O caso Apple e a Europa do capital

O caso Apple e a Europa do capital
por Miguel Viegas

"No meio deste frenesim mediático, há uma parte da história que ficou na sombra dos holofotes. Em Fevereiro de 2014, Per Hellstrom, um quadro de topo da Direção Geral da Concorrência da UE requereu e foi-lhe concedida uma licença sabática, começando imediatamente a trabalhar para a Apple Benelux BV onde passou a desempenhar as funções de Diretor Sênior para os Assuntos da Regulação e Direito da Concorrência para a Europa, Médio Oriente e África. Per Hellstrom foi responsável por diversos casos de investigação envolvendo a Google e a Microsoft, acumulando com isto uma enorme experiência em pastas chave neste sector. A mudança ocorre escassos meses antes do início da investigação sobre a Apple (Junho de 2014). Um ano depois, este ex-quadro da famosa DG-COM rescinde formalmente o seu contrato com a Comissão Europeia, certamente para salvar as aparências. Este caso, que não é isolado (veja-se o caso de Durão Barroso), mostra-nos a permeabilidade existente entre as empresas multinacionais e as instituições europeias onde altos quadros vão e voltam, ao sabor das conveniências, mas sempre no intuito de melhor servir os interesses do dono."

Fomos recentemente bombardeados pelo famoso caso da Apple, objecto de uma condenação por parte da Direção Geral da Concorrência da União Europeia que obriga aquela multinacional a devolver a colossal soma de 13 mil milhões de euros ao Estado Irlandês por benefícios fiscais recebidos indevidamente entre 1991 e 2014. Numa altura em que a generalidade dos povos europeus desacredita cada vez mais nas instituições europeias, esta iniciativa da comissária sueca responsável pela pasta da concorrência é vista como uma manobra destinada a mostrar serviço, procurando criar mais uma fachada de preocupação social, como se esta UE não estivesse desde sempre ao serviço do grande capital europeu. Vale a pena por isso determo-nos um pouco sobre este caso que é de certa maneira emblemático dos interesses que estão em jogo e a quem serve de facto este processo de integração europeia.

O regabofe fiscal

A montagem fiscal nem sequer é original sendo usada há décadas pela quase totalidade das grandes empresas multinacionais, como atesta de resto a profusão de escândalos fiscais a que temos assistido recentemente (Luxleaks, Panamá papers etc.). A tramóia envolve a multinacional em causa, uma empresa de consultadoria e um governo solícito sempre pronto a ajudar o próximo (desde que seja milionário). O resultado é um acordo fiscal («tax ruling») que permite à empresa multinacional criar no país anfitrião uma empresa fictícia para onde são drenados todos os lucros realizados pelo mundo fora, com a garantia de que esta empresa fica isenta, total ou parcialmente do pagamento de impostos. 

Foi assim que a «Apple Sales International», a tal empresa para onde são canalizados todos os lucros obtidos na Europa, Ásia e África, foram tributados a 1% até 2004, passando posteriormente a 0,005%. Claro que a situação é escandalosa. No entanto vale a pena perguntar o que andavam as autoridades a fazer desde 1991. E vale a pena também referir outro aspecto relevante. É evidente que este caso constitui um roubo de receitas fiscais aos países onde a Apple realizou de facto os lucros. Mas nada disto está em causa. O problema não está nos 0,005% de impostos que a Apple pagou. O problema está na vantagem que isto lhe confere face à concorrência. Ou seja, se todas as multinacionais pagassem aquele valor de impostos não haveria problema...

Os amigos do capital

As reacções à decisão da Comissão Europeia não se fizeram esperar. O tesouro norte-americano já veio a terreno defender a sua dama (neste caso a Dona Apple). O governo Irlandês fez o mesmo, defendendo o seu sistema fiscal, que transformou aquele país num vasto e profícuo paraíso fiscal e recusando receber qualquer devolução de impostos. O Parlamento da Irlanda também tomou posição contra a decisão da Comissão Europeia apesar da corajosa posição do Sinn Féin, que recusou alinhar com a maioria. Dos países lesados com este esquema, que perderam milhões de euros em receitas fiscais, não se ouviu um pio. Pela parte do PCP, já questionamos a Comissão Europeia, procurando saber qual foi este valor por países e o que está a ser feito para ressarcir estes países, muitos deles castigados, como é o caso de Portugal, pelas políticas de austeridade.

O polvo europeu 

No meio deste frenesim mediático, há uma parte da história que ficou na sombra dos holofotes. Em Fevereiro de 2014, Per Hellstrom, um quadro de topo da Direção Geral da Concorrência da UE requereu e foi-lhe concedida uma licença sabática, começando imediatamente a trabalhar para a Apple Benelux BV onde passou a desempenhar as funções de Diretor Sênior para os Assuntos da Regulação e Direito da Concorrência para a Europa, Médio Oriente e África. Per Hellstrom foi responsável por diversos casos de investigação envolvendo a Google e a Microsoft, acumulando com isto uma enorme experiência em pastas chave neste sector. A mudança ocorre escassos meses antes do início da investigação sobre a Apple (Junho de 2014). Um ano depois, este ex-quadro da famosa DG-COM rescinde formalmente o seu contrato com a Comissão Europeia, certamente para salvar as aparências. Este caso, que não é isolado (veja-se o caso de Durão Barroso), mostra-nos a permeabilidade existente entre as empresas multinacionais e as instituições europeias onde altos quadros vão e voltam, ao sabor das conveniências, mas sempre no intuito de melhor servir os interesses do dono.

Não sabemos qual será o desfecho deste caso. Sabemos já que a Apple irá recorrer da sentença. E sabemos também que, para a sua defesa, poderá contar com a preciosa ajuda de um ex-quadro de topo que conhece por dentro e por fora os meandros das instituições europeias.



Fonte: Avante



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