O império e a colônia

O império e a colônia
por Luiz Ricardo Leitão 
 
Era de dar dó o ar compungido que Mr. Bonner exibia ao tratar da “tragédia em Nova Iorque”
  
 
Enquanto devastava o Caribe, Sandy era apenas uma “tormenta tropical”, quase ignorada pela mídia de Bruzundanga. Ele já provocara dezenas de mortes na América Central e no Caribe, mas não merecera sequer 15 segundos de atenção nos telejornais da colônia. Quando desembarcou em praias estadunidenses, porém, o furacão tornou-se uma celebridade, com muito mais destaque na tv do que os shows (?) de Lady Gaga ou a derrota de Serra em São Paulo.

Era de dar dó o ar compungido que Mr. Bonner exibia ao tratar da “tragédia em Nova Iorque”. Com a pronúncia impecável dos órfãos de Tio Sam, ele nos informava passo a passo sobre os estragos que Sêindi provocara na ilha de Manhattan, o coração do capital financeiro internacional. De fato, se fôssemos nos guiar pelo noticiário da Rede Globo e de certas emissoras de rádio, seria possível crer que vivemos nos EUA – e não nestes esfuziantes e tórridos trópicos ao sul do Rio Bravo.

Até jornalistas da grande imprensa tupiniquim se incomodaram com a papagaiada. A histeria faz crer que não seja piada o lugar-comum das redações, segundo o qual um ianque assustado vale cerca de 40 caribenhos mortos ou 50 corpos africanos... O povo de Cuba, aliás, conhece muito bem essa máxima: rota preferida dos ciclones e furacões, a terra de José Martí os enfrenta com invejável galhardia e muita organização social, a ponto de perder menos vidas que a Big Apple (11 x 21).

Não estranho o “paradoxo” entre as duas ilhas. Na terra do primo pobre, o cidadão respeita as instruções do seu governo e, disciplinado, prioriza a segurança coletiva, evitando acidentes fatais; para o primo rico, a “pátria da liberdade”, vale a lei de Murici (“cada um trata de si”). Não por acaso, em Nova Iorque uma pessoa morreu dentro de seu carro, atingido pela queda de uma árvore em pleno vendaval.

Isso tudo às vésperas da (re)eleição do bom-mulato Obama, acompanhada com fervor pela mídia local. Faz sentido: se já há revistas por aqui com títulos e chamadas em inglês (vi uma que não tinha guia de lazer, e sim living guide, além de welcome, at home e who’s who), como querer que nossos repórteres não sonhem ser um novo Paulo Francis, arrulhando profecias como correspondente nos EUA?

Só não dirão, obviamente, quão bizarra é a “festa da democracia” ianque, à qual só comparecem 40% dos seus eleitores. Aliás, o que falar da farsa, com seus debates inócuos, seu moralismo puritano de araque e tanta alienação social cristalizada? De quantos Sandys precisaríamos para varrer esse lixo?

E vai rolar a festa...
As eleições acabaram há mais tempo na Colônia – e os abutres já estão de volta à cena pública. Aqui no Rio, com a farra da Copa e das Olimpíadas, andam ainda mais assanhados. Sem perder tempo, o alcaide (re)eleito anuncia que vai demolir o velódromo do Pan para construir um novo e que pretende retalhar uma Área de Proteção Ambiental para fazer um campo de golfe olímpico (!). De quebra, ainda decretou a morte da Escola Arthur Friedenreich, instalada no Maracanã, que dará lugar a uma quadra de aquecimento (!) para os jogadores do Mundial 2014. Como diriam os cariocas, é mole ou quer mais?

Este cronista pressente que os caprichos da tchurma da bandana lhe custarão caro. A Audiência Pública de 8 de novembro provou isso: cerca de 500 pessoas, entre alunos e pais da escola municipal, jovens da Frente Nacional de Torcedores e chefes indígenas, foram até lá botar água (e outras cositas) no chope dos playboys e dizer que, de Cabral a Cabral, desde 1500 a coisa vai de mal a pior. Sem ter o que argumentar, o secretário da Casa Civil, Régis Fichtner, jurou que o governo está fazendo “o melhor para o Rio”. Em resposta, o pau comeu na casa de Noca, sinal de que outras batalhas virão. E aí eu pergunto: de quantos Sandys precisaríamos para varrer esse lixo?
 
 
Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor associado da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa – Poeta da Vila, Cronista do Brasil e de Lima Barreto – o rebelde imprescindível
 
 
 
 

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