A questão do Estado questão central de cada revolução

A questão do Estado questão central de cada revolução 
por Álvaro Cunhal

"Segundo a teoria leninista, o Estado numa sociedade dividida em classes antagônicas é sempre uma ditadura. A expressão «ditadura» sublinha que o Estado não está acima das classes, não é um instrumento de conciliação das classes nem um árbitro entre elas, antes é a «organização da violência», é um «poder especial de repressão», é um organismo de dominação de umas classes sobre outras. Em resumo: numa sociedade dividida em classes antagônicas, Estado é sinônimo de Ditadura."

A 30 quilómetros a Noroeste de Leningrado, Razliv é hoje um lugar histórico. Aí, num sítio ermo, se pode ver a reconstituição da cabana onde Lénine viveu clandestinamente em Agosto de 1917. Aí se pode ver também o cepo de uma árvore, que Lénine utilizava como mesa para escrever. 

O Verão de 1917 foi um momento de viragem decisiva na revolução russa. Terminara a dualidade de poderes, situação original criada pela revolução, em que, ao lado do governo provisório, governo da burguesia, se formara um outro governo «indubitavelmente existente de facto e em desenvolvimento: os sovietes de deputados e operários e soldados.»1 Os mencheviques e socialistas-revolucionários, impedindo que todo o poder fosse entregue aos sovietes e entrando num «governo de coligação», entregaram de facto todo o poder à burguesia. A contra-revolução passou à ofensiva. Novas tarefas se colocaram ao proletariado e ao seu partido, o partido dos bolcheviques. Como descreveu Lenine, se até Julho «era ainda possível o desenvolvimento pacífico em diante da revolução russa», a partir de então a questão punha-se em novos termos «ou a vitória completa da contra-revolução, ou uma nova revolução».2 

Nas vésperas da «nova revolução», que problema considerava Lénine necessário abordar sem perda de tempo e o levava a escrever febrilmente no cepo da árvore em Razliv? Esse problema era o problema do Estado e a obra que então Lénine escrevia viria a constituir uma obra fundamental da teoria da revolução: O Estado e a Revolução.

Já nas «Teses de Abril»,3 Lénine caracterizava a situação como a «transição da primeira etapa da revolução, que deu o poder à burguesia», para a segunda etapa, que devia dar o poder ao proletariado e às camadas pobres do campesinato. De Abril a Julho de 1917, em numerosos artigos e discursos, Lénine insiste na importância do problema do Estado. É porém em O Estado e a Revolução que, não só expõe duma forma sistematizada a teoria de Marx e a defende dos seus detractores, como a aprofunda e enriquece com a sua investigação teórica criadora assente nas experiências do movimento revolucionário. 

Nas vésperas da revolução socialista, a ideia fundamental que Lénine julga necessário demonstrar exaustivamente e defender com paixão é que, conquistando o poder, o proletariado não se pode limitar a tomar conta do aparelho do Estado burguês, mas tem de destruí-lo e substituí-lo por um novo Estado.  

1. 

A teoria marxista da luta de classes permite explicar a origem e a natureza do Estado e os seus diversos tipos e formas. 

Marx descobriu e demonstrou que o Estado é um poder que nasce da sociedade numa fase determinada do seu desenvolvimento, como resultado da divisão em classes e do antagonismo irreconciliável das classes, como necessidade do recurso à coacção por uma minoria exploradora para manter a exploração da maioria. 

O Estado é uma «organização especial do poder», «um poder especial de repressão», «a organização da violência», um aparelho militar e burocrático constituído especialmente pelas forças armadas, pela polícia, pelos tribunais, pelos órgãos legislativos e executivos, pelo funcionalismo. Aparentemente acima da sociedade e das classes, o Estado é na realidade um instrumento de dominação e opressão de uma classe sobre outras classes. 

A correcta compreensão da natureza do Estado é essencial para toda a acção revolucionária do proletariado, particularmente quando se coloca na ordem do dia a conquista do poder. 

Marx descobriu que a luta de classes, que se trava na sociedade capitalista, conduz necessariamente à revolução da classe operária, à conquista do poder político pelo proletariado, a um novo Estado definido no Manifesto Comunista como «do proletariado organizado como classe dominante».4 

Esta é a conclusão fundamental da teoria marxista da luta de classes. Não podem pretender ser marxistas aqueles que a rejeitam. Falando da sua teoria da luta de classes, Marx lembrava que não lhe cabia a ele o mérito, nem de ter descoberto a existência das classes, nem de ter descoberto a luta de classes. «O que de novo eu fiz, foi: 

1. demonstrar que a existência das classes está apenas ligada a determinadas fases de desenvolvimento histórico da produção; 

2. que a luta das classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado; 

3. que esta mesma ditadura só constitui a transição para a superação de todas as classes e para uma sociedade sem classes.»5

O papel do proletariado na revolução socialista decorre das suas próprias características como classe na sociedade capitalista. «De todas as classes que hoje em dia defrontam a burguesia» – proclamava o Manifesto Comunista – «só o proletariado é uma classe realmente revolucionária». «Os proletários nada têm a perder a não ser as suas cadeias. Têm um mundo a ganhar.»6 

Defendendo e desenvolvendo as ideias de Marx, Lénine insistiu em que só o proletariado, como «única classe revolucionária até ao fim», pode ser «o chefe de todas as massas trabalhadoras e exploradas que a burguesia explora, oprime e esmaga muitas vezes não menos mais fortemente que os proletários, mas que são incapazes de uma luta independente pela sua emancipação.» Por isso, o poder da burguesia só pode ser abatido «pela transformação do proletariado em classe dominante capaz de reprimir a resistência, inevitável, desesperada, da burguesia e de organizar para um novo regime de economia todas as massas trabalhadoras e exploradas».7 

O proletariado transformado em «classe dominante» como escreveu Lénine, o proletariado «organizado como classe dominante» como definiu o Manifesto, é precisamente a ditadura do proletariado, o novo Estado proletário. «O proletariado necessita do poder de Estado, de uma organização centralizada da força, de uma organização da violência, tanto para reprimir a resistência dos exploradores como para dirigir a imensa massa da população, o campesinato, a pequena burguesia, os semiproletários, na obra da organização da economia socialista».8 

Mas como organizar o poder do Estado? A conquista do poder significará a conquista do aparelho do Estado? A esta questão Marx deu uma primeira e clara resposta, que depois Lénine desenvolveu. 

Estudando atentamente a experiência revolucionária, Marx sublinhava em 1852 que até então as revoluções políticas não tinham feito mais do que aperfeiçoar a máquina do Estado pois «os partidos que lutavam alternadamente pela dominação, consideravam a tomada de posse deste imenso edifício do Estado como a presa principal do vencedor».9 A experiência da grande revolução proletária do século XIX, a Comuna de Paris de 1871, permitiu a Marx avançar e precisar a sua doutrina. Essa experiência comprovou que, ao contrário do sucedido nas revoluções burguesas, «a classe operária [ao conquistar o poder] não pode apossar-se simplesmente da maquinaria de Estado já pronta e fazê-la funcionarpara os seus próprios objectivos».10 Destruir a máquina do Estado, concluiu Marx, «é a condição prévia de toda a verdadeira revolução popular no continente.»11 

É nessa conclusão fundamental que Lénine insiste e é sobre ela que escreve no cepo da árvore em Razliv, no Verão de 1917, no momento em que ao proletariado russo se colocava a tarefa de realizar a sua revolução. A libertação da classe oprimida (escreve Lénine) é impossível «s e m a  d e s t r u i ç ã o  do aparelho do poder de Estado que foi criado pela classe dominante» e a sua substituição «”por uma força especial para a repressão” da burguesia pelo proletariado». 12 

Lénine alertava contra quaisquer ilusões que pudessem existir acerca da possibilidade de realizar a revolução socialista, se o proletariado e as classes dominantes se limitassem tomar conta do aparelho do Estado, cuidando poder utilizá-lo contra a burguesia. Em conformidade com tal conclusão, indicava ao proletariado russo e ao seu partido uma tarefa capital para a conquista do poder pelos trabalhadores: a destruição do Estado burguês e a construção dum novo Estado, dum Estado dos operários e camponeses que, sob a direcção da classe operária, quebrasse a resistência decerto encarniçada da burguesia, suprimisse a exploração do homem pelo homem, pusesse termo à divisão da sociedade em classes, assegurasse a transformação revolucionária da sociedade capitalista em sociedade socialista. 

Tal a essência da ditadura do proletariado.  

2. 

Quando se fala em teoria marxista-leninista do Estado, deve ter-se sempre presente o significado da palavra «ditadura», empregada tanto em relação aos estados capitalistas, – à «ditadura da burguesia», como em relação aos estados socialistas – à «ditadura do proletariado». A clara explicação desse significado é essencial para a compreensão da teoria da revolução e para a determinação da posição das várias classes e forças políticas em relação ao problema da democracia. Os ideólogos burgueses, incluindo liberais e socialistas, baralham os dados do problema e procuram mostrar que os comunistas, defendendo a ditadura do proletariado, se opõem à democracia, e que os burgueses liberais e os socialistas é em nome da democracia que se opõem à ditadura do proletariado. A ditadura do proletariado, como «ditadura», seria um regime de opressão, enquanto a democracia burguesa, como «democracia», seria um regime de liberdade. 

A verdade é que a palavra «ditadura», na teoria marxista-leninista do Estado, não significa uma forma particular de dominação de uma ou várias classes por outra ou outras classes, mas o próprio facto dessa dominação. Segundo a teoria leninista, o Estado numa sociedade dividida em classes antagônicas é sempre uma ditadura. A expressão «ditadura» sublinha que o Estado não está acima das classes, não é um instrumento de conciliação das classes nem um árbitro entre elas,  antes é a «organização da violência», é um «poder especial de repressão», é um organismo de dominação de umas classes sobre outras. Em resumo: numa sociedade dividida em classes antagônicas, Estado é sinônimo de Ditadura.

As formas de dominação, tanto da ditadura da burguesia como na ditadura do proletariado, é que podem ser diversas. A ditadura da burguesia pode exercer-se através de variadas estruturas dos órgãos do poder e da administração, ou seja, sob regimes políticos diferentes: república parlamentar, monarquia constitucional, governo militar, ditadura fascista, etc. Em qualquer caso é sempre a «ditadura da burguesia». A ditadura do proletariado pode também exercer-se com a existência de um ou de mais partidos, com um sistema soviético ou uma assembleia parlamentar, ou outras formas de organização do poder. As experiências históricas das democracias populares já mostraram que o sistema soviético não é o único possível para o exercício da ditadura do proletariado, não é a forma única e obrigatória dum estado socialista. 

O facto de quaisquer que sejam as formas de dominação da burguesia se tratar sempre de uma ditadura da burguesia não torna a classe operária indiferente a essas formas de dominação. 

Nada tem a ver com o marxismo-leninismo a opinião anarquizante segundo a qual é indiferente à classe operária que o poder da burguesia se exerça num regime parlamentar ou numa ditadura fascista, uma vez que num caso e noutro se trata de capitalismo. A repressão e o terror são utilizados precisamente para impedir o desenvolvimento da sua organização e da sua luta, para aniquilar os seus quadros, para cortar o caminho à revolução socialista. Enquanto subsistir o capitalismo, o proletariado está interessado em lutar para que a ditadura da burguesia se exerça através de formas o mais democráticas possível, pois estas não só são as que menos sofrimentos lhe acarretam, como são aquelas que melhor lhe permitem defender os seus direitos, forjar a sua unidade, reforçar as suas organizações, limitar e enfraquecer o poder dos monopólios, ganhar as massas para a causa da revolução socialista. Nesse sentido se afirma que a luta pela democracia é parte constitutiva da luta pelo socialismo. 

Nada tem também a ver com o marxismo-leninismo a posição de alguns «ultrarevolucionários» ao afirmarem que, nas condições do Portugal de hoje, a instauração das liberdades democráticas, se não fosse acompanhada pela conquista do poder pelo proletariado, seria ainda pior que a ditadura fascista, uma vez que representaria a consolidação do poder da burguesia, cuja crise se agrava nas condições do fascismo. O Partido Comunista Português não considera a revolução antifascista como uma revolução democrático-burguesa, mas como uma revolução democrática e nacional, de natureza profundamente popular. Mas insiste em que o fim do fascismo e a instauração das liberdades fundamentais constituem um passo primeiro, fundamental e indispensável da revolução antifascista. Assim, não só formula uma reivindicação central, compreendida e sentida pelas mais vastas massas populares, como indica o caminho que pode conduzir à realização dos outros objectivos da revolução democrática e nacional e ao socialismo. Não é posição nova a do nosso Partido. Lénine numerosas vezes sublinhou que os comunistas russos «nunca separaram as tarefas da luta pelo socialismo das tarefas da luta pela liberdade política»13

Ao mesmo tempo que indicamos a conquista da liberdade política como um primeiro objectivo central da revolução antifascista, afirmamos como marxistas-leninistas, como partido do proletariado, como revolucionários que pretendem pôr fim à exploração do homem pelo homem, que a mais democrática das democracias burguesas serve a burguesia contra proletariado, protege e defende a exploração dos trabalhadores, usa o poder do Estado contra os trabalhadores, e, se a luta destes põe em perigo os interesses do capital, a burguesia dominante, por muito «liberal» e «democrática» que seja, não hesita em violar a lei, retirar as liberdades e recorrer a métodos abertamente terroristas. 

Como marxistas-leninistas, esclarecemos a classe operária e as massas da verdadeira natureza do Estado e da democracia. Quaisquer que sejam as formas do Estado burguês e do Estado proletário, o Estado proletário, tanto pela sua natureza como pela política que realiza, é sempre mais democrático que o Estado burguês. O Estado da burguesia é o instrumento de dominação por uma ínfima minoria de exploradores da maioria esmagadora da população; o Estado proletário é o instrumento da grande maioria contra uma ínfima minoria. O Estado burguês é um instrumento de exploração e de subjugação das classes trabalhadoras e visa perpetuar a divisão da sociedade em classes antagônicas, o Estado proletário é o instrumento da liquidação da exploração do homem pelo homem e do termo da divisão da sociedade em classes. Uma democracia burguesa, por muito amplas que sejam as «liberdades democráticas» e a autoridade do parlamento, é sempre uma ditadura da burguesia; qualquer ditadura do proletariado, mesmo quando assume formas «ditatoriais», é sempre mil vezes mais democrática do que qualquer democracia burguesa. 

A Revolução de Outubro trouxe a primeira grande comprovação histórica desta verdade. Desde o início e no seu desenvolvimento, o primeiro Estado de operários e camponeses mostrou ser o Estado de mais profundo conteúdo democrático jamais existente na história da humanidade.  



Notas:

Todas as citações de V.I. Lénine de Marx e Engels, que o presente artigo remete para as edições francesa das Obras Completas e inglesa das Obras Escolhidas, respectivamente, foram substituídas pelas traduções existentes das Edições Avante! (Obras Escolhidas, em três e em seis tomos), ou, quando inexistentes, cotejadas com as obras completas em russo, 5.ª edição. Neste último caso, foram mantidas também as referências originais. (N. Ed.) 

1 «Sobre a dualidade de poderes», V.I. Lénine, Obras Escolhidas em três tomos, Ed. Avante!, Lisboa, 1981, (daqui em diante VILOE3), t. II, p. 17. (N. Ed.) 

2 «Resposta», artigo publicado no Rabotchi i Soldat, n.os 3 e 4, de 26 e 27 de Julho de 1917, V.I. Lénine, Obras Completas (em russo), Izdátelstvo Politítcheskoi Literaturi, Moscovo, 1969, t. 34, pp. 25 e 29; V. Lénine, Oeuvres, ed. Sociales, Paris, 1962, t. 25, pp. 231 e 236. (N. Ed.) 

3 «Sobre as tarefas do proletariado na presente revolução» (4 e 5 de Abril de 1917), V.I. Lénine, VILOE3, t. II, p. 14. (N. Ed.) 

4 Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels, Obras Escolhidas em três tomos, Ed. Avante!, Lisboa, 1982, t. I, p. 124. (N. Ed.) 

5 «Marx a Joseph Weydemeyer (em Nova Iorque)», Londres 5 de Março de 1852, ed. cit., t. 1. p. 555. (N. Ed.) 

6 Manifesto do Partido Comunista, op. cit., pp. 116 e 136. (N. Ed.) 

7 O Estado e a Revolução, V.I. Lénine, VILOE3, t. II, pp. 238 e 239. (N. Ed.) 

8 Idem, Ibidem, p. 239. (N. Ed.) 

9 Karl Marx, O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, ed. cit., t. I, p. 502. (N. Ed.) 

10 Karl Marx, A Guerra Civil em França, Marx e Engels, (1871) ed. cit., t. II, p. 237. (N. Ed.) 

11 «Marx a Ludwig Kugelmann (em Hannover)», 12 de Abril de 1871, ed. cit., t. II, p. 457. (N. Ed.) 

12 O Estado e a Revolução, op. cit., pp. 227 e 234. (N. Ed.) 

13 As Tarefas dos Sociais-Democratas Russos (1897), V.I. Lénine, Obras Completas (em russo), Izdátelstvo Politítcheskoi Literaturi, Moscovo, 1967, t. 2, p. 459; V. Lénine, Oeuvres, ed. Sociales, Paris, 1958, t. 2, p. 347. (N. Ed.) 







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