Os carrascos dos Balcãs

Os carrascos dos Balcãs
Guerras democráticas, crimes humanitários e mentiras caridosas 
por Anabela Fino

A prontidão com que se encerrou o «ficheiro Milosevic» legitima a convicção de quantos não se deixaram enganar pela campanha de desinformação levada a cabo a nível mundial, e que cedo perceberam que o grande «perigo» do julgamento do dirigente sérvio não era que este viesse a provar a sua inocência, mas antes que provasse as atrocidades cometidas pela NATO com o patrocínio dos EUA e da União Europeia (UE), e desmascarasse o plano concebido e executado por Washington para a destruição da Federação Jugoslava.

Não terá sido certamente por acaso que o julgamento de Milosevic começou, há cerca de quatro anos e meio, como um grande espectáculo mediático, e em poucas semanas foi banido dos noticiários, até cair no esquecimento.

Como escreveu a propósito Paul Craig Roberts (ex-secretário adjunto do Tesouro na administração Reagan, editor associado do Wall Street Journal, colaborador da National Review e co-autor de «A Tirania das Boas Intenções») se a «massiva campanha de propaganda contra Milosevic tivesse sido apoiada por muitos factos, ele teria sido condenado em Haia». Não foi.

Coloca-se então a questão de saber porquê.

[NE: como se refere no cabeçalho, sublinha-se que este artigo foi publicado em 2006/04/06. Além do mais, bastaria a breve referência a Guterres e Durão Barroso para justificar a sua publicação]

«Slobodan Milosevic, presidente do Partido Socialista da Sérvia e ex-presidente da Sérvia e da Jugoslávia, foi assassinado hoje no Tribunal de Haia. A decisão do Tribunal de recusar o tratamento médico de Milosevic no Instituto Bakunin em Moscovo representa um prescrição de sentença de morte contra Milosevic. A verdade e a justiça estavam do seu lado e por isso utilizaram uma estratégia de assassinato gradual de Slobodan Milosevic. A responsabilidade da sua morte recai evidentemente sobre o Tribunal de Haia.»

A acusação é de Zoran Andelkovic, dirigente do Partido Socialista Sérvio, e foi proferida a 11 de Março de 2006, o próprio dia da morte de Milosevic. 

Cerca de um mês depois, a pesada cortina de silêncio imposta sobre as obscuras causas do seu desaparecimento só tem paralelo na que envolve a actividade do «tribunal» e na que esconde os verdadeiros motivos da sua criação. 

É necessário retroceder mais de duas décadas para encontrar a ponta desta intricada meada que, segundo Sean Gervasi («Alemanha, Estados Unidos e a Crise Jugoslava», Covert Action Quarterly, nº 43), citado num artigo de Michel Chossudovsky, consta do documento secreto intitulado «Política dos Estados Unidos para a Jugoslávia».

Uma versão censurada deste documento, divulgada em 1990, revela que os objectivos dos EUA incluíam «desenvolver esforços para promover uma ‘revolução silenciosa’ e derrubar Partidos e Governos comunistas» enquanto se reintegravam os países do Leste europeu na economia de mercado.

O assalto à Jugoslávia teve início em 1980, pouco antes da morte de Tito e muito antes de Milosevic chegar à presidência da República (Maio de 1989), sob a forma de um programa macro-econômico de reformas imposto ao governo de Belgrado pelos credores estrangeiros. Segundo Michel Chossudovsky, esse programa deu início ao «colapso da economia nacional, que começou com a desintegração do sector industrial e a destruição e o desmantelamento do Estado de bem-estar social».

Para o conceituado economista, «a reestruturação macro-econômica aplicada na Jugoslávia sob um programa de política neoliberal levou inequivocamente à destruição de um país inteiro».

Sublinhando que «já desde o início da crise, este papel principal das reformas macro-econômicas foi cuidadosamente dissimulado e inclusivamente negado pelos grandes meios de comunicação social», Chossudovsky faz notar que «o impacto social e político da reestruturação econômica na Jugoslávia foi cuidadosamente apagado da nossa consciência social e da compreensão colectiva», o que permitiu que «as divisões culturais, étnicas e religiosas fossem apresentadas dogmaticamente como a única ‘causa’ da crise, quando na realidade são a ‘consequência’ de um grave processo de destruição econômica e política» (in Dismantling former Yugoslavia, recolonising Bosnia / Desmantelamento da antiga Jugoslávia, recolonizando a Bósnia - 1995).

Um programa de destruição 

Os dados do Banco Mundial («Estudo de Reestruturação Industrial, considerações, Resultados e Estratégia para as reformas», Washington DC, Junho de 1991) confirmam as palavras de Chossudovsky: o crescimento da produção industrial, que no período de 1966/1979 tinha registado um índice anual de 7,1 por cento, caiu para zero entre 1987/88 e tombou até -10,6 por cento em 1990. 

Segundo Sean Gervasi, o auge das reformas impostas com a ajuda do Fundo Monetário Internacional (FMI) ocorreu sob o governo federal do primeiro-ministro Ante Markovic, pró-americano, que quando Milosevic chegou à presidência da República já tinha acordado com Bush (pai) a implementação de medidas como a desvalorização brutal da moeda (2700 por cento em 1989), congelamento dos salários, redução drástica da despesa pública, alteração da legislação para facilitar os investimentos estrangeiros, destruição do sector empresarial do Estado e liquidação do regime de autogestão.

Este pacote de medidas - sob a forma de um Acordo com o FMI e como condição para um empréstimo do Banco Mundial (BM) e para a negociação da dívida externa com os clubes de Londres e Paris - , foi posto em marcha em Dezembro de 1989. 

As consequências foram dramáticas, como atestam os próprios dados do BM: o salário real baixou cerca de 41 por cento nos primeiros seis meses de 1990, e em apenas dois anos mais de 600 000 trabalhadores da indústria, num total de 2,7 milhões, ficaram no desemprego. Enquanto isso, a estrutura orçamental da federação entrou em colapso, o que levou à suspensão das transferências de verbas do governo central para as repúblicas e províncias autônomas. As regiões onde se registraram mais falências de empresas e mais despedimentos, assinala o BM, foram a Sérvia, Bósnia-Herzegovina, Macedônia e Kosovo.
Estava preparado o terreno que havia de servir de palco à guerra nos Bálcãs e ao fim da Jugoslávia.

Os separatistas foram apresentados como vítimas, aclamados como heróis e financiados como amigos. Os que tentaram manter a federação foram demonizados perante a opinião pública, condenados, bombardeados e finalmente derrotados. 

Quando Milosevic assinou os acordos de Dayton, em 1995, a delimitação das fronteiras há muito que tinha sido traçada em função dos interesses dos EUA e dos grandes grupos econômicos.

Vale a pena reflectir se terá sido por pura coincidência que a principal frente de batalha no Verão de 1995 entre croatas e sérvios da Bósnia, na Bósnia e na Krajina, tenha sido na região de Dinar, justamente onde foram identificadas as principais jazidas de carvão e petróleo. E já agora, se terá sido também por acaso que a Amoco (American Oil Company), sediada em Chicago, com outras companhias estrangeiras, tenham iniciado então as suas próprias prospecções.

Como referia na época o San Francisco Chronicle (28 de Agosto de 1995), «o Ocidente está sôfrego por explorar essas regiões (...) O Banco Mundial - e as multinacionais que dirigem as operações - estão pouco dispostos a divulgar aos governos combatentes as suas últimas informações sobre as explorações, enquanto a guerra continuar.»

O genocídio que não existiu

Após os acordos de Dayton que puseram fim à guerra na Bósnia, o que sobrou da Federação Jugoslava continuava a ser de mais para as potências ocidentais, que não podiam tolerar a insubmissão da Sérvia. 

A estratégia passava agora pelo Kosovo, província sérvia «colonizada» pela minoria albanesa, onde no Inverno de 1997/1998 o auto-intitulado Exército de Libertação do Kosovo (UÇK) proclama a guerra pela unificação do território com a Albânia.

Os ataques contra polícias e civis entram na ordem do dia, aparentemente à revelia dos ditames de Washington, cujo representante para a antiga Jugoslávia, Robert Gelbard, chega a afirmar em conferência de imprensa (23 de Fevereiro de 1998), que o UÇK era «sem qualquer dúvida um grupo terrorista». Na altura, Gelbard «condena fortemente» as actividades terroristas.

Belgrado faz o que seria de esperar em tais circunstâncias: combate a insurreição separatista.

Enquanto isso, os EUA afastam-se gradualmente da posição do seu representante, indo ao ponto de explicarem, numa conferência de imprensa em 29 de Junho de 1998, que cabe à secretária de Estado (à época Madeleine Albright) «determinar quando uma organização é ‘uma organização terrorista’, e essa determinação não está feita no caso do UÇK».

Como os factos viriam a comprovar, os EUA intervieram a favor dos separatistas, apoiados por uma campanha de desinformação em tudo idêntica à que alguns anos depois iria ser utilizada no Iraque com as propagandeadas «armas de destruição maciça».

No Kosovo, a campanha contra Milosevic teve por mote o «genocídio» da população albanesa. A mentira, repetida até à exaustão, criou o clima propício aos bombardeamentos da Nato contra a Sérvia, com o seu cortejo de «danos colaterais».

Durante 78 dias, entre 24 de Março e 10 de Junho de 1999, as bombas «humanitárias» mataram pelo menos 500 civis sérvios e uma destruição estimada em 100 000 milhões de dólares.

Depois da guerra, a própria Nato informava que 2000 pessoas tinham sido mortas de ambos os lados do conflito no ano anterior aos bombardeamentos. Em Novembro de 1999, uma investigação própria do Wall Street Journal concluía que em vez dos «imensos campos da morte que alguns investigadores chegaram a esperar (...) o padrão é de mortes isoladas em áreas onde o separatista Exército de Libertação do Kosovo tinha estado activo».

Ainda segundo aquele jornal, a Nato tinha empolado as declarações sobre o genocídio quando «viu um grupo de imprensa cansado que se orientava para uma história diferente - civis mortos por bombas da NATO». 

E concluía: «A guerra do Kosovo foi cruel, selvagem. Mas não foi um genocídio.»

À mesma conclusão chegou Phillip Hammond, da South Bank University (Degraded Capability, The Media and the Kosovo Crisis, Pluto Press, 2000):

«Talvez nunca venhamos a saber o número certo de mortos. Mas parece razoável concluir que ainda que tenham morrido pessoas nos confrontos entre o UÇK e as forças jugoslavas (...) o quadro pintado pela Nato - de uma campanha sistemática de ‘genocídio’ de estilo nazi cometido pelos sérvios - foi pura invenção.»

Sete anos depois do Kosovo e três anos depois do Iraque é por demais evidente que a destruição da Jugoslávia e os crimes de guerra cometidos para o conseguir, bem como a campanha de mentiras que os justificaram perante a opinião pública, criaram um precedente que permite aos EUA levar a cabo intervenções «humanitárias» ao sabor dos seus interesses. De Clinton a Bush, acolitados por subservientes homens de mão - chamem-se eles António Guterres ou Durão Barroso - os crimes de guerra passaram a ser da exclusividade dos adversários a abater em qualquer ponto do globo. 

Bush acredita que pode repetir a receita no Irão e a União Europeia assesta já baterias para a campanha mediática dita anti-nuclear. O porta-voz é Javier Solana, com provas dadas no ataque à Jugoslávia, onde em nome da «liberdade de expressão» mandou atacar com mísseis a Televisão de Belgrado, cujos destroços permanecem na capital sérvia como um símbolo do império americano. 

Curiosidades

O «futuro estatuto» do Kosovo começou a ser discutido em Viena, em Fevereiro último, apesar de a resolução 1244 da ONU estipular que aquela região da Sérvia é parte integrante da Jugoslávia.

A República Srpska, que os acordos de Dayton consagraram como um Estado sérvio constitutivo da Bósnia, está ameaçada de extinção a pretexto de uma nova reforma constitucional.

Na Voivodina, os separatistas estão cada vez mais activos com o apoio pouco discreto dos serviços secretos ocidentais.

Nas masmorras do «tribunal» de Haia está encarcerado há dois anos o sérvio Vojislav Seselj. Dado que na maior parte dos anos 90 esteve na oposição, não pode ser «acusado» de colaborar com Milosevic. O seu processo ainda nem sequer começou. É um ‘perigoso’ patriota sérvio. Teme-se que esteja a ser submetido ao mesmo «tratamento» de Milosevic.

Mykolas Burokevicius, dirigente comunista lituano, nascido em 1927, foi encarcerado numa prisão da Nato na Lituânia em 1994 pela sua suposta implicação num golpe a favor da permanência da Lituânia na URSS em 1991. Doze anos depois foi libertado. Teve sorte. Sobreviveu.


Anabela Fino






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