"HÁ COMPROMISSOS E COMPROMISSOS"
"HÁ COMPROMISSOS E COMPROMISSOS"
por Gil C. Santos
(Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa)
"Face a todos estes tipos de riscos, é compreensível que Lénine tenha sentido a necessidade de evitar, quer os infantis e sectários voluntarismos revolucionários esquerdistas, quer as derivas oportunistas e capitulantes de direita – designadamente, procurando determinar critérios objetivos que permitam distinguir os diferentes tipos de compromissos que os partidos comunistas podem estabelecer com forças políticas burguesas e capitalistas.Numa palavra: é contra os esquerdistas que Lénine nega o não incondicional a qualquer tipo de compromisso, assim como é contra os oportunistas de direita que Lénine nega o seu sim incondicional."
1. Da importância dos compromissos contra todos os esquerdismos
No contexto da luta dos comunistas, Lénine (1920a: 70) defendeu, consistentemente, a importância e a necessidade da realização de compromissos com outras forças proletárias e, até mesmo, burguesas e capitalistas.
Os voluntarismos esquerdistas, os sectarismos e as impaciências subjectivas não constituem uma atitude marxista. Recorde-se a crítica que Engels, em 1874, endereçou aos 33 communards blanquistas que queriam “saltar por cima de estações intermediárias e de compromissos”, pretendendo ‘introduzir’ o comunismo “depois de amanhã” (Lénine 1920b: 126-127).
Nesta óptica, “negar os compromissos ‘por princípio’, negar a admissibilidade dos compromissos em geral, quaisquer que sejam, é uma criancice que até é difícil de levar a sério” (Lénine 1920b: 101).Aliás, recorda Lenine (op. cit.: 129), “toda a história do bolchevismo, antes e depois da Revolução de Outubro, está cheia de casos de manobra, de conciliação e de compromissos com outros partidos, incluindo os partidos burgueses!”.
Daí, também a importância de se adotar, conscientemente, uma flexibilidade táctica: “É necessário unir a fidelidade mais estrita às ideias do comunismo com a capacidade de estabelecer todos os compromissos práticos, as manobras, a conciliação, os ziguezagues, as retiradas, etc. (...): que todos os comunistas tenham consciência, em toda a parte e até ao fim, da necessidade da máxima flexibilidade na sua táctica.” (Lénine 1920b: 151-157).
Todavia, “[p]reparar uma receita, ou uma regra geral (“nenhuns compromissos!”) para todos os casos é absurdo” (Lénine 1920b: 128). Aliás, “todas as linhas divisórias na natureza e na sociedade são móveis e, até certo ponto, convencionais” (Lénine 1920b: 129).
Por esta razão, “[é] preciso saber analisar a situação e as condições concretas de cada compromisso ou de cada variedade de compromissos” (Lénine 1920b: 102), pois “[é] claro que se dão casos isolados extraordinariamente difíceis e complexos, em que só com os maiores esforços se consegue determinar correctamente o verdadeiro carácter de um ou outro ‘compromisso’” (op. cit.: 128).
2. Da importância da condição leninista para todos os compromissos
Compreendendo as inegáveis dificuldades que este tipo de análises sempre suscitam, estaremos, assim, condenados a avaliações exclusivamente circunscritas à relatividade de cada contexto, e susceptíveis de acomodar, por essa via, todos os tipos de relativismos oportunistas?
Não. “Há compromissos e compromissos.” (Lénine 1920b: 102). Apesar das especificidades dos diferentes momentos históricos e das tácticas respectivas que se lhes impõem, é possível identificar um critério transversal a todos os tempos, contextos e lugares. Um critério que nos permite avaliar se um dado acordo ou compromisso se impõe por condições objectivas, ou se, pelo contrário, constitui (ou conduz a) uma capitulação e a uma traição à classe trabalhadora.
Ei-lo: qualquer compromisso deverá ser realizado à luz exclusiva de uma “táctica para elevar, e não para diminuir, o nível geral de consciência proletária, de espírito revolucionário e de capacidade de luta e de vitória do proletariado” (Lénine 1920b: 133). Em circunstância alguma deverá ser defendido um compromisso que “limite os comunistas na sua luta ideológica e política contra a ala direita, oportunista” (idem), e que diminua “a disposição para continuar a luta” dos trabalhadores (Lénine 1920b: 127).
Nesta ordem de ideias, a flexibilidade táctica impõe-se, sim, mas sempre com condições que limitem a possibilidade de serem gerados movimentos oportunistas – sejam estes, de direita, ou de esquerda. Por isso é que há que assumir um ponto de vista dialéctico, fazendo muito pouco sentido (a não ser como recurso de uma táctica meramente retórica e sofística num contexto de polêmica) perguntar: devemos aceitar acordos e compromissos com forças capitalistas ou, pelo contrário, recusá-los a todo o custo? Devemos reconhecer a necessidade de programas de medidas reformistas, ou rejeitá-los sumariamente?
Como escreveu Engels (1883: 493), o pensamento “dos ‘ou..., ou...’ incondicionais e universalmente válidos” é produto de uma lógica de disjunções exclusivas que a dialéctica marxista sempre rejeitou. A dialéctica “não conhece linhas de distinção rígidas e imutáveis” (hard and fast lines) entre oposições concebidas como diferenças metafísicas entre si independentes, imutáveis e absolutas.
Tudo depende, por isso, dialéctica e materialisticamente, de qual compromisso ou acordo, etapa ou programa de reforma se pretende (designadamente, quais os seus objectivos), em que circunstâncias eles são defendidos (cf. Lénine 1920a: 70), bem como as consequências que as formas da sua persecução e implementação podem acarretar. No caso particular dos compromissos é, por isso, importante não esquecer o critério leninista de avaliação: promove, este ou aquele compromisso, a “elevação” ou a “diminuição” do “nível geral de consciência proletária, de espírito revolucionário e de capacidade de luta e de vitória do proletariado”? Com efeito, a natureza de um compromisso não se esgota nos termos do próprio compromisso e no texto que os enuncia. A sua natureza integra também as formas como os partidos comunistas se comportam e posicionam durante todo o processo de vigência desses mesmos compromissos, e os efeitos que delas decorrem.
Quando os partidos comunistas assumem o seu papel de vanguarda, criando condições para a luta de massas e, após o estabelecimento de compromissos com partidos da burguesia, se demitem do seu papel, chegando mesmo a gerir a luta à luz desses mesmos compromissos, e não elevando, por essa via, a consciencialização e a mobilização para a luta, então, estamos perante o abandono da perspectiva leninista dos compromissos.
Embora este seja, certamente, um processo de análise complexa, o desvio social-democratizante dos partidos comunistas é uma realidade cujos traços característicos são bem conhecidos:
1) um comportamento essencialmente adaptativo às circunstâncias e aos interesses conjunturais, atento às putativas vantagens e aos eventuais sucessos do momento presente, negligenciando ou esquecendo, por isso, os interesses fundamentais do proletariado (cf. Engels 1891: 227; Lénine 1908: 344);
2) uma promoção exclusiva das formas institucionais e parlamentares de luta, tendo como objectivo fundamental o sucesso nos atos eleitorais, com base na “ilusão” de que é possível realizar todas as reivindicações por via “cordial” e “pacífica” (Engels 1891: 227); e
3) a legitimação teórica (e a posteriori) de tais atitudes, pela elaboração de uma concepção gradualista do processo histórico da luta de classes, por uma nova teoria do Estado (entre outras) e, consequentemente, pela defesa de uma doutrina reformista. A táctica dos compromissos, acordos, desvios e recuos tácticos é, então, separada do objectivo de uma consciencialização e mobilização dos trabalhadores para a necessidade de uma revolução socialista. Compromissos, acordos e programas de reformas são defendidos como ingredientes de etapas postuladas como necessárias e que, bem sucedidas, conduzirão, como que por si mesmas, ao ideal utopista da chegada do momento propício para uma transição para o socialismo. Como escrevia Engels (1891: 226), procuram convencer-se a si mesmos e ao Partido que a sociedade dos nossos dias está já a rumar para o socialismo. O progresso far-se-á, assim, paulatinamente, como que teleologicamente orientado pela lógica interna da economia capitalista, e pelo destino a que os seus desgastes e as suas crises inevitavelmente conduzirão.
É, em suma, a história que a História está ‘do nosso lado’ e fará o seu caminho regida pelas suas próprias leis, não obstante, esta reificação e esta visão determinística da História tenha sido tão energicamente criticada por Marx e Engels – em A Sagrada Família, onde se escreve: “A História não faz nada” (1845: 93), ou em A Ideologia Alemã, onde se critica a transformação idealista da História numa “pessoa a par de outras pessoas” com objectivos que lhe são próprios (1845-6: 50) –, bem como, mais tarde, por Gramsci (1932): se as bolotas tivessem uma ideologia, esta dir-lhes-ia estarem grávidas de carvalhos, quando, na realidade, “999 bolotas em 1000 servem de ração para porcos, contribuindo, quando muito, para fazer salsichas e mortadela”.
Finalmente, e por outra via, no seio de todos quantos resolveram abraçar (mais, ou menos, explicitamente) alguma versão do que se convencionou chamar eurocomunismo, assiste-se a uma “multiplicação programática das etapas – a democracia avançada do PCF, concebida como ‘transição para a transição’ (Claudín) – que renova, pela sua parte, os pressupostos do socialismo utópico, relegando o comunismo para uma insondável idade do Ouro” (Thiry 1998: 1174).
Face a todos estes tipos de riscos, é compreensível que Lénine tenha sentido a necessidade de evitar, quer os infantis e sectários voluntarismos revolucionários esquerdistas, quer as derivas oportunistas e capitulantes de direita – designadamente, procurando determinar critérios objetivos que permitam distinguir os diferentes tipos de compromissos que os partidos comunistas podem estabelecer com forças políticas burguesas e capitalistas.
Numa palavra: é contra os esquerdistas que Lénine nega o não incondicional a qualquer tipo de compromisso, assim como é contra os oportunistas de direita que Lénine nega o seu sim incondicional.
Há compromissos e compromissos. E por isso, se é verdade que devemos sempre avaliar cada compromisso individual em função do seu contexto respectivo, não é menos verdade que tornarmo-nos reféns dos interesses dos parceiros dos nossos compromissos, moderando ou silenciando as críticas, e abrandando, senão mesmo bloqueando, certas formas de luta, representaria uma atitude de capitulação e traição. Como alertou Lénine (1920a: 70), “através de todos os compromissos que, por vezes, se impõem de modo necessário”, “o que é importante é saber (...) conservar, reforçar, temperar, desenvolver a táctica e a organização revolucionária, a consciência revolucionária, o espírito de decisão, a preparação da classe operária e da sua vanguarda organizada, o partido comunista”.
Com efeito, sem o cumprimento desta condição leninista de permanência e reforço da consciencialização e mobilização dos explorados para a sua luta, já não estaríamos perante a defesa da concepção anti-esquerdista de Lénine sobre os compromissos que todos os partidos comunistas deverão sempre considerar. Aí estaríamos já perante uma outra coisa com outro nome. Um desvio oportunista de direita para um processo de social-democratização.
Referências bibliográficas
Marx e Engels [1845], The Holy Family, or Critique of Critical Criticism. In: Karl Marx and Frederick Engels, Collected Works, vol. 4, New York: International Publishers/Moscow: Progress Publishers, 1975.
Marx e Engels [1845-6], The German Ideology. In: Karl Marx and Frederick Engels, Collected Works, vol. 5, New York: International Publishers/Moscow: Progress Publishers, 1975.
Engels [1883], Dialectics of Nature [‘Notes and Fragments: Dialectics, a) General Questions of Dialectics. The Fundamental Laws of Dialectics’], In: Karl Marx and Frederick Engels, Collected Works, vol. 25, New York: International Publishers/Moscow: Progress Publishers, 1987.
Engels [1891], A Critique of the Draft Social-Democratic Programme of 1891, In: Karl Marx and Frederick Engels, Collected Works, vol. 27, New York: International Publishers/Moscow: Progress Publishers, 1990.
Gramsci [1932], Quaderno 9, “Passato e presente”, §131 (URL: http://dl.gramsciproject.org/quaderno/9/nota/131.html).
Lénine [1908], “Marxismo e Revisionismo”, Obras Escolhidas em Seis Tomos, t. 1, Lisboa/Moscovo, Edições Avante!/Edições Progresso, 1984, pp. 338-346.
Lénine [1920a], “Sobre os Compromissos” (Março-Abril de 1920), In: V. I. Lénine, Obras Escolhidas em Seis Tomos, t. 5, Lisboa/Moscovo, Edições Avante!/Edições Progresso, 1986, pp. 69-71.
Lénine [1920b], A Doença Infantil Do ‘Esquerdismo’ no Comunismo (Abril-Maio de 1920), In: V. I. Lénine, Obras Escolhidas em Seis Tomos, t. 5, Lisboa/Moscovo, Edições Avante!/Edições Progresso, 1986.
Thiry, B. [1998], “Transition socialiste”, Dictionnaire critique du marxisme (Gérard Bensuassan e Georges Labica, dir.), Paris, Quadrige/PUF, 1998 (3ª ed.), pp. 1171-1175.
Fonte: Cravo de Abril
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