Comandante máximo das FARC-EP responde à carta do historiador Medófilo Medina

Comandante máximo das FARC-EP responde à carta do historiador Medófilo Medina
Timoleón Jimenez




Uma luta duríssima como a que as FARC-EP travam desde 1964 não podia subsistir sem um forte apoio popular e um programa que correspondesse aos anseios da população que lhes garante apoio, cobertura e a renovação de guerrilheiros e quadros.


Nesta resposta de Timóleon Jimenez, Comandante do Estado-Maior Central das FARC-EP, à carta-aberta que lhes foi dirigida pelo professor e académico colombiano Medófilo Medina, pode o leitor ver - sem a intermediação das agências ao serviço do imperialismo - o que é e por que luta a heroica guerrilha colombiana.
 



Caro Professor:

Com os meus cumprimentos queria comunicar-lhe a vontade, várias vezes expressa, pelo camarada Alfonso Cano de responder à sua carta aberta. É óbvio que as circunstâncias que o assediavam tornaram impossível a materialização deste seu propósito.

Se me permite, morto o Comandante em combate, tentarei despretensiosamente satisfazer parcialmente as suas inquietações, salvo o facto de o senhor lhe ter escrito tendo em consideração a relação pessoal e política que tiveram num já longínquo passado. Por vezes assalta-me a ideia que o senhor quereria mais uma troca de ideias com o antigo camarada do que com as FARC.

É que não é fácil nas actuais condições do país relacionar-se connosco. Existe um prisma mediático estabelecido que coloca imediatamente na berlinda quem ouse assumir uma visão diferente da apregoada pelo poder. Esta coisa do pensamento único é muito mais que uma palavra de ordem. Tem consequências letais, passa pelo ostracismo e o esquecimento, a estigmatização, o fim definitivo do emprego, a intimidação, a ruína, o cárcere até, inclusive, a morte anónima.

A sua valentia merece ser reconhecida. Como académico de pensamento independente arrisca-se a passar da efémera glória concedida pelo seu franco questionamento, à irremediável condenação por se ter prestado servir-nos de incauto instrumento. Tudo dependerá do que os predadores por ofício possam obter logo que se lancem famintos sobre as nossas considerações. E isso é a única coisa que lhes interessa – um novo flanco para tentarem sangrar-nos.

O porquê da guerra



O primeiro subtítulo da sua carta diz: nós colombianos precisamos compreender o porquê da guerra, o que nos confirma que o senhor não se encontra só e que um importante sector do pensamento social espera sem reservas o que possamos dizer. O movimento que se intitula Colombianas e Colombianos pela Paz parece tê-lo decepcionado um pouco, visto que, no seu ponto de vista, terminou absorvido pelas urgências emanadas do intercâmbio humanitário.

Talvez não seja conveniente provocar esse tipo de distâncias. Talvez o que ao longo do caminho a senadora Piedad Córdoba e outras personalidades compreenderam, é que é mais frutífero para a paz na Colômbia assumir tarefas práticas concretas pela vida e a liberdade dos seus compatriotas que envolverem-se em sisudas trocas epistolares que provoquem um mar de especulações. São pontos de vista, não necessariamente contraditórios, e que bem podiam caminhar lado a lado na mesma direcção. É a questão de somar em vez de dividir.

Mas o senhor explana argumentos que são respeitáveis. O debate aberto e público de opiniões à volta da inevitabilidade da guerra e das possibilidades da paz é urgente. Cremos que ele envolve uma discussão ampla sobre as realidades económicas, sociais, políticas, culturais, e até ambientais do actual momento contemporâneo mundial, latino-americano e nacional. Nunca receámos esse debate, pelo contrário, o nosso levantamento em armas obedece ao facto de sempre nos terem sido fechadas as portas para nele participar.

O senhor não o sabe, talvez porque o tipo de vida a que a sua vocação pela investigação social e o ensino o obrigam ser muito diferente do nosso. Mas aquilo a que chama dificuldades políticas e técnicas, ou os avatares da guerra que poderiam dificultar um intercâmbio fluido, significam na realidade que ao longo das vinte e quatro horas do dia somos sobrevoados para localizar o mínimo sinal eléctrico, de rádio, telefone ou internet para nos inundarem com bombas. Isto sem falar das enormes operações terrestres que procuram exterminar-nos.

Hoje em dia, é uma verdadeira façanha conseguirmos comunicar com o resto do mundo. Não costumamos falar disto, pois de imediato ficamos expostos à furiosa matilha, sempre pronta a escarnecer de nós e a pretender passar por vítimas inocentes. Mas talvez consigam alcançar notoriedade a ponto de os nossos adversários prestarem garantias efectivas para a nossa actividade política. Valeria a pena, com vista a alcançar a paz, tentarem influenciar a consciência daqueles sobre este tema. Mas não acreditamos que as vossas cartas nesse sentido tenham a mesma difusão que as que nos são dirigidas.

Muito provavelmente tratá-los-iam como ingénuos úteis. Precisamente, este conflito é um debate armado em que uma das partes representada pelo Estado, recorre a todo o género de recursos com o propósito de impedir a expressão do pensamento da outra. No meio sempre estiveram os que inclinados para as nossas posições terminam como vítimas de perseguição (…).

Que bom seria, para a democracia e a paz, que a sua carta contribuísse para abrir uma brecha pela qual o cidadão normal pudesse conhecer a argumentação das FARC, e sopesar a nossa visão actual do país e a nossa proposta de futuro. A generalidade da sua exposição parece apostar na ideia de que consegui-lo é coisa simples, fundamentalmente ligada a uma questão de vontade pessoal. Assim se depreende da sua ilação histórica, de acordo com a qual foi justo termos surgido, mas em contrapartida hoje não há razão para persistir.

A democracia colombiana

Deve saber que no universo dos meios de comunicação circulam dicionários para uso dos redactores e apresentadores. Neles se define de modo categórico a lista dos termos que podem ser usados e o sentido imperativo em que devem empregar-se. Imperialismo e oligarquia, por exemplo, são palavras em absoluto desuso que devem ser postas no adequado lugar das ridicularias, quando algum transviado porta-voz de extremistas as traga à colação. Só existe um léxico admitido, e com a linguagem só algumas realidades são permitidas.

De acordo com estas regras, o sistema multipartidário e de eleições periódicas promovido a partir da Casa Branca é o máximo ideal democrático alcançado pela humanidade. Em seu nome pode invadir-se e bombardear-se países e povos inteiros, desestabilizar governos não afectos, ou impor pela força autoridades transitórias ou definitivas. Sempre com o são e louvável propósito de dar lugar às economias de mercado, ao milionário investimento estrangeiro, à exaustão descarada dos recursos naturais, ao enriquecimento apressado de uma elite privilegiada.

Nós vemos as coisas de forma diferente. Mais parecida com a do assassinado presidente Lincoln. Governo do povo, para o povo e pelo povo. Resta dizer que o regime colombiano se enquadra mais nas previsões difundidas pela Washington de Bush e Obama. Humilha-se perante elas. Nós acreditamos que os interesses das classes privilegiadas não são coincidentes com os dos milhões de destinatários das suas políticas. Acreditamos que os de baixo têm a sua própria visão das coisas e nós identificamo-nos com ela. Promovemos pois um regime diferente. Um regime que parta de uma premissa fundamental, a independência e a soberania nacionais. Na Colômbia deve governar um partido ou movimento que se preocupe antes de mais pela sorte dos seus habitantes, por elevar o nível de vida dos mais desfavorecidos. Para que isso se torne realidade, talvez seja necessário entrar em choque com os interesses de diversos monopólios económicos nacionais e estrangeiros. Mas as decisões políticas fundamentais, e todas as outras devem apontar para a satisfação do interesse da maioria dos colombianos.

Porque a política como tal, neste país e na maioria das economias de mercado, perdeu completamente a sua essência. Não se chega ao poder para cumprir um programa. Chega-se para executar as directrizes emanadas dos grandes poderes internacionais. As economias e os planos de desenvolvimento nacionais e locais estão condenadas a cumprir o libreto do FMI, do Banco Mundial e da OMC, entre outras instituições. Cada país e província têm o seu destino traçado numa cimeira prévia. Nenhum governo pode sair do guião fixado.

Se alguém o pretender será imediatamente etiquetado como antidemocrático e ficará exposto a perigosas sanções. Definitivamente, esse não pode ser admitido como democracia. O exemplo mais à mão está na Colômbia. Na mais recente campanha presidencial, os candidatos que quiseram ter a mínima possibilidade de vitória foram obrigados a declarar, cada um no seu estilo, que continuariam com a segurança democrática, a confiança aos investidores e a coesão social. Essa era a única linha considerada democrática.

Nenhuma outra tinha a menor esperança. Recorda-se, certamente, das últimas eleições regionais e locais, e o tão badalado ex-guerrilheiro que acabou eleito para a alcaidaria de Bogotá, que teve que romper com o movimento de esquerda de que fazia parte, declarar despudoradamente a sua vontade de se ligar ao projecto de Unidade Nacional do Presidente e até identificar-se com o cadáver político de Álvaro Gomez. Só com tão desprestigiante exemplo de sujeição aos ditames do grande capital podia contar com a sua aquiescência e assim terminar eleito.

Como consequência de tudo isto, e acredito que o senhor não se recuse a reconhecê-lo, o exercício da actividade política nos termos institucionais de hoje está totalmente despido de conteúdo ideológico. Até a noção de ideologia foi proscrita. As campanhas eleitorais reduzem-se a estratégias de marketing, onde o que conta são os capitais investidos na orgia publicitária. Capitais que terão de render os seus lucros a partir das administrações eleitas. Aspirações personalistas ligadas aos propósitos mais baixos, e escondidos por discursos floreados que nada dizem.

Perante esta realidade, os de baixo, o povo comum de que é costume ser proibido falar não conta com a possibilidade legal de exprimir os seus interesses. Pretende-se arrastá-lo para o interior de partidos e grupos nepotistas e corruptos que só lhe trarão enormes decepções. Por isso, para fazer valer os seus direitos, as pessoas não têm outra alternativa senão o apelo à ocupação das ruas das estradas, às greves, aos motins para conseguirem ser ouvidas. É nesta estreita faixa, reforçada pela violência repressiva e criminal do Estado, que se explica a resistência popular à repressão, e a existência e persistência do levantamento armado na Colômbia.

Com o passar do tempo irá surgir de forma objectiva o conteúdo de uma solução política. Esta não pode compreender-se como a recolocação da ordem existente. Não se trata de guerrilheiros arrependidos e extremamente desacreditados entregarem as armas, submeterem-se ao escárnio mediático e jurídico, para depois, com uma espada presa por um fio pendente sobre a sua cabeça, entrarem no mercado da política partidária para fazerem coro com as mentiras oficiais. Do que se trata é de reconstruir as regras da democracia, para que se debatam ideias e programas em igualdade de oportunidades.

Sem correr o risco de ser assassinado ao chegar a casa. Ou de desaparecer e ser torturado por uma misteriosa mão negra, que já se anuncia existir, como aquelas forças obscuras que exterminaram a União Patriótica debaixo do olhar impassível da classe política colombiana. É justo abrir um debate público e livre sobre estes assuntos, que se possa falar destes temas sem ser arrolados pelos monopólios informativos concertados. Porque numa solução política, também se trata de como pôr um travão à intolerância do unanimismo mediático.

Um cepticismo fundado na experiência

Professor, acredite-me quando lhe digo que admiro a sua coragem. É imprescindível em qualquer sociedade a acção de pessoas que contraditam com elevação. Não estamos de acordo com tudo o que coloca, mas reconhecemos a sua honestidade e inspira-nos respeito. Verá que a nossa análise da sociedade colombiana não pode restringir-se ao exame das individualidades. Melhor que ninguém, o senhor sabe que uma abordagem científica implica o reconhecimento de que os interesses das classes imersas no processo histórico têm maior relevância que a actuação dos personagens.

Vários contraditores nossos, oriundos de diferentes espectros, criticam o que chamam a nossa cegueira política ante os sinais positivos vindos de Juan Manuel Santos desde a sua chegada ao governo. Falam da sua reconciliação com Chávez e Correa, da sua concertação com as cortes [1], a incorporação de Angelino [2], as piscadelas de olho à oposição, a sua disposição para aceitar os direitos humanos, a sua lei das vítimas e de restituição de terras, a sua vontade de paz. Empenham-se em convencer-nos que juntarmo-nos a Juan Santos reforça a luta contra a extrema-direita representada por Uribe, e encarreira o país na senda das reformas democráticas. No mínimo, estão confundidos.

Juan Manuel Santos não se distanciou um milímetro do interesse das grandes corporações transnacionais que patrocinou a confiança investidora de Uribe. O que nos mostram as suas locomotoras é a extrema radicalização das práticas neoliberais, a aceleração descontrolada da dívida externa, a mais vergonhosa entrega das nossas riquezas naturais, a degradação ambiental em benefício dos monopólios, a exaustão da terra pela agro-indústria exportadora em prejuízo da economia camponesa. As distâncias políticas que separam Álvaro Uribe de Juan Manuel Santos não são muito diferentes das que separam Bush de Obama ou Mariano Rajoy de Zapatero.

Tudo isso a par do aprofundamento da guerra, dos bombardeamentos e da multiplicação das operações militares nas zonas agrárias, das prisões massivas silenciadas pela imprensa em diferentes regiões do país, do assassínio de dirigentes sindicais e populares, particularmente dos que reclamam terras, da lei de segurança contra o protesto cívico, dos programas de multiplicação prisional, etc. O seu projecto de reforma da justiça entrou em choque frontal com as cortes e, em troca, ressuscitou a justiça penal militar para reforçar ainda mais a impunidade.

E já sabemos como só através de uma gigantesca mobilização estudantil se conseguiu travar o seu projecto de privatização da educação universitária. Talvez o que esteja a influenciar diferentes sensibilidades a sair em sua defesa sejam a crescente burocracia e os acordos de assessoria e assistência, isto é, os contratos proporcionados pela regulamentação da lei das vítimas e a restituição de terras, para o que se ostentam milionários orçamentos que, certamente, inspiram os bons sentimentos em muitos sectores. Por dinheiro até os cães dançam [“por la plata baila el perro”] diz o velho ditado colombiano, do qual nos sentimos sincera e radicalmente afastados.

O senhor insiste em que expressemos uma opinião alargada sobre aquela lei. Para ser sincero, as expectativas que temos são muito parecidas às que inspirou a aprovação da lei justiça e paz, com a qual se pretendeu embrulhar o problema paramilitar e a reparação em primeira instância às vítimas. Ardilosas manobras para neutralizar a opinião internacional e cooptar opositores. Os desenvolvimentos posteriores, amplamente conhecidos, só por si, falam das suas falsas bondades. Os mesmos personagens que assumiram a Comissão de Reparação voltam a encabeçar esta nova aventura, o que é bastante esclarecedor.

Sectores sérios da esquerda, já sublinharam repetidamente em diversas publicações os seus reparos, aos quais indubitavelmente nos juntamos. Seria muito longo explaná-los aqui. Mas não basta advertir que são os interesses das multinacionais e dos grandes capitais locais os que exigem uma normalização ou legalização das terras em que avançam, ou pensam avançar, os seus projectos de investimento agro-industrial. A urgência de regras claras obriga a preferir o direito de terceiros ocupantes de boa fé, com o que os modestos despojados terão de acertar as suas quotas de participação, perdendo para sempre a posse da sua terra e o seu projecto de vida.

O direito da vítima a regressar ao seu lugar de origem ou a reinstalar-se noutra é consagrado de forma estranhamente sujeita ao quadro da política de segurança nacional, o que devia ser preocupante. Chama a atenção que a exclusão do direito às vítimas dos despojos anteriores a 1991, deixe fora do plano os camponeses desterrados em Magdalena Medio durante a investida paramilitar dos anos oitenta. Curiosamente, essa região compreende as melhores terras do país para a cultura de palma. Como diria «M. La Palisse» uma coisa são os termos judiciais previstos na lei, e outra bem diferente os reais que se gastam nos longos contenciosos perante os juízes. Em relação aos sectores extremistas do latifúndio, o paramilitarismo e o próprio empresariado que se opõem à aplicação de tal lei, é bom ter em conta que se não representam uma maioria significativa dos interessados envolvidos na normalização do direito de propriedade, acabarão isolados. Não poderão impedir a realização das urgentes exigências do grande capital. Será este o encarregado de delimitar com o tempo o verdadeiro alcance da norma, e não serão os direitos dos deslocados os que acabarão por se impor. A menos que aconteça uma reviravolta radical neste país, o que não vai acontecer, há quem julgue que Juan Manuel Santos é um santo homem.

Se por desgraça forem esses sectores radicais os que têm mais peso, o nosso país vai ver-se envolvido numa nova e terrível onda criminosa de assaltos, assassínios e desterros, o que viria a demonstrar que Juan Santos não foi mais do que uma vaga ilusão de alguns, no sentido de representar sectores sociais diferentes das máfias e do lumpen que defendeu o seu antecessor. É pois muito suspeita a proclamada intenção governamental de aprofundar a guerra total contra nós em vez de contra aqueles. Pode sair-se mal quem proclamar o seu apoio a este governo. Seria melhor, acreditamos mesmo que é de uma urgência imperiosa, denunciar as suas demagógicas promessas, sobretudo a sua actuação contrária ao prometido.

Um pouco de história

A extensão dos temas abordados na sua carta briga com as circunstâncias e o tempo que nos permite o confronto. O rigor académico exigiria, na realidade, que os argumentos em que o senhor baseia certas afirmações acerca do passado histórico fossem expostos com mais lógica e amplitude, a fim de pudessem ser sopesados na sua justa dimensão. De alguma maneira a natureza do seu texto impede-o, o que pode levar-nos a um inútil confronto de opiniões inadequadamente fundamentadas. No entanto, permito-me assinalar alguns factos que, creio, podiam enriquecer ainda mais as suas apreciações.

Sem diminuir a importância que merece o estudo da paragem cívica nacional de 1977, parece-me que a referência básica para a compreensão dos desenvolvimentos posteriores da história colombiana não deixa de ser o 9 de Abril de 1948 [3]. Daí surgiu a certeza de que qualquer alternativa política democrática, progressista, anti-imperialista e popular estava condenada à morte pelos sectores económicos e políticos dominantes no nosso país. A convicção de que um levantamento geral das multidões insatisfeitas estava condenada ao fracasso se não contasse com uma direcção séria, madura, experimentada e consequente. É a legitimação do direito do povo a levantar-se em armas quando a violência oficial e privada se assanha contra ele.

E também a inesquecível lição de que, por mais contradições que possam existir no seio das classes dominantes do país estas acabam sempre por unir-se numa frente única e brutal, quando virem que o povo cresceu corajosamente a reclamar os seus direitos. A pusilânime e ofídia atitude da direcção liberal reunida com Ospina Pérez no palácio, ocupará sempre a memória popular quando se trate de demonstrar a traição contra uma nação levantada. Mas há sobretudo um aspecto da história nacional que o senhor apenas refere para de alguma maneira o voltar contra nós: a perversa intervenção dos Estados Unidos.

Quase como um gigantesco farol que com o seu facho de luz rompe as trevas para conduzir a bom porto uma embarcação no meio da noite escura, a correcta interpretação do papel desempenhado pela IX Conferência Pan-americana no assassínio de Gaitán e o posterior apontar do Partido Comunista como autor do facto, evidenciam o trágico destino do nosso país sob a Doutrina de Segurança Nacional adoptada depois da segunda guerra mundial pelo Estado norte-americano. A teoria do inimigo interno que se encarregariam de inculcar em todas forças armadas do continente deixaria uma marca infame. São demasiadas coisas juntas para menosprezar a transcendência do acontecimento. É claro que com ele se prefigura a sorte da actual Colômbia. Até nalguns detalhes curiosos, como o de o primeiro designado para a Presidência também ter o apelido Santos. O mesmo sangue azul dos que passam e voltam a passar a dirigir o país. Havia também um Lleras, do mesmo pedigree do actual ministro do interior. E assim, na passada, valeria a pena recordar que o afã do fanático falangista Laureano por uma saída militar para a crise terminou por servir a Ospina para convencer o liberalismo da conveniência dum arranjo amigável.

Um novo episódio da rivalidade entre essas duas famílias conservadoras teve lugar durante a paragem de 14 de Setembro. O chamado ospino-pastranismo ressentido contra a tenaz Alvaro-Lopista que o excluía da burocracia, optou por juntar-se à convocatória da paragem, incitando a UTC [4] a sair à rua para se juntarem aos 3 milhões de arrependidos que tinham votado em 74 por Alfonso López. Era a sua pequena desforra pelo 9 de Abril. Quando o protesto popular se tornou incontrolável, os “godos” [5] ficaram para trás, interessados apenas como estavam em lugares e contratos. São antecedentes que se esquecem na hora avaliar a sinceridade da vontade de paz de Andrés Pastraña, quando decidiu brincar ao diálogo em Caguán.

E há essa da intervenção norte-americana se ter convertido numa atrocidade mundial nos anos sessenta do século passado. O pavor ao imaginário poderio militar soviético e a uma outra Cuba, no meio do renascer independentista de África e da Ásia sofisticou a Doutrina de Segurança Nacional até se transformar no modelo de contra-insurreição aprovado por John F. Kennedy. Dela vieram a escalada da agressão ao Vietname, a matança de meio milhão de indonésios em nome do anti-comunismo, o golpe militar contra Juan Bosh e a intervenção militar na República Dominicana, o golpe no Brasil contra o governo de João Goulart. E o Plano LASO, que envolvia, primeiro, a região agrária de Marquetália, e depois Riochito e outras zonas do nosso país.

Assim, não pode comparar-se a natureza dos conflitos agrários em Sumapaz ou em Tequendama, em defesa da vida e da propriedade da terra, contra a voracidade latifundista, com a campanha terrorista anticomunista desencadeada pelo imperialismo em toda a orbe, e aproveitada pela oligarquia liberal conservadora para eliminar a oposição à sua Frente Nacional. Os interesses em jogo eram totalmente diferentes. Quando os camponeses marquetalianos se dirigiram ao país e ao mundo pedindo solidariedade para evitar serem agredidos como se tramava, ofereceram em troca um diálogo, logo rejeitado, que se trocou por bombas e metralha. Daí brotaria o histórico Programa Agrário que definiu o carácter da luta.

Tratava-se de uma luta de índole política pelo poder para o povo. Nem nesse Programa Agrário, nem, até hoje, em nenhum documento das FARC, se colocou que como organização político militar a nossa meta era a tomada do poder depois de derrotar o Exército colombiano numa guerra de posições, como repetem, uma e outra vez, todos os que insistem em darem-nos esse objectivo. Desde o nascimento das FARC concebemos o acesso ao poder como uma questão de massas em agitação e movimento. Tal como com a táctica da combinação das formas de luta definimos que descartávamos nenhuma das vias que as classes dominantes nos permitam ou obriguem a empregar.

Diga-se que essa é outra discussão que sai do tema de que nos ocupamos. Em contrapartida, deixe-me dizer-lhe, Professor, que quando se estudam fenómenos complexos há que ter os olhos bem abertos para não incorrer no erro de ver apenas um aspecto. Se a desmobilização das guerrilhas liberais e comunistas que sucedeu no país em 1953 não levou à paz definitiva, a quem menos pode imputar-se a responsabilidade é à guerrilha comunista. Os movimentos de auto-defesa do sul de Tolima mudaram-se para oriente desse departamento, para Villarica e seus arredores, iludidos com as promessas oficiais e dispostos a converterem-se em pacífico movimento agrário.

Daí os tiraram à força os planos militares da ditadura de Rojas Pinilla, num dos dramas humanos mais terríveis e comovedores da história colombiana. A guerra de Villarica aparece em crónicas da época como um cruel testemunho do tratamento que os donos do poder conferem aos que ingenuamente confiam nas suas palavras. Dessa verdadeira diáspora terminaram surgindo as colónias agrárias de Atiari, Guayabero e Duda, perseguidas igualmente com raiva nos anos seguintes. O pequeno foco dirigido por Jacobo Prías Alape e Manuel Marulanda Vélez, que optou por entrar nas profundezas das montanhas e criar a região de Marquetalia, seria atacado uma década depois e acusado de república independente.

O senhor reconhece não ser um especialista das FARC. Ao que parece há especialidades académicas sobre nós. Que nós saibamos, nunca nenhum cá veio para nos entrevistar. É o mínimo que poderia esperar-se dos que escrevem livros ou fazem conferências sobre a nossa luta. Coisas da ciência social pós-modernista… A desconfiança no discurso do poder não é uma questão gratuita. Já se falava disso em Villarica. O que também aconteceu com Guadalupe Salcedo e outros chefes guerrilheiros desmobilizados. O senhor acredita mesmo que tem alguma credibilidade dizer que o genocídio contra a União Patriótica teria sido evitado pela reacção ética de consideráveis forças de opinião, surgidas como reacção a um nosso abandono das armas?

O extermínio da União Patriótica (UP) está marcado pela estratégia do denominado conflito de baixa intensidade, uma versão mais avançada da Doutrina de Segurança Nacional. A UP era um desses partidos antidemocráticos, que segundo o documento de Santafé devia ser neutralizado por promover o estatismo. Se puxar pela memória, talvez se recorde que não só se perseguiu implacavelmente a União Patriótica, como com ela pereceram também os mais destacados defensores dos direitos humanos, os dirigentes sindicais, camponeses, e populares mais comprometidos na luta contra as recém-aparecidas políticas neoliberais. Mais tarde, não só se assassinaram os líderes, como também foi empreendida uma diabólica operação de extermínio generalizado, deslocamentos e terror.

Diz bem, quando afirma que tudo isso é o produto de uma impudica aliança entre sectores das Forças Armadas, máfias do narcotráfico, caciques políticos e paramilitares. Mas repare que tudo aquilo que se constituiu numa verdadeira política de Estado, sob os auspícios e consentimento do Pentágono. Exclua os mortos da União Patriótica caídos, na sua opinião, por obra da nossa utópica e catastrófica decisão de nos sentarmos em duas cadeiras. Quantos somam? 5.000? São na realidade uma percentagem mínima do imenso holocausto a que as classes dominantes submeteram o nosso país. Tiveram algum papel de dique de contenção as forças políticas e corporativas que teriam actuado no caso de nos termos desmobilizado?

Professor, o que o nosso país sofreu durante décadas foi a sinistra prática fascista de segurança nacional mascarada de democracia. Isso não muda por o Presidente ter sido Valencia, Belisário (lembra-se do Palácio da Justiça?) Gaviria, Samper, Uribe ou Santos. Enquanto nós, colombianos, não tomarmos em conjunto e realmente a decisão de apelar a todas as nossas reservas políticas, sociais, culturais e éticas, a fim de desterrar dos cânones constitucionais e legais essa perversa concepção de Estado, a que encarnam em primeiro lugar as forças militares e policiais, o fim do conflito e a paz permanecerão distantes. Nesse contexto, a vontade de paz adquire aspectos complexos que superam de longe a decisão unilateral de entregar as armas.

Algumas precisões necessárias

Tal como sucede com o desconhecimento da situação que suporta nos cárceres do país um considerável número de colombianos presos por pertencerem às FARC, ao lado dos quais um número notoriamente maior de compatriotas paga, atrás das grades, a sua determinação para a luta social e a política, dá a impressão que para muitas pessoas deste país os guerrilheiros mortos ou feridos em combate não existiram, ou pelo menos que se tratava de seres humanos inferiores, cuja vida desprezível pode ser interrompida sem que isso importe a quem quer que seja.

Mas isso não é verdade, Professor. Dentro dos milhares e milhares de vítimas do fascismo no nosso país, há que incluir também as valorosas mulheres e homens que deram a sua vida ou a sua integridade física combatendo-o. E um raciocínio elementar obriga a fazê-lo. Trata-se de colombianas e colombianos que compreenderam a necessidade de lutar por um país melhor, e assumiram essa tarefa conscientes dos enormes riscos que enfrentavam. O levantamento armado é reconhecido como a forma mais elevada da luta política, isto é faz parte de um aluvião de formas de actividade que perseguem o objectivo do poder para o povo. Não lhe é alheio ao povo, mais, não poderia existir se não contasse com uma enorme base social de apoio.

Pode parecer engenhoso e até despertar aplausos, mas não é convincente traçar uma linha divisória que separe a guerrilha da luta popular, nem reclamar-lhe de forma independente quem pode contar como seus os êxitos conseguidos a favor das massas oprimidas. As lutas de todos os de baixo formam uma frente e as suas conquistas ou refluxos beneficiam ou atrasam a aproximação ao objectivo geral de redenção social. Desde logo, ver as coisas assim corresponde à óptica de classe dos explorados. Outras visões, muitas vezes animadas pela ideia de uma neutralidade inexistente, na realidade fazem parte e servem os interesses dos de cima, o sorriso enganador dos sectores dominantes.

A luta popular no seu conjunto conseguiu muitas coisas e só perguntar o quê, no mínimo, destila algum veneno, seja ele de natureza nihilista ou francamente burguês. A luta armada de vinte anos que precedeu os Acordos de Uribe, provocou no país efeitos novos, verdadeiramente modernos que implicaram importantes avanços. Desde logo porque se uniram aos clamores e reclamações de muitos outros sectores, como disse atrás. Não são metas acabadas mas uma espécie de camadas sucessivas para o posterior relevo que levará as coisas para a frente.

A quem na Colômbia parece hoje tolerável que o Presidente da República designe, um a um, os governadores e depois, um a um, os alcaides? Não foram por acaso os tiros e as sonoras denúncias das guerrilhas colombianas quem pôs no centro do debate nacional o tema dos direitos humanos? Depois construiu-se toda uma lenda à volta da sétima papeleta [6] que supostamente serviu de origem à convocatória de uma Assembleia Constituinte. Não foi o clamor mil vezes repetido ao país por Jacobo Arenas, sobre a necessidade de convocar uma Assembleia Constituinte que substituísse a velha Constituição de 86?

Aos militares colombianos deve custar-lhes como uma bofetada, principalmente agora que se preparam para que o Congresso santista lhes ressuscite o foro militar, o que as FARC denunciam também com tiros, que desempenharam um papel determinante na concepção restritiva, que terminou por ser aceite no nosso país, sobre essa jurisdição especial patrocinadora de escandalosa impunidade. Plinio Apuleyo Mondoza ou José Obdulio Gaviria vivem amargurados, censurando os restantes colombianos por permitirem que a guerrilha se cole em tudo. Não é guerrilha, senhores trogloditas, são os avanços democráticos da luta popular.

E os estado de sítio? E o acantonamento [arrinconamiento] do paramilitarismo fascista? Será realmente verdade que as armas nas mãos do povo não tiveram um papel considerável nisso? A lista, que poderíamos ir acrescentando, é muito longa, professor. Inclusive, poderia tornar-se um importante tema de estudos de âmbito universitário. Novamente o tempo e o espaço me impendem de me alargar. Além de que ao fazê-lo, de boa fé e sem intenção de prejudicar ninguém, poderia aumentar o desgosto de personagens e sectores extremamente perigosos para a saúde dos heróicos compatriotas que, em diferentes momentos e lugares, levantaram tão dignas bandeiras.

Até uma determinada etapa da luta armada, anterior à generalização da táctica estatal de nos combater com a fórmula de tirar a água ao peixe, a nossa presença e combatividade em muitas regiões do país fez com que nas altas esferas do Estado se tivessem inteirado da existência dessas pessoas e das extremas adversidades que passavam. No afã de as isolar de nós, e quase sem querer, chegaram a muitos povoados, com vias pelas quais só podia circular um carro de linhas, escolas para as crianças poderem educar-se, postos de saúde onde pelo menos uma profissional lhes prestava uma assistência elementar.

Até a consolidação actual, que as forças armadas apregoam praticar em catorze zonas do país, implicaram a atenção de algumas das necessidades angustiantes das pessoas. Mal faríamos nós se sobrestimássemos este aspecto em relação aos deslocamentos, aos encarceramentos massivos, às perseguições, aos crimes e ao terror generalizado que impõe a ocupação militar de extensas áreas, tal como o repovoamento delas com pessoas da sua confiança. A assistência social através de programas como o Famílias em Acção, que faz parte do que falámos antes, não deixa de ter o sabor amargo de que jamais teria surgido se a guerrilha não tivesse antes posto ali o pé. Isto parece indigno, mas não deixa de ser útil para dimensionar a mesquinhez dos planos oficiais.

Na sua recente viagem a Londres [N.do T.: 21 e 22 de Novembro de 2011] Juan Santos tornou-se uma presa de caça dos media por se ter atrevido a falar da despenalização das drogas. No Plenário do Estado-Maior Central de 2000, em pleno processo de Caguán, as FARC colocaram oficialmente ao povo norte-americano, ao seu Congresso e ao governo dos Estados Unidos a questão da legalização das drogas. E os camponeses deste país há décadas que falam do assunto em diferentes espaços. E se tal eventualidade se tornar um dia realidade, a historiografia oficial encarregar-se-ia de incensar o actual Presidente como o artífice de tão transcendental medida. Não seria a primeira vez que as classes dominantes colombianas se apropriam de velhos anseios populares para os apresentar como seus, e negar na passada o papel dos despojados na história.

A sincera vontade de paz

Falando de Caguán, convido-o Professor a realizar um despreconceituoso estudo histórico dos Acordos que possibilitaram a zona de evacuação e os diálogos ali realizados. À luz das regras acordadas com Pastrana, fazendo caso omisso das mal-intencionadas campanhas da imprensa, não pode encontrar um só facto da nossa parte que signifique uma violação das mesmas. Foi o Estado quem fez valer a sua tese de dialogar no meio do conflito, o que queria dizer que fora da zona de evacuação a guerra continuaria com toda a sua crueldade. A própria Defesa do Povo [7] se encarregou de declarar que as supostas pistas, que Pastrana mostrou em fotografias para justificar o fim da zona de evacuação, eram na verdade antigas estradas.

Mas a investida mediática contra nós adquiriu tal dimensão que Osama Bin Laden ou Hussein seriam figuras angelicais se comparadas connosco. O que nenhum analista objectivo se deteve a analisar foi a atitude do governo, que na Mesa falava uma linguagem e fora dela dizia o contrário. Um dos Acordos fundamentais chamou-se Agenda Comum para a Mudança para uma Nova Colômbia, a relação precisa dos temas que ocupariam as discussões na Mesa de Conversações: o conteúdo dos acordos de paz, a doutrina militar, as reformas democráticas no sistema político, o modelo de desenvolvimento económico, o regime tributário, o emprego e os cuidados sociais, a terra, a política de exploração dos recursos naturais, as relações internacionais e o tratamento social do problema do narcotráfico.

Em três anos de conversações, o governo teve o descaramento de nem sequer um desses pontos ser abordado nos diálogos. Na meia centena de audiências públicas em que participaram mais de 30.000 colombianos com as suas propostas sobre os temas específicos das convocatórias, e num sem número de formais Mesas Redondas com sectores da produção e da academia, foram debatidos temas de transcendência para a vida e o futuro do país. Era de supor que a Mesa de Diálogos se encarregasse do exame do que se concluiu. Nisso consistia o processo de conciliação com as regras previamente acordadas. Nem uma só vez, rigorosamente nem uma, o governo possibilitou a inscrição na ordem do dia das reuniões desse assunto.

Contrariamente aos compromissos assumidos na Mesa, publicamente declarava constantemente que temas como o Plano Colômbia, os acordos com o FMI, o Plano Nacional de Desenvolvimento, as reformas constitucionais do tipo regime de transferências, ou legais como o novo código mineiro não faziam parte de nenhum debate com a guerrilha. Ou seja, não cumpria os compromissos assinados com Manuel Marulanda Vélez, amplamente difundidos pela imprensa nacional. E no entanto ninguém falava disso. Era como se não estivesse a acontecer. O que se dizia todos os dias ao país era que as FARC não tinham a menor vontade de paz, que estavam constantemente a violar os acordos.

Assim ficava evidente a verdadeira intenção oficial, a única coisa que nos reservava era a rendição incondicional. O governo estava consciente que mesmo que o não conseguisse, pelo menos ganhava o tempo que precisava para reorganizar as forças armadas para a guerra de extermínio. Nenhum estudioso do tema pode deixar passar em claro as muito significativas expressões do então Comissário da Paz, Victor G. Ricardo, ao jornalista Hollman Morris, no seu documento sobre o encontro O DIÁLOGO É O CAMINHO feito em Barranca, em Agosto passado: Se as FARC nesse momento tivessem sabido que o Estado não tinha com que comprar um cartucho, não se teriam sentado para dialogar em Caguán.

É o reconhecimento de que se enganava não só a nós mas a comunidade nacional e internacional que acompanhava o processo. A grande imprensa desempenhava com profusão de detalhes o seu nefasto papel nessa conspiração contra a Colômbia. Do que se tratava era, na realidade, de aniquilar, de uma vez por todas, a oposição à radicalização das políticas neoliberais impostas pela banca transnacional e aceites de bom grado pela oligarquia governante. Basta ver os que integravam a equipa governamental de Pastrana e os que a integram hoje. É o mesmo grupo de tecnocratas formados e devotos da Escola de Chicago, cujas realizações fazem hoje correr a água em todo o mundo. É por isso que não se encontram diferenças entre o que se nos exigia por baixo da mesa uma década atrás e o que hoje se nos intima a fazer com a famosa chave oculta de Juan Santos. Há dez anos, além disso, falava-se com admiração do claro domínio dos falcões no governo norte-americano. A reconhecida aliança entre o poderio militar desse país e as grandes corporações industriais e financeiras, que são normalmente chamadas de complexo militar industrial do Pentágono, abriam as suas fauces belicosas ansiosas de mais negócios por conta da guerra em qualquer rincão da terra onde tal for possível.

Vale a pena perguntar como se contabilizam aqui as centenas, os milhares de milhões de dólares de ajuda norte-americana à guerra. Farão parte do superávit na balança de pagamentos? Influirão na cifra de crescimento do investimento estrangeiro? Reflectem-se no aumento do PIB? O que estudiosos muito sérios defendem é que tão grande avalanche de recursos provenientes dos impostos pagos pelos cidadãos dos Estados Unidos constitui, na realidade, um escandaloso chorrilho de subsídios às grandes empresas ligadas ao sector bélico. Os dinheiros nunca entram na Colômbia, mas com eles pagam-se todas as armas e equipamentos que fabricam esses polvos empresariais e que se transferem para aqui com o angélico nome de ajuda.

Mais que ninguém e animados pela satânica ideia de guerra contra o terrorismo, esses polvos pressionavam a escalada do conflito colombiano. A guerra total contra as guerrilhas serviria, na concepção de segurança nacional, para atacar indistintamente o movimento social e popular que enfrenta decidido as medidas neoliberais de privatização, flexibilização laboral e livre comércio. Como é cada dia mais evidente, todas elas nos condenam cada vez mais ao saque descarado dos nossos recursos naturais, à eterna corda na garganta do crescimento da dívida e, sobretudo, à diminuição acelerada dos serviços públicos e direitos conquistados pelos trabalhadores em tempos passados, sem possibilidade de andar para a frente.

Não anunciam já um novo regime de reformas que eleva ainda mais a idade para ter direito a uma pensão? Como vê Professor, isso que o senhor e muitos colombianos interiorizaram como o síndroma de Caguán, e que os levou num arroubo emocional a tombarem para a extrema-direita que representava Uribe, não passa de uma fábula, se a examinarmos objectivamente, ligando-a com os outros aspectos da realidade. Apontar-nos o dedo como responsáveis directos, sobretudo a partir da respeitável posição de intelectualidade bem pensante, é um despropósito tão bem elaborado que seria merecedor de um galardão de ouro atribuído aos publicistas e propagandistas da globalização neoliberal.

Vou dizer-lhe uma coisa que a muita gente parecerá inadmissível. Se o vencedor das eleições de 2002 na Colômbia tivesse sido Horacio Serpa [8], teria sido ele o encarregado de desenvolver, com ligeiras diferenças de matiz, o Plano Colômbia, o Patriota e a consolidação. Teria sido ele a assinar o Tratado de Livre Comércio (TLC) com os Estados Unidos e percorrido com afã o mundo por mais acordos de comércio livre e seria apontado, tal como Juan Santos, como um campeão da democracia. Estes nossos Estados encontram-se condenados a desempenhar um papel subordinado no meio dos interesses do grande capital transnacional. É por isso que reassume toda a urgência a recuperação da soberania e independência nacionais, tal como a necessidade de integração sul-americana que nos permita enfrentar com sucesso o monstro.

Uma breve olhadela à nossa volta

Não creio que valha a pena debater a sua apreciação sobre o que está a acontecer na América Latina. É justa e acertada. Apenas poderia acrescentar-lhe uma referência. É sobre a sua abordagem aos modelos de esquerda que se implementam no nosso continente. Um, o do Brasil, decididamente inclinado para a assistência social, enquanto em tudo o mais se cinge a cartilha ditada pelos poderes internacionais do capital, e o outro, o de Cuba e Venezuela, que aponta para a construção de um modelo socialista de acordo com as suas realidades nacionais, mas completamente autónomo no que respeita a políticas económicas. Como sabe, Lula recebeu inclusive o título de personagem do ano em 2010, enquanto Castro e Chávez recebem dos círculos económicos dominantes o tratamento de demónios.

Fidel e Chávez são considerados os piores ditadores internacionais pelas agências de imprensa norte-americanas e europeias. Na Colômbia, entre as classes dominantes e os grandes meios de comunicação, o processo revolucionário venezuelano é visto com a mesma raiva e repúdio com que o olha a catorze vezes derrotada oposição daquele país. A imperiosa necessidade económica impôs o acordo de Juan Santos com Chávez, no qual um se comprometia a respeitar o que o outro fazia no seu país. Mas todos nós, colombianos, sabemos o que na realidade pensam Juan Santos e a sua corte. Todos, em uníssono, se juntaram ao coro de felicidade pelo golpe de 11 de Abril de 2002. A atitude continua a mesma. Não nos enganemos.

Eis um exemplo significativo do que significam as políticas neoliberais que Cuba e a Venezuela não admitem. Encontra-se em Guajira e chama-se Cerrejón. Há quase três décadas que se anunciava a milagrosa redenção que seria a exploração, a céu aberto, da maior mina de carvão do mundo. A realidade vale mais que mil palavras. Os milhares e milhares de milhões de dólares foram para outro lado. E os Wayú? E o aqueduto de Riohacha? E a miséria galopante na região? No princípio até tivemos uma empresa mineira carbonífera associada com a transnacional. Também a engoliram. A estória das locomotoras é mais do mesmo. Seria bom perguntar-lhe sobre a sua pela guerra total em vez da paz.

O eterno sambenito [9]

Não o culpo. Fizeram-nos muito mal com isso. É mais cómodo estigmatizar-nos e lançarem bombas sobre nós que deixar que falemos e exponhamos o nosso pensamento e a nossa proposta de país em igualdade de condições. É a sua vantagem competitiva, como eles dizem. Terem o apoio dos meios imperiais e locais para construírem o que quiserem. A cooptação da inteligência. A prisão e a cova para os que sustentam o contrário. Revejo-me sem hesitações no que expressou o Camarada Alfonso Cano sobre as FARC e o narcotráfico. Sem manhas de prestidigitador. Vou apenas acrescentar uma coisa, dada a gentileza de nos ter escrito. Imagino os adjectivos que isso me acarretará.

Se há ofício ingrato e malquerido é o de agente do fisco. Criar um imposto que incida sobre os compradores de pasta de coca significa cobrá-lo. Sucede que quem envia os seus emissários a buscar a mercadoria, palavra do jargão deles, é a máfia que cresceu à sombra do Estabelecido. Trata-se de pessoas que escolheram uma decisão de vida, a de fazer a maior quantidade de dinheiro no menor tempo possível, seja a que preço for. Para passar uma vida tão boa como os capitalistas que vêem no cinema e na televisão. Àqueles também os salvam os capitais em tempos de crise económica. Tratar com gente assim não é fácil. Os seus emissários terão sempre o propósito oculto de nos enganar. Não restava outro remédio senão sair-lhes ao caminho com algumas medidas, como fixar os locais exclusivos de venda, entre outros.

Sobre propostas deste tipo é que os nossos inimigos edificaram a lenda. Na realidade nós cobrávamos às máfias por entrarem a comerciar nas áreas sob nossa influência. Esse tipo de relação, que não precisamente a de bons amigos, converte-nos em demónios. A outros, com relações de propósitos muito mais reprováveis, corre-lhes melhor a carreira económica, política e militar. O governo dos Estados Unidos sim, esses sabem fazer a coisa, como se viu no famoso escândalo Irão-Contras. O problema connosco tem motivações muito diferentes. O semear e colher folha de coca obedecem a situações suficientemente explicadas neste país. O resto são cantigas, como disse Alfonso.

Antes de me despedir queria expressar-lhe os meus agradecimentos. Ainda que com muitas interrupções, o esforço para responder de algum modo às suas prementes inquietações, que honradamente espero não terminar de modo algum numa ofensa, foi para mim um enorme prazer. No meio das nossas diferenças, que não creio sejam tantas como poderia pensar-se à primeira vista, vejo-me obrigado a reconhecer no senhor um homem francamente preocupado pela realidade e o futuro do nosso país, um colombiano farto da violência que faz enormes esforços para contribuir que se abram as portas do diálogo e a saída civilizada do conflito. Só este facto torna-o credor do nosso fraterno abraço,

Cordialmente

Timoleón Jimenez
Comandante do Estado-Maior Central das FARC-EP

Montanhas da Colômbia, Dezembro de 2011.

Notas do Tradutor
:
[1] As cortes são a entidade judicial encarregada de zelar pelo cumprimento da Constituição.
[2] Ex-secretário-geral da Central Unitária dos Trabalhadores (CUT) entre 1981 e 1990; vice-presidente da União Patriótica até 1990; depois de um período de nojo aceitou, em 2000, ir para ministro de Andres Pastraña… Continuou a deslizar no plano inclinado e em 7 de Agosto de 2010 tomou posse como vice-presidente da Colômbia, apoiado por Juan Manuel Santos.
[3] Foi a data do assassínio de Gaitán (Jorge Eliecer Gaitán), o que provocou uma grande revolta popular conhecida como o Bogotazo.
[4] União dos Trabalhadores Colombianos fundada pelos Jesuítas em 1946…
[5] Godos é como, depreciativamente, se designam os espanhóis em alguns países da América Latina.
[6] Movimento estudantil que fez uma proposta em 1990 para que governadores e alcaides passassem a ser eleitos.
[7] Organismo criado pela Constituição de 1991 para defender os direitos humanos
[8] Político colombiano, candidato à Presidência da República em 1998, 2002 e 2006 pelo Partido Liberal Colombiano.
[9] «Hábito, em forma de saco, de baeta amarela, que se enfiava pela cabeça e que se vestia aos condenados que iam ser queimados nos autos-de-fé».

Tradução de José Paulo Gascão


Este texto foi originalmente publicado dia 17 de Janeiro de 2012 em







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