de apagão noticioso: Un occidental está atrapado en Gaza y los médios de comunicación lo convierten en una gran historia. Millón e médio de personas (la población de la franja está atrapada en Gaza y no es una historia. (Laurent Booth, jornalista, cunhada de Tony Blair, o mudo e quedo representante da ONU para o Médio-Oriente).

(8) El Mundo, 11/09/2008. O El País, como outros beligerantes mediáticos, também exara douta sentença em defesa de excursionistas: Irán condena a ocho años por espionaje a dos excursionistas (El País, Ángeles Espinosa, Dubai, 21/08/2011). Da absolvição excursionista passa-se à inventona. O Jornal de Notícias tem provas do fabrico de armas nucleares. Eis uma passagem do relatório da Agência Atómica de Gonçalo Cristóvão: … entraram na embaixada do Reino Unido, em Teerão… em protesto contra sanções impostas ao Governo pelo fabrico de armas nucleares. (JN, 29/11/2011)

(9) Beslan, Euronews, 29/08/2007.

(10) Hospital das Letras, Melo, Francisco Manuel de (1608-1666). Escritor, militar, diplomata, conspirador, preso, degredado, liberto.

(11) DN, 04/05/2008; JN, 05/05/2008, clubedejornalistas.pt.

(12) Denúncia de convidado da RPTN (09/09/2007).

(13)Telenews/MediaMonitor (09/11/2007). Decorrido um ano sobre o desaparecimento, as televisões & a generalidade da Imprensa injectaram nova overdose/estrondose Maddie no espaço público. Mediamonitor/Marktest, JN, 24/11/2003.

(14) Vilhena, José, Proibido Pensar, FNAC/Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, 2003.

(15) Francisco Franco, serial killer ibérico, na década de 60, achava-se ligado a cerca de 40 aparelhos de televisão, posicionados como tropas nos aposentos do Palácio do Pardo. O generalíssimo enterrava os dias a mirar e a remirar o écran, absorvido pelo futebol e pelo Real Madrid, clube patrocinado pelo regime para apagar o Barcelona, clube-estandarte da causa republicana, e para exportar o circo como política de imagem. No entanto, o sedentarismo televisivo acelerou o processo de degradação física do enviado de Deus. Em Portugal, foi necessária a intervenção de uma cadeira para liquidar o ditador; em Espanha, a televisão substituiu a ETA. Para mais pormenores sobre as obsessões do caudillo: Canal de História. Fonte: emissão de 03/12/2007. Atente-se, porém: a instrumentalização da pelota não é um exclusivo das ditaduras ibéricas. Já em pleno período de normalização democrática, a filosofia de Estado da então ministra da Defesa de Espanha/Governo PSOE, Cármen Chacón, poderá avaliar-se por um relato do seu éxtasis: cuando toda España aclamaba en éxtasis colectivo a los jugadores de la selección… se desplazó al oeste de Afganistán, donde está desplegado el grueso del contingente español. Jornada de trabajo larga, en la que habrá hueco para brindar com las tropas por la victoria de la selección. Como todos, los soldados vieron el partido y lo celebraron como pudireon en un Afganistán en el que, en verano, se pasan los momentos más duros. Hoy recibirán de manos de la ministra de Defensa camisetas de la selección firmadas por los jugadores y un vídeo grabado por ele equipo para ellos. (El Mundo, 13/07/2010).

(16) Cavaliere Oscuro, http://twitter. com/#!/Postideologico, Sini/Giovanni Maria, 12/09/2012.

(17) Tabucchi, Antonio, Visão, 23/10/2003.

(18) Rodrigues, Miguel Urbano, o diário acusa/1000 horas em Tribunal, história de uma perseguição, Caminho, 1984.
 
 
 
Fonte: Revista  O Militante nº 322
 
 
 

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