O capital fictício, como a finança se apropria do nosso futuro

O capital fictício, como a finança se apropria do nosso futuro
por Daniel Vaz de Carvalho


"O capital fictício é tanto um acelerador do desenvolvimento capitalista como fator de crises, esta ambivalência dá aos seus zeladores no dizer de Marx "o caracter híbrido de escroques e profetas". (p. 63) Grandes bancos manipularam em seu benefício durante mais de duas décadas as taxas Libor e as taxas de câmbio das principais moedas. A procura do desempenho a qualquer custo teve como corolário a fraude, a vigarice. "Os delitos estão presentes desde sempre no mercado e raramente são objeto de procedimento judicial" (B. Madoff, ex-presidente da NASDAQ) (p. 17). "

"A reconfiguração do tecido produtivo alinha-se em função do interesse dos acionistas em termos de rendimento a curto prazo. Consiste em "reestruturar e distribuir", isto é reduzir o emprego e separar-se de atividades menos rentáveis, estabelecendo subcontratos. O reforço do poder dos acionistas e a globalização afetou negativamente o investimento estabelecendo uma norma de rentabilidade mínima aquém da qual os projetos produtivos são eliminados. (p. 170) Esta reconfiguração visa libertar mais-valias bolsistas e dividendos, mais que o aumento da eficiência económica, modificando a relação de forças entre acionistas, gestores e trabalhadores (p. 158, 159). É uma lógica predadora: trata-se de garantir que o capital fictício seja sempre convertível em dinheiro, isto é, bens e serviços (p. 188). "

A crise de 2007-2008 com as "políticas de rigor" e "reformas estruturais" fez cair a máscara à social-democracia. (…)  A soberania dos mercados sobrepõe-se à dos povos . Cédric Durand

1 – Natureza do capital fictício. 

A austeridade já tem sido considerada como o "vírus capitalista". É uma imagem. Na realidade, trata-se do remédio errado, como uma seringa infetada. O capitalismo está de facto atacado de uma doença letal: o capital fictício. Sem eliminar este "vírus" nenhum remédio será verdadeiramente eficaz. É isto que Cédric Durand nos evidencia. 

A importância deste livro reside na análise de um tema fundamental do marxismo, o capital fictício, aliado a uma linguagem simples, mas absolutamente rigorosa e factual, em que os dogmas do neoliberalismo são totalmente desmontados. Só a escandalosa censura existente impede a divulgação e discussão destas análises até nas universidades. 

A natureza do capital fictício reside em que os títulos financeiros são apenas promessas de valorização real, o que destrói o mito da autonomia do sistema financeiro como variável determinante do sistema económico. O capital fictício é uma ilusão e um desvio de recursos. (p. 56, 57) Tem consistido no aumento vertiginoso da quantidade de valor validado por antecipação à produção de mercadorias. (p. 90)

O capital fictício, é de facto um produto de contradições económicas e sociais insolúveis. (p. 7) Encarna valor, mas não resulta da produção de valor, resulta de transferências de rendimentos a partir de atividades produtivas, isto é, rendimentos do trabalho e lucros tirados da produção de bens e serviços. (p. 105) 

Marx identifica três formas de capital fictício: a moeda crédito, os títulos de dívida pública e as ações. Cédric Durand desenvolve este conceito aplicando-o à realidade atual, apresentando-o como uma apropriação da mais-valia produzida na esfera produtiva, desmontando o aparente enigma dos lucros sem acumulação, resultantes das operações financeiras e do controlo das redes produtivas internacionais. (p. 178) 

Podem ser caracterizados como lucros financeiros os juros, os dividendos e as mais-valias realizadas com a venda de ativos. Como fontes dos juros distinguem-se os resultantes do endividamento das famílias para terem acesso ao consumo (lucros de alienação); os resultantes do endividamento das empresas, que se tornam críticos nos períodos de crise; os lucros políticos de dívida pública. (p. 106-112) 

São também fontes de lucros financeiros a atividade como intermediários; o chamado lucro dos fundadores (diferença entre o preço dos ativos e valorização no mercado bolsista); os lucros políticos obtidos com recapitalização, nacionalização dos prejuízos, benefícios fiscais, etc. (p. 119, 123) 

Nos EUA a parte dos 1% mais ricos na detenção de dívida pública passou de 16 para 40% entre 1970 e 2010. Em 1970 a dívida dos 11 países mais ricos representava 30% do PIB, em 2012, nos EUA 114%, no Reino Unido 137%. O valor financeiro obtido por antecipação do processo de valorização futura não cessou de aumentar (p. 75) 

Um estudo sobre subvenções públicas implícitas nos lucros das grandes instituições financeiras concluía que existia uma subvenção implícita de 233 mil milhões de euros em 2012, 1,8% do PIB da UE e montantes da mesma ordem desde 2007. Sem isto os bancos registariam prejuízos consideráveis. Os seus lucros são portanto subvencionados. A privatização dos benefícios das atividades financeiras é, pois, perfeitamente ilegítima. (p. 122) 

2 – A financeirização e os "mercados eficientes" 

A liberalização financeira conduziu à alta dos lucros financeiros, donde a uma taxa mínima de rentabilidade nos investimentos, ao aumento dos dividendos entregues aos acionistas, à diminuição dos lucros retidos pelas empresas e consequentemente ao abrandamento da acumulação, à sobreprodução e ao desemprego. (p. 154) A financeirização não conduziu (como propagandeado) ao aumento do investimento, ao "crescimento e emprego", mas ao seu declínio (p. 50). Os países da OCDE de rendimento elevado detinham em 1990, 80% do PIB mundial, em 2012 reduzira-se para 61% (p. 8, 9). 

Numa estrutura Ponzi (especulativa) o fluxo de rendimento acaba por não permitir reembolsar nem os juros nem o principal da dívida. Por conseguinte, o endividamento não pode senão aumentar e conduzir a falências (p. 40). Algo de semelhante se passa com os Estados. Heyman Minsk passou a maior parte da carreira a defender a tese de que os sistemas financeiros estão por natureza sujeitos a acessos especulativos. Foi considerado um "radical" (p. 37). 

O otimismo na financeirização, ao qual não foram poupados os reguladores, levou ao abrandamento das normas prudenciais e à desregulamentação, potenciando os riscos. O paradoxo da intervenção pública como tem sido realizada consiste em que os operadores financeiros são tanto mais inclinados a assumir riscos quando sabem que o banco central tudo fará para impedir o risco sistémico de se concretizar (p. 42, 43). 

Os defensores da linha de Hayek de que o mercado é um processo de revelação de conhecimento disperso aplicável aos mercados financeiros, negligenciam a dinâmica da criação e preservação do capital fictício e os efeitos de distorção de informação que daí decorrem (p. 138). O que conduz a má apreciação dos riscos e más decisões de investimento. Desde 1980 a desregulação financeira, criou períodos de expansão financeira que terminaram sempre em crise (p. 45). 

O capital fictício é tanto um acelerador do desenvolvimento capitalista como fator de crises, esta ambivalência dá aos seus zeladores no dizer de Marx "o caracter híbrido de escroques e profetas". (p. 63) Grandes bancos manipularam em seu benefício durante mais de duas décadas as taxas Libor e as taxas de câmbio das principais moedas. A procura do desempenho a qualquer custo teve como corolário a fraude, a vigarice. "Os delitos estão presentes desde sempre no mercado e raramente são objeto de procedimento judicial" (B. Madoff, ex-presidente da NASDAQ) (p. 17). 

A Golman Sachs que reconheceu ter cometido práticas fraudulentas, teve em 2010 uma multa de 550 milhões de dólares, cerca de 14 dias dos lucros desse ano (p. 19). Os sistemas de crédito paralelo contornam as normas sobre reservas obrigatórias, representam canais de difusão das crises a que as avaliações das agências de rating acrescentam riscos (p. 82). 

A legitimação do liberalismo financeiro foi apoiada por economistas e universitários. Larry Summers [1] havia recebido 20 milhões de dólares em anos em que defendeu incansavelmente o liberalismo financeiro. Verificou-se que 19 eminentes universitários diretamente implicados nas reformas financeiras estavam também ligados ao sector privado sem nunca o terem declarado (p. 33). 

Como aprendizes de feiticeiro os agentes financeiros foram apanhados na sua própria armadilha e não anteciparam o desastre. Porém (para eles) tudo continua como se nada se tivesse passado, continuando a serem considerados racionais e omniscientes, A cegueira ao desastre e ao conformismo dominam o sistema financeiro (p. 24). 

3 – A vingança dos rentistas 

O aumento dos lucros financeiros poderia sugerir que a vingança dos rentistas era a explicação para o paradoxo dos lucros sem acumulação. Porém as (grandes) empresas também obtiveram rendimentos crescentes das suas atividades financeiras (p. 158). No entanto, em prejuízo da sua atividade produtiva, em detrimento do "crescimento e emprego", a fórmula com que a direita e a social-democracia procuram iludir as camadas proletárias. 

A reconfiguração do tecido produtivo alinha-se em função do interesse dos acionistas em termos de rendimento a curto prazo. Consiste em "reestruturar e distribuir", isto é reduzir o emprego e separar-se de atividades menos rentáveis, estabelecendo subcontratos. O reforço do poder dos acionistas e a globalização afetou negativamente o investimento estabelecendo uma norma de rentabilidade mínima aquém da qual os projetos produtivos são eliminados. (p. 170) Esta reconfiguração visa libertar mais-valias bolsistas e dividendos, mais que o aumento da eficiência económica, modificando a relação de forças entre acionistas, gestores e trabalhadores (p. 158, 159). É uma lógica predadora: trata-se de garantir que o capital fictício seja sempre convertível em dinheiro, isto é, bens e serviços (p. 188). 

Nas vésperas da crise atual, 147 sociedades controlavam 40% do valor do conjunto das TN, sendo elas próprias dominadas por 18 entidades financeiras (p. 114). Estabelece-se uma hierarquia de capitais, na qual os centros capitalistas diretamente ligados aos mercados financeiros dispõem de um poder de mercado que lhe permite transmitir os choques conjunturais às empresas da periferia com o objetivo de atingir e ultrapassar os rendimentos garantidos aos acionistas. A pressão traduz-se na degradação das condições salariais (p. 163). 

O parasitismo dos países mais avançados estabelece como que um tributo aos países mais fracos, sob a forma de produtos, recursos naturais e lucros, verificando-se naqueles países uma parte crescente de lucros recebidos do estrangeiro (p. 181). Porém, simultaneamente cresce o peso de atividades cuja dinâmica tende a reduzir-se, crescendo aquelas em que a produtividade estagna (p. 173). 

4 – Uma transferência de riqueza organizada a nível global 

Os grandes bancos de investimento e os fundos especulativos organizam a transferência de riqueza a nível global. Com a estabilidade financeira visa-se fazer prevalecer as exigências do capital financeiro sobre as aspirações das populações (p. 124). 

Nos EUA os 1% mais rico apoderaram-se de 95% dos ganhos entre 2009 e 2013, aumentando os seus rendimentos em 31,4%. O total dos montantes despendidos pelos Estados para apoiar o sector financeiro (recapitalizações, compra de ativos, nacionalizações", garantias, injeções de liquidez) em 2008 e 2009 foi avaliado pelo FMI em 50,4% do PIB mundial! (p. 51) 

Outro aspeto é a liberalização do comércio e dos fluxos de capitais, estabelecendo um exército de reserva do trabalho a nível global. A troca desigual proporciona a capacidade das TN dos países dominantes para remunerar os seus agentes financeiros através dos ganhos provenientes das relações mercantis assimétricas com os seus fornecedores dos países dominados (p. 128). 

Com o enfraquecimento do movimento operário o imperialismo e a oligarquia financeira reforçaram o seu poder (p. 184). Em 2006 havia 66 milhões de trabalhadores, em países ou zonas em que impostos e regulamentações são quase inexistentes, em particular as do trabalho, com fiscalização submetida aos interesses e exigências do patronato e salários de 1 € por dia (p. 177). 

Para Hayek as crises não são produzidas por excesso de produção mas por excesso de consumo (p. 60). Justificando assim os planos de austeridade que não são mais que créditos sobre os montantes futuros dos impostos dos quais a finança se apropria (p. 66). 

Ganha, pois, uma atualidade nova a famosa afirmação de Marx segundo a qual "numa certa fase do seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais entram em conflito com as relações de produção existentes, ou, o que não é senão a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais tinham existido até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas estas relações tornam-se no seu entrave" (p. 133). 

Perante as crises o sistema tem necessidade de relançamento para um rápido aumento dos lucros, recorrendo a choques exógenos, como guerras, contrarrevoluções, derrota dos assalariados, descoberta de novas fontes de matérias-primas (Ernest Mendel) (p. 139). 

Esta política não conhece limites e só pode ser posta em causa pela combatividade das camadas populares (p. 190). Eis o que resume as mensagens que propomos reter do livro de Cédric Durand.[1] Antigo presidente da Universidade de Harvard, conselheiro de Obama e secretário do Tesouro de Clinton. 



Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .




Capital fictício

– Verbete da Grande Enciclopédia Soviética
por L. N. Krasavina




Capital Fictício — Capital investido em títulos de crédito (acções, obrigações), o qual dá aos possuidores o direito de se apropriarem regularmente de uma parte dos lucros na forma de dividendos ou de juros. Sendo o papel contrapartida do capital real, o capital fictício tem um movimento especial externo ao capital existente. Como uma mercadoria específica, ele é comprado e vendido num mercado especial — a bolsa de valores — e adquire um preço. Mas uma vez que os títulos de crédito não possuem valor [intrínseco], as flutuações no seu preço de mercado não coincidem (e isso acontece com frequência) com mudanças no capital real. 

O preço do capital fictício é o rendimento capitalizado a ser derivado dos títulos de crédito. Ele é directamente proporcional ao nível de rendimento dos títulos de crédito e inversamente proporcional à taxa de juro bancária num dado país. Exemplo: se o rendimento anual de um título de crédito for de US$20 e a taxa de juro bancária for de 5 por cento, então o preço deste título de crédito será (20 x 100)/5 = US$400. A diferença entre os montantes de capital fictício e o capital existente constitui o lucro promocional. Um método utilizado na obtenção deste lucro é a emissão de acções num montante que excede significativamente o capital realmente investido na empresa. 

Na era do imperialismo, a emissão de títulos de crédito cresce numa escala enorme; ao mesmo tempo, o crescimento do capital fictício ultrapassa o aumento do capital existente. Este crescimento rápido é provocado pelo uso generalizado de acções para financiar empresas, pelo crescimento da dívida nacional surgida de aumentos em despesas improdutivas pelos estados burgueses com a militarização e a guerra, e pela intensificação da inflação. No decorrer do ciclo de negócios, o capital fictício expande-se durante períodos de ascensão e contrai-se durante períodos de crise. 

O capital fictício distingue-se também do capital de empréstimo. Os títulos de crédito constituem uma área de investimento para o capital de empréstimo. O capital fictício quantitativamente excede o capital de empréstimo e os movimentos dos dois tipos de capital não coincidem. 

O desenvolvimento ulterior do fetichismo e do parasitismo das relações de produção capitalistas reflecte-se na categoria capital fictício. A fonte de rendimento com capital fictício é totalmente ocultada. Para os seus possuidores, os títulos de crédito parecem gerar rendimento por si mesmos. O parasitismo do capital fictício torna-se especialmente aparente no caso de empréstimos governamentais quando o governo gasta improdutivamente os fundos que levantou. Esta forma especial de capital fictício não só é destituída de valor como também, em muitos casos, não representa capital real. O juro de títulos governamentais é pago na sua maior parte através de receitas fiscais. 

Na época da crise geral do capitalismo, têm-se verificado mudanças na estrutura do capital fictício. Com a expansão do sector estatal na economia e o aumento na dívida nacional, o mercado de títulos de crédito tornou-se cada vez mais saturado com títulos de crédito do governo. A coalescência de monopólios e governo pode ser vista em transacções conjuntas envolvendo capital fictício. Com frequência crescente, o governo entra no mercados de títulos de crédito como devedor, credor e fiador, além disso, em contraste com empresas privadas, o governo ocupa um posição privilegiada uma vez que pode emitir títulos de crédito à vontade e pode oferecer vantagens fiscais aos investidores e garantias contra uma queda no valor de investimentos. Esta conexão entre o capital fictício e o crédito e as garantias do governo agrava a inflação. O controle monopolista do Estado sobre transacções com capital fictício permite a este capital ser utilizado para atender necessidades do tesouro de títulos de crédito adicionais, aumentando portanto o montante do capital sob o controle de oligarquias financeiras.


Referências 

Marx, K. Kapital , vol. 3, chs. 29 and 30. In K. Marx and F. Engels, Soch ., 2 nd ed., vol. 25, part 2. 

Lenin, V. I. Imperializm, kak vysshaia stadiia kapitalizma . In Poln. sobr. soch ., 5th ed., vol. 27. 

Trakhtenberg, I. A. Kreditno-denezhnaia sistema kapitalizma posle vtoroi mirovoi voiny . Moscow, 1954. 

Anikin, A. V. Kreditnaia sistema sovremennogo kapitalizma . Moscow, 1964. 

Shenaev, V. N. V. N. Banki i kredit v sisteme finansovogo kapitala FRG. Moscow, 1967. 

Krasavina, L. N. Novye iavleniia v denezhno-kreditnoi sisteme kapitalizma: Na materialakh Frantsii . Moscow, 1971. 

Traduções adoptadas: 

Securities: Títulos de crédito; Bonds: Obrigações; Income: Rendimento; Revenues: Receitas; Rent: Renda; Earnings: Ganhos 


O original é um verbete da Great Soviet Encyclopedia, 3 rd Edition (1970-1979), The Gale Group, Inc., transcrito em http://encyclopedia2.thefreedictionary.com/Fictitious+capital . Este texto é anterior à explosão dos derivativos, o paroxismo absoluto do capital fictício. Tradução de JF.




Este verbete encontra-se em http://resistir.info/ .




Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O complexo militar industrial e a energia nuclear

Tortura nas prisões colombianas: sistematismo e impunidade revelam uma lógica de Estado

Campo de Concentração do Tarrafal - o Campo da Morte Lenta