Tragédias, mitos, cinismo e novos perigos

Tragédias, mitos, cinismo e novos perigos
por Rui Fernandes

"As medidas decididas pela UE de triplicação dos fundos da Operação Tritão e do Programa Frontex, vocacionados para o controlo das fronteiras externas da UE e não para o salvamento e integração dos migrantes e refugiados, e o reforço da cooperação de instituições de cariz policial – como o Eurojust e a Europol – com a política de asilo da UE, nomeadamente para identificação por impressão digital do DNA dos migrantes, para proceder ao repatriamento de todos os que não se considerarem necessitar de protecção especial, a par de acções armadas sobre putativas embarcações usadas para o transporte de refugiados, não resolvendo nenhum problema, contêm os ingredientes para acelerar novos problemas."

As tragédias com refugiados sucedem-se, no Mediterrâneo e fora dele. Resultado directo das opções militares intervencionistas na Síria, Líbia e outros países e do caos não inocente instalado nesses países, milhares de pessoas fogem de uma vida que as aproxima cada vez mais da morte. As opções que lhes estão colocadas é morrer tentando o direito a viver ou morrer. Como disse um representante da Associação de Refugiados em Portugal no recente debate sobre esta temática, promovido pelo PCP, «nós não procuramos uma vida melhor. Procuramos simplesmente vida porque para trás era a morte». 

Ele próprio chegou a Malta através de uma embarcação de oito metros, com muitos outros, incluindo os filhos. O ACNUR reinstalou-os em Portugal. Aqui chegados não têm qualquer apoio para aprendizagem da língua com vista a facilitar a sua integração e não têm trabalho. Como o próprio disse «não queremos ser mendigos. Queremos trabalhar e construir as nossas vidas». Passados poucos anos perdem apoios sociais, são refugiados mas aplica-se-lhes o enquadramento legislativo de imigrante, com a particularidade de não poderem sair do País, ao contrário do que acontece com os imigrantes. Apoio jurídico que os ajude a resolver os vários problemas que se lhes coloca não existe e inicia-se um tortuoso caminho das pedras para acederem e fazerem valer direitos. 

Desconstruir mitos 

Os que promovem os conflitos para satisfazerem os seus objectivos de rapina e/ou conquistarem posições estratégicas, são os mesmos que usam as consequências dessas suas acções para desenvolverem no plano ideológico campanhas tendentes a favorecer a adopção de novas medidas de natureza repressiva que favoreçam os seus interesses.

Uma das ideias, mais expressa ou subliminarmente passada (muitas vezes até somente pelas imagens que mostram) é a da invasão ou a da perda identitária, a prazo, dos países. Ora, a verdade é que 87 a 90 por cento dos refugiados ficam nos países vizinhos. Ou seja, o número dos que ousam tentar chegar a outras paragens distantes são uma imensa minoria. Outra ideia repisada é a da ilegalidade, amalgamando nesta adjectivação realidades que são, por natureza, completamente distintas, confundindo dinâmicas de refugiados com as da imigração. E sempre importará saber: a quem serve a existência de pessoas indocumentadas? E importará saber também: há seres humanos ilegais ou se há práticas ilegais efectuadas por seres humanos?

Ora, a imigração não é um problema em si mesmo. A imigração existe, sempre existiu e continuará a existir. Os problemas são a imigração ilegal e é a tendência geral existente no plano legislativo, acompanhado das orquestradas campanhas ideológicas, de misturar causas migratórias e respectivos enquadramentos, com deslocações de refugiados.

As medidas perigosas e cínicas da União Europeia

As medidas decididas pela UE de triplicação dos fundos da Operação Tritão e do Programa Frontex, vocacionados para o controlo das fronteiras externas da UE e não para o salvamento e integração dos migrantes e refugiados, e o reforço da cooperação de instituições de cariz policial – como o Eurojust e a Europol – com a política de asilo da UE, nomeadamente para identificação por impressão digital do DNA dos migrantes, para proceder ao repatriamento de todos os que não se considerarem necessitar de protecção especial, a par de acções armadas sobre putativas embarcações usadas para o transporte de refugiados, não resolvendo nenhum problema, contêm os ingredientes para acelerar novos problemas.

Como discernir entre o que é e não é embarcação de traficantes? Ou será que para a UE todas as que transportam refugiados são de traficantes? Que resultado prático tem destruir embarcações que rapidamente são substituídas por outras, dado o seu baixo custo? Estas e muitas outras questões de pouco interessam, inclusive ao Governo português que subscreveu as medidas. 

Como alguém referiu no debate atrás referido, se em vez de existir o mar Mediterrâneo, existisse terra, já estaria em construção mais um muro. É esta concepção de Europa «fortaleza» que está presente nas medidas adoptadas, a par do reforço supranacional dos mecanismos de securitários. E no entanto, existe uma Convenção Internacional da ONU sobre a protecção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e membros das suas famílias (Resolução nº 45/158 de 18 de Dezembro 1990) que estabelece um vasto conjunto de princípios sobre direitos e liberdades dos migrantes, independentemente da sua situação regular ou irregular, o direito ao reagrupamento familiar e a prevenção ao tráfico de pessoas, etc., aliás, aspectos sobre os quais a União Europeia tem vindo sucessivamente a adoptar normativos. Embora aprovada em 1990, a Convenção só entrou em vigor enquanto instrumento pleno em 2003, ano em que obteve a subscrição do número mínimo de vinte países necessário para o efeito. Nenhum desses países era da União Europeia.


Fonte: Avante



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