Eleições, armadilha para tolos
Eleições, armadilha para tolos
Jean Salem
Em criança, depois em adolescente, e talvez mesmo até ao início dos anos 1980, interrogávamo-nos como fora possível que povos amassados em cultura, como os alemães em especial, tenham sido incapazes de prever aquilo que veio a ser feito, aquilo que foi cometido em seu nome antes e durante o período da Segunda Guerra Mundial. De forma acessória, essa interrogação servia para moderar os ardores daqueles que estavam sempre disponíveis para se inclinar perante a mais insignificante emoção popular e, em particular, perante aquelas que pareciam indicar a insatisfação de tal ou tal fracção da população nos países do “socialismo real”. E, sobretudo, ela proporcionava aos mais argutos a oportunidade para relembrar em cada dia uma evidência que fere, ao que parece, o preconceito democrático: a de que os povos podem equivocar-se. E podem, consequentemente, votar mal…
De forma ainda mais genérica, o tão prosaico percurso dos regimes ditos “representativos” só pode levar as pessoas de bom-senso a pensar, com Alexis de Tocqueville, que “aqueles que encaram o sufrágio universal como uma garantia da qualidade das escolhas iludem-se completamente”. O “voto universal”, acrescentava Tocqueville, “possui outras vantagens, mas não essa” (De la démocratie en Amérique, II parte, cap. 5, Vrin, t. I, p 153). Porque ninguém pode afirmar que a maioria tem sempre razão. Sobretudo quando essa maioria é tão evidentemente fabricada como o é nos dias de hoje. Sem falar da imensa massa daqueles que deixaram de participar no jogo eleitoral, tão frequentemente enganador, frustrante, entorpecedor mesmo.
E eis entretanto o estado em que estamos: os herdeiros do fascismo e do nacional-socialismo voltam a levantar a cabeça na Europa… Aqui, é um movimento fundado por um antigo torcionário que obtém, desde há mais de vinte anos, entre 10% e 18% dos votos expressos. Acolá, o NPD, o Partido nacional democrático alemão, obtém 9,2% dos votos nas eleições de 2004, no Saxe. Desde 1986 que os resultados obtidos pelo muito mal designado Partido austríaco da liberdade (FPO) não cessam de aumentar em eleições legislativas, chegando a atingir 27% dos votos expressos em 1999. Nessa altura o FPO era a segunda força política na Áustria. Depois de uma descida transitória ressurgiu em força nas legislativas de 2008 com um resultado de 18%, ao qual devem ser acrescentados os 11% recolhidos pela Aliança para o Futuro da Áustria (BZO) – ela própria resultante de uma cisão do FPO – o que dá um total acumulado de 29% dos votos expressos a favor da extrema-direita! Na Noruega também, o FrP, o Partido do progresso, impôs-se como a segunda força política do país ao alcançar 23% dos votos expressos quando das eleições legislativas de 2009. Nos Países-Baixos, finalmente, 17% dos votos foram para a extrema-direita nas eleições europeias de Junho de 2009. Por todo o lado, ou quase, há governos aos quais não só não repugna formar alianças com a extrema-direita ou mesmo a pedinchar o seu apoio (Dinamarca, Hungria); há governos – em geral eleitos, é certo, ou pelo menos que alcançaram o poder por meio de eleições – que entregam pastas de ministérios a racistas certificados ou a autênticos fascistas reconvertidos de fresca data em muito sinceros democratas (Itália). Por toda a parte, o perigo ainda-rastejante-mas-já-muito-pouco do regresso da peste negra ou da chegada das suas reencarnações pós-modernas (Bélgica, Suíça).
Para sintetizar, existe já um problema que pode legitimamente agitar os nossos neurónios: as campanhas eleitorais, as boas intenções e os escrutínios que aí vêm serão suficientes para evitar que aqueles que militam à esquerda, neste XXIº século que começa, não venham a acabar em campos (estilo antigo) ou em estádios (estilo chileno)? Tanto mais que, como me dizia um estudante no decurso de uma prova oral bastante frustrante, “o capitalismo tem um grande problema: foi demasiado longe”. Ou, dito por outras palavras, poderia culminar em apocalipse…E nem os votos “úteis” nem os pânicos sem grande futuro dos pequenos burgueses poderão constituir uma barreira eficaz contra o que aí vem!
Jean Salem
Em criança, depois em adolescente, e talvez mesmo até ao início dos anos 1980, interrogávamo-nos como fora possível que povos amassados em cultura, como os alemães em especial, tenham sido incapazes de prever aquilo que veio a ser feito, aquilo que foi cometido em seu nome antes e durante o período da Segunda Guerra Mundial. De forma acessória, essa interrogação servia para moderar os ardores daqueles que estavam sempre disponíveis para se inclinar perante a mais insignificante emoção popular e, em particular, perante aquelas que pareciam indicar a insatisfação de tal ou tal fracção da população nos países do “socialismo real”. E, sobretudo, ela proporcionava aos mais argutos a oportunidade para relembrar em cada dia uma evidência que fere, ao que parece, o preconceito democrático: a de que os povos podem equivocar-se. E podem, consequentemente, votar mal…
Hitler (podemos, naturalmente, lamentá-lo) não se apossou do poder por meio de um golpe de Estado! Na eleição presidencial de Março-Abril de 1932 tinha obtido 2,75 milhões de votos, o que representava 37,3% do eleitorado, mas tinha sido ultrapassado, em qualquer caso, pelo marechal Hindenburg. Num contexto marcado, entretanto, pelas terríveis acções violentas dos bandos nacional-socialistas (contavam-se às centenas os mortos que estes tinham provocado apenas no decurso do mês de Julho, em confrontos de rua desde a Prússia até Altona, a norte de Hamburgo), o NSDAP obteve igualmente 37,3% dos votos nas eleições de 31 de Julho de 1932.
De forma ainda mais genérica, o tão prosaico percurso dos regimes ditos “representativos” só pode levar as pessoas de bom-senso a pensar, com Alexis de Tocqueville, que “aqueles que encaram o sufrágio universal como uma garantia da qualidade das escolhas iludem-se completamente”. O “voto universal”, acrescentava Tocqueville, “possui outras vantagens, mas não essa” (De la démocratie en Amérique, II parte, cap. 5, Vrin, t. I, p 153). Porque ninguém pode afirmar que a maioria tem sempre razão. Sobretudo quando essa maioria é tão evidentemente fabricada como o é nos dias de hoje. Sem falar da imensa massa daqueles que deixaram de participar no jogo eleitoral, tão frequentemente enganador, frustrante, entorpecedor mesmo.
A tradição filosófica em que me integro aliou constantemente, pelo menos até ao século XVIII, um muito grande optimismo naturalista a um carregado pessimismo em matéria de antropologia. Para o materialismo do Ancien Régime, para o epicurismo antigo como para os grandes senhores do libertinismo, não se trata em nenhuma circunstância de imaginar que, de progresso em progresso, todo o indivíduo acederá às luzes da razão, à sabedoria e à felicidade. Os “déniaisés” (“desparvecidos”), como se designavam a si próprios, sabem bem que a religião é um instrumento do poder de Estado; mas que o povo, têm eles o cuidado de acrescentar de imediato, não deixa de crer nela e de continuar a ignorar os seus truques. Em resumo, será apenas com as Luzes, e a fortiori com o comtismo, o marxismo e outras doutrinas racionalistas datando do séc. XIX que se formou, entre os adeptos do materialismo filosófico, a ideia de uma possível conversão dos humanos a opções políticas justas, morais, e susceptíveis de trazer a felicidade a todos.
E eis entretanto o estado em que estamos: os herdeiros do fascismo e do nacional-socialismo voltam a levantar a cabeça na Europa… Aqui, é um movimento fundado por um antigo torcionário que obtém, desde há mais de vinte anos, entre 10% e 18% dos votos expressos. Acolá, o NPD, o Partido nacional democrático alemão, obtém 9,2% dos votos nas eleições de 2004, no Saxe. Desde 1986 que os resultados obtidos pelo muito mal designado Partido austríaco da liberdade (FPO) não cessam de aumentar em eleições legislativas, chegando a atingir 27% dos votos expressos em 1999. Nessa altura o FPO era a segunda força política na Áustria. Depois de uma descida transitória ressurgiu em força nas legislativas de 2008 com um resultado de 18%, ao qual devem ser acrescentados os 11% recolhidos pela Aliança para o Futuro da Áustria (BZO) – ela própria resultante de uma cisão do FPO – o que dá um total acumulado de 29% dos votos expressos a favor da extrema-direita! Na Noruega também, o FrP, o Partido do progresso, impôs-se como a segunda força política do país ao alcançar 23% dos votos expressos quando das eleições legislativas de 2009. Nos Países-Baixos, finalmente, 17% dos votos foram para a extrema-direita nas eleições europeias de Junho de 2009. Por todo o lado, ou quase, há governos aos quais não só não repugna formar alianças com a extrema-direita ou mesmo a pedinchar o seu apoio (Dinamarca, Hungria); há governos – em geral eleitos, é certo, ou pelo menos que alcançaram o poder por meio de eleições – que entregam pastas de ministérios a racistas certificados ou a autênticos fascistas reconvertidos de fresca data em muito sinceros democratas (Itália). Por toda a parte, o perigo ainda-rastejante-mas-já-muito-pouco do regresso da peste negra ou da chegada das suas reencarnações pós-modernas (Bélgica, Suíça).
Para sintetizar, existe já um problema que pode legitimamente agitar os nossos neurónios: as campanhas eleitorais, as boas intenções e os escrutínios que aí vêm serão suficientes para evitar que aqueles que militam à esquerda, neste XXIº século que começa, não venham a acabar em campos (estilo antigo) ou em estádios (estilo chileno)? Tanto mais que, como me dizia um estudante no decurso de uma prova oral bastante frustrante, “o capitalismo tem um grande problema: foi demasiado longe”. Ou, dito por outras palavras, poderia culminar em apocalipse…E nem os votos “úteis” nem os pânicos sem grande futuro dos pequenos burgueses poderão constituir uma barreira eficaz contra o que aí vem!
É pensando nisso sobretudo, ou seja, no estado vacilante da nossa civilização que eu gostaria aqui de falar:
1- Daquilo que eu chamarei de boa vontade o actual circo eleitoral;
2- Da confiscação do poder que este circo autoriza e realiza perante nós;
3- Do regime de eleição ininterrupta no qual se faz viver nos dias de hoje o cidadão das nossas esgotadas democracias, regime que é parte integrante de um período de crise sobreaguda do capitalismo, de um período de perturbações e de ansiedade, de um período em que se sente o odor que antecede a guerra.
1- Daquilo que eu chamarei de boa vontade o actual circo eleitoral;
2- Da confiscação do poder que este circo autoriza e realiza perante nós;
3- Do regime de eleição ininterrupta no qual se faz viver nos dias de hoje o cidadão das nossas esgotadas democracias, regime que é parte integrante de um período de crise sobreaguda do capitalismo, de um período de perturbações e de ansiedade, de um período em que se sente o odor que antecede a guerra.
O filósofo marxista Jean Salem publicou recentemente um novo livro: “Eléctions, piége à cons”.
Fonte: odiario.info
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