A Europa numa encruzilhada

A Europa numa encruzilhada
por ÂNGELO ALVES

"Utilizando a conhecida imagem de Jacques Delors 1 podemos dizer que, no mínimo, a bicicleta está a abrandar e a possibilidade de parar e cair não é inverosímil. Mas esse nunca será um processo nem linear nem pacífico. Se a crise do processo de integração é evidente, também é verdade que estão em curso vastas manobras para salvaguardar o essencial do instrumento de domínio que é a União Europeia. Como sempre aconteceu no processo de integração capitalista europeu as suas crises foram todas «resolvidas» com o binômio alargamento-aprofundamento. Esgotado que parece o campo para o alargamento territorial, as classes dominantes direcionam esforços para o eixo do aprofundamento. Mas esse caminho confronta-se hoje com três obstáculos: as rivalidades crescentes entre potências na União Europeia; a oposição crescente dos povos a esse rumo de aprofundamento; e a profunda crise econômica e social que não facilita manobras de propaganda política e ideológica que noutros momentos sustentaram os saltos do processo."

A Europa vive tempos de grande instabilidade, de regressão civilizacional e de retrocesso democrático. 71 anos após o final da Segunda Guerra Mundial escrevem-se novas páginas negras da História do continente europeu e este encontra-se numa encruzilhada de cuja saída dependerão o presente e o futuro de centenas de milhões de pessoas e de dezenas de Estados. A realidade está a demonstrar que a discussão sobre o presente e o futuro de Portugal passa obrigatoriamente pela libertação do nosso País das amarras de um processo de integração capitalista – a União Europeia – contrário aos interesses do País e do nosso povo, mergulhado em múltiplas crises e nas suas próprias contradições, um processo visivelmente esgotado. É um momento carregado de perigos, mas que, simultaneamente, abre novas perspectivas na luta contra o processo de domínio imperialista que é a União Europeia.

A «bicicleta» está a abrandar

Na Resolução Política do XIX Congresso afirmámos que o aprofundamento da crise do capitalismo no espaço da União Europeia vinha «expor ainda com mais clareza a natureza e as insanáveis contradições do processo de integração capitalista europeu» e que por isso se expressava também como «uma crise dos fundamentos e dos pilares económicos, políticos e ideológicos da União Europeia».

Nessa análise aos desenvolvimentos do que chamámos então de «Crise na e da União Europeia» afirmávamos que «a profunda crise social e económica na União Europeia, a afirmação das várias instituições europeias como instrumentos políticos do domínio dos grandes monopólios e do capital financeiro, o salto ultraliberal e federalista em curso nas instituições da UE e o aprofundamento das contradições políticas e institucionais no seu seio, reflectem o processo de concentração do poder político e económico, rolo compressor de direitos sociais, laborais e democráticos e da soberania dos povos. Mas são também elementos que, como o aprofundamento da crise em resultado deste processo evidencia, revelam com assinalável nitidez os limites objectivos da União Europeia, demonstrando que esta não é reformável e está condenada ao fracasso.»

Os recentes desenvolvimentos confirmam a validade e a actualidade destas teses. Estão longe, muito longe, os discursos triunfalistas da «dinâmica imparável» do processo de integração capitalista na Europa. É sintomático que hoje se considerem como possíveis os cenários de desintegração da Zona Euro ou mesmo da União Europeia, ou, numa abordagem menos arrojada, a possibilidade de uma reconfiguração das «velocidades», geografia e «níveis» da integração.

Utilizando a conhecida imagem de Jacques Delors 1 podemos dizer que, no mínimo, a bicicleta está a abrandar e a possibilidade de parar e cair não é inverosímil. Mas esse nunca será um processo nem linear nem pacífico. Se a crise do processo de integração é evidente, também é verdade que estão em curso vastas manobras para salvaguardar o essencial do instrumento de domínio que é a União Europeia. Como sempre aconteceu no processo de integração capitalista europeu as suas crises foram todas «resolvidas» com o binômio alargamento-aprofundamento. Esgotado que parece o campo para o alargamento territorial, as classes dominantes direcionam esforços para o eixo do aprofundamento. Mas esse caminho confronta-se hoje com três obstáculos: as rivalidades crescentes entre potências na União Europeia; a oposição crescente dos povos a esse rumo de aprofundamento; e a profunda crise econômica e social que não facilita manobras de propaganda política e ideológica que noutros momentos sustentaram os saltos do processo.

Uma profunda crise econômica e social

É, assim, correcto afirmar que a persistente crise na e da União Europeia contém elementos novos na história do processo de integração capitalista.

A realidade de Estados mergulhados em processos de autêntica destruição económica; a profundíssima crise social com mais de um centena de milhões de pobres e dezenas de milhões de desempregados; a estagnação económica e a deflação persistentes; os níveis insuportáveis das dívidas soberanas; a instabilidade permanente do sistema financeiro; a desindustrialização em vários países da chamada «periferia», são elementos de uma profunda e prolongada crise no plano económico e social.

A gestão das instituições europeias, nomeadamente do BCE, com a redução histórica das taxas de juro e a injecção massiva de capital no sistema financeiro, não só se revelou completamente ineficiente como contribuiu para mascarar problemas de fundo e inflacionar a bolha financeira e especulativa que pode estar prestes a rebentar de novo. A situação de grandes bancos como o Deutsche Bank, o Crédit Suisse, o Monte dei Paschi di Siena (MPS) ou o Societé General assim o indica. Trata-se de uma situação explosiva tão mais grave quanto os sucessivos pacotes de «austeridade» ditaram uma enorme fragilização (quando não destruição) de sectores produtivos em variados países e quanto as exportações para fora do espaço europeu tendem a diminuir dada a contração da procura nas chamadas «economias emergentes». Como os recentes dados econômicos relativos ao segundo trimestre de 2016 comprovam, as grandes economias da União Europeia padecem de sérios problemas, como o demonstra a estagnação econômica na França e na Itália e as quebras da produção industrial e das exportações na Alemanha.

Contrariamente ao que se poderia pensar, este resultado não nasce de um mero «erro de cálculo» ou de «incompetência». Trata-se de uma opção e de uma estratégia de gestão capitalista da crise, que teve e tem como eixos principais: a concentração e centralização de capital e de poder político no grande capital e nas principais potências (com destaque para a Alemanha); o aumento exponencial da exploração do trabalho; o saque de recursos e património públicos; a submissão dos países da «periferia» aos interesses do grande capital e das principais potências capitalistas da Europa e à política económica e monetária submetida a esses interesses.

A palavra austeridade foi e é um eufemismo para uma maior concentração capitalista, para mais exploração e maior imposição de relações de domínio económico de recorte colonial. Os chamados «programas de assistência financeira» foram e são uma peça fundamental dessa estratégia, visaram acelerar esse processo, e amarrar, por via do mecanismo do endividamento, vários Estados a uma posição de dependência e submissão de longo prazo à estratégia da União Europeia. Tratou-se e trata-se (como o caso grego demonstra) de verdadeiros «balões de ensaio», ante-câmaras de um renovado e mais draconiano quadro político-institucional de domínio dentro do espaço da União Europeia, que está em parte já desenhado nas regras da Governação Económica, do Semestre Europeu, do Tratado Orçamental e do próprio Pacto de Estabilidade agora reforçado. A lógica desses instrumentos é colocar os Estados entre duas chantagens simultâneas que servem os mesmos interesses de classe: a chantagem dos «mercados» e a chantagem da União Europeia. O dito projecto da «completação da União Económica e Monetária» sintetizado em parte no Relatório dos cinco presidentes e a União Bancária são, entre outros, elementos centrais desse caminho.

As várias crises

Mas esse caminho é cada vez mais intolerável e insustentável. Como previmos, a dimensão e a persistência da crise económica e social, a par das contradições inerentes a um processo de integração capitalista, despoletaram um conjunto de outras crises que se intensificam e alimentam mutuamente.

A vitória da saída da Grã-Bretanha no referendo britânico – o chamado Brexit – é uma das mais recentes expressões dessa tendência. Contrariamente ao que o discurso oficial tentou fazer passar, o resultado do referendo britânico não pode ser atribuído a uma deriva racista e xenófoba do povo britânico. Tal deriva existe, sim, mas nas políticas da União Europeia e como resultado destas em vários países da Europa e não é exclusiva da Grã-Bretanha – olhe-se, por exemplo, para a França, para o Leste europeu e para alguns países nórdicos e para a política da União Europeia face às migrações e aos refugiados.

O que importa reter dos resultados do referendo britânico são dois elementos principais. O primeiro, é a evidente e crescente rivalidade entre potências e entre sectores do grande capital, nomeadamente entre a Grã-Bretanha e o eixo franco-alemão. O segundo, é que o processo de integração capitalista é crescentemente olhado pelos povos não como um processo de cooperação e solidariedade, mas sim como um processo corroído de contradições, determinado por interesses contrários aos interesses dos povos e dos seus países e atentatório da soberania nacional. A União Europeia surge crescentemente na análise de muitos não como uma «solução» mas como um problema e um elemento agressor.

Tal facto, a par da intensificação das contradições dentro do edifício de poder da União Europeia, ditado pela crescente arrogância do directório de potências é uma das principais razões da falta de legitimidade da União Europeia e das suas instituições. Se a extrema-direita cresce neste quadro isso deve-se à natureza da UE, às imposições supranacionais, aos ataques à soberania nacional, às consequências sociais das suas políticas e ao papel da social-democracia e da chamada «esquerda europeísta», que ou aprovaram todos os tratados, políticas e mecanismos de imposição, ou alimentaram e continuam a alimentar ilusões sobre a «democratização» da UE.

Não são desenvolvimentos que nos surpreendam. A chamada «crise do Euro» e as medidas que em seu nome foram tomadas deitaram por terra toda a propaganda de que o Euro e a própria União Europeia seriam uma espécie de escudo protector, um espaço de solidariedade e coesão. Pelo contrário, afirma-se como um espaço de divergência e assimetrias e como um mecanismo de imposição de políticas que acentuam as desigualdades e injustiças sociais e impedem o desenvolvimento económico soberano de vários países.

Os processos de concentração de poder no directório de potências, intimamente articulado com o grande capital e as suas estruturas, acentuaram a arrogância e a postura «colonial» das instituições da União Europeia e dos países que as comandam, desrespeitando abertamente a democracia e a soberania dos povos. A forma como os dirigentes e instituições da União Europeia lidaram e lidam com países como Portugal ou a Grécia, tentando humilhar povos inteiros, fizeram estalar todo o verniz com que se pintou o processo durante décadas. Simultaneamente, os recentes escândalos financeiros, envolvendo altos responsáveis de instituições da UE, tornam ainda mais visível o grau de promiscuidade entre o poder político e o poder económico, revelando a quem servem e para que servem as políticas e instituições da UE.

Por outro lado, o processo de concentração e centralização de capital e de poder na UE é acompanhado por uma deriva securitária e autoritária no plano «interno», e militarista e intervencionista no plano «externo». A visão imperialista, militarista, intervencionista e xenófoba que caracteriza a dita «política externa» da União Europeia tornou-se muito mais perceptível. A forma desumana como a União Europeia lida com o fluxo de refugiados fugidos das guerras em que a UE está envolvida; os muros e cercas erigidos no continente europeu; o ilegal e criminoso acordo da União Europeia com a Turquia; o vergonhoso papel da União Europeia na Ucrânia, apoiando e financiando um regime abertamente fascista e alimentando um irresponsável e perigoso quadro de confrontação com a federação russa; a recente cimeira da NATO na Polónia e as decisões aí tomadas; o envolvimento de potências europeias no financiamento e apoio a organizações terroristas na guerra contra a Síria; os atentados terroristas em solo europeu com as cortinas de fumo que os rodeiam; as políticas militaristas e de cerceamento de liberdades que em nome do combate ao terrorismo são implementadas; as recentes revelações relativamente às Guerras do Iraque e da Jugoslávia, confirmando os crimes que ali foram cometidos; a natureza política dos Tratados de livre comércio que a União Europeia está a impor aos povos e Estados da Europa (com destaque para o TTIP e o CETA), são elementos que, no seu conjunto, destroem a imagem construída durante anos de uma União Europeia de paz, respeitadora dos direitos humanos, da legalidade internacional, do progresso social e da preservação ambiental, ao mesmo tempo que deitam por terra o discurso das «liberdades», nomeadamente a tão propalada «liberdade de circulação».

São estas as três principais vertentes que coexistem no tempo, confluem com a crise económica e atribuem ao presente momento de crise do processo de integração os tais elementos novos na sua História. Elementos tão mais importantes quanto a situação internacional é marcada por um extremamente complexo processo de rearrumação de forças e por uma cada vez mais violenta ofensiva imperialista.

Expressões políticas o mesmo rumo

As expressões políticas da crise da União Europeia afectam directamente as duas principais famílias políticas que a criaram e sustentam: Direita e Social-democracia. Os recentes processos eleitorais realizados em vários países da Europa apontam para a perda de influência política e eleitoral das forças que defendem abertamente o projecto da União Europeia. Tal facto faz com que se desenvolvam outros processos. Na Direita o caminho é cada vez mais marcado por uma ainda maior deriva reaccionária, apostada não só na concentração de poder mas na despudorada afirmação imperialista e militarista da UE – um caminho que, como noutros momentos da História, abre o campo à acção, espaço e agenda da extrema-direita. A Social-democracia sofre as consequências de na prática não se distinguir da direita, sobretudo no que toca ao rumo da União Europeia e de se ter confirmado ao longo de décadas como um dos pilares político-ideológicos do imperialismo.

Aliás, aquilo a que podemos chamar o «consenso de Bruxelas» está na origem de uma latente crise dos sistemas de representação política na Europa. Consciente da sua crescente crise «identitária», a social-democracia tenta, não alterando o fundo das suas opções, um conjunto de manobras de diversão e aparentes distanciamentos, tentando alijar as suas responsabilidades e acenando com a imagem da «refundação», ou de uma «democratização» da União Europeia. Simultaneamente, operam-se complexos processos de reorganização da Social-democracia, como é evidente em países como a Espanha ou a Grécia e que poderão ter expressões noutros países, inclusive em Portugal.

Mas, como sempre, é necessário olhar para a essência dos processos. E essa análise diz-nos que, passados os primeiros impactos do Brexit, a palavra de ordem é «business as usual», ou seja, manter o rumo, e o «consenso de Bruxelas». Direita e Social-democracia estão de acordo no essencial do rumo da União Europeia.

Nenhum dos pilares e instrumentos fundamentais do projecto de poder imperialista que a União Europeia materializa foi ou está a ser posto em causa na discussão política e institucional dominada por estas duas correntes ideológicas, isso ficou bem patente na Resolução aprovada no Parlamento Europeu após o Brexit. A Grécia saiu das parangonas dos jornais europeus, mas um rápido olhar para a situação naquele país demonstra que nada mudou na chantagem e imposição contra aquele povo. A única mudança visível é que o governo do Syriza não só abandonou a fraseologia com que aparentemente «atacou» a União Europeia, como é um executor exemplar da política de expoliação, empobrecimento e exploração daquele país e povo, isto para não falar da sua cada vez mais vergonhosa política externa.

Portugal. Para lá das sanções...

A situação em Portugal é também demonstrativa desta tese. Após um compasso de espera ditado pela campanha do referendo britânico, as instituições da União Europeia voltaram à carga nas manobras de ingerência, chantagem e imposição. Terminada a vigência do Pacto de Agressão entraram em cena os instrumentos da União Económica e Monetária, nomeadamente: o «procedimento por défice excessivo», com as já célebres «sanções»; o semestre europeu com as «recomendações» que visam condicionar a elaboração do Orçamento de Estado; as regras da União Bancária que tentam condicionar o futuro da Caixa Geral de Depósitos e, mais recentemente, o procedimento por desequilíbrios macro-económicos. Todos estes meios de ingerência decorrem da União Económica e Monetária (entre eles o Semestre Europeu e a Governação Económica), do Tratado de Lisboa e do Tratado Orçamental, que PSD, CDS e PS aprovaram e apoiaram. É certo que o Governo português assumiu uma posição de resistência à possibilidade de Portugal pagar uma «multa» por défice excessivo, e é também verdade que o PSD e o CDS alimentaram e utilizaram a chantagem da União Europeia para tentar pôr em causa a solução política. Mas também é verdade que em nenhum momento os mecanismos, as políticas e imposições que estão por detrás e para lá das sanções foram postos em causa pelo Governo. Pelo contrário, foi afirmado que Portugal iria cumprir as «regras» e as «metas» do défice. Esta é uma posição que mais cedo que tarde se revelará insustentável, pois se o Governo português prosseguir com o rumo de recuperação de rendimentos e direitos então o choque com essas imposições e constrangimentos será inevitável. Nesse momento ficará demonstrada a necessidade de romper com o «consenso de Bruxelas» que nas últimas décadas tem unido PS, PSD e CDS, de Portugal se libertar dessas amarras e, corajosamente, afirmar o seu direito ao desenvolvimento económico e social soberano.

Chantagens e fuga em frente

E é aqui que a situação portuguesa e a crise da União Europeia se encontram. Desde o início que quem acompanhava o processo das ditas «sanções» sabia que a probabilidade de Portugal ser «multado» era muito diminuta. O objectivo por detrás das «sanções» era outro: condicionar desde já a elaboração do OE 2017, tentar reverter as medidas positivas do Governo português entretanto alcançadas, repor «nos trilhos» da «austeridade» e das «reformas estruturais» a discussão política em Portugal e, sobretudo, tentar inaugurar e «naturalizar», através da aparente «flexibilidade» de uma «sanção zero», todo um calendário de prolongada chantagem e «monitorização» sobre as escolhas do povo português e das suas instituições. A questão da suspensão dos fundos estruturais que ainda pende sobre Portugal, as inaceitáveis ingerências e manobras do BCE em torno da Caixa Geral de Depósito, as ladainhas das «medidas adicionais», o «prazo» de Outubro decretado pela Comissão Europeia e o ECOFIN, ou as mais recentes ameaças do BCE em torno do «procedimento por desequilíbrios macro-económicos» fazem parte desse plano.

Um plano que, do ponto de vista mais geral, tem dois objectivos principais. Primeiro: impedir que os governos nacionais possam recuperar capacidade soberana de gestão económica e orçamental e possam definir políticas que ponham em causa o projecto de concentração e centralização de capital e poder político. Segundo: tentar, no meio de crises simultâneas, salvaguardar e tentar «relegitimar» o essencial dos mecanismos de imposição por via de uma aparente «flexibilidade» na sua parte penalizadora e sancionatória. É por isso que a proposta de referendo, indefinida e direccionada apenas contra as sanções avançada pelo Bloco de Esquerda, mais não era do que um tiro de pólvora seca e, em última análise, uma forma de legitimar o processo de chantagem que está em curso.

Fica claro que o objectivo destas manobras da União Europeia é político e ideológico, nada tem a ver com questões económicas. Tem antes a ver com a necessidade de «cimentar» os mecanismos já existentes para que se possam dar novos passos nos projectos de aprofundamento da integração capitalista acima referidos. Projectos em que a direita e a social-democracia estão, no essencial, de acordo.

Como referimos, a linha de aprofundamento da União Europeia parece ser o caminho que está a ser adoptado por aqueles que continuam comprometidos com esse processo. Os próximos tempos serão marcados por variadas manobras de propaganda que tentarão dar corpo à ideia de que vai haver mudanças e «democratização» na União Europeia.

O processo que está a ser desenhado, assente nos slogans de «refundação do projecto europeu» e de «legitimação democrática das instituições da UE», pode até seduzir alguns e ter inclusive o apoio (no todo ou em parte) da chamada «esquerda europeísta». Mas, no essencial, o que se irá passar é uma nova tentativa de fuga em frente que significará novos ataques à soberania nacional. Um processo que não porá em causa nem a natureza de classe da União Europeia nem a sua estrutura de poder, pelo contrário visa reforçar essa estrutura e o seu carácter supranacional.

Já estamos a assistir a tais manobras. Propaga-se já o discurso de que a resposta às crises e ao surgimento dos «nacionalismos» tem de assentar na ideia de «mais Europa», o eufemismo manipulador para «mais União Europeia». Mas a realidade está a demonstrar que foi exactamente o aprofundamento do processo de integração capitalista – a União Europeia – que fez regressar ao continente europeu a guerra, o terrorismo, a pobreza, o desemprego em massa, o racismo, a xenofobia, os nacionalismos reaccionários, a perseguição política aos comunistas e o fascismo.

Construir uma outra Europa

É de facto necessário construir respostas a uma situação cada vez mais insustentável e perigosa para todos os povos da Europa. Muitos falam do risco da «morte da Europa» e da necessidade de a «salvar». Mas, cada vez mais, «salvar a Europa» significa derrotar a União Europeia e a sua teia de tratados, mecanismos e políticas.

Essa luta será desenvolvida a partir da mobilização e participação dos povos, no plano nacional, em primeiro lugar, e também por via de uma maior cooperação e solidariedade entre povos e entre países. Mas tem de ter uma direcção! E essa direcção é a ruptura com um processo que inegavelmente se afirma em confronto com os verdadeiros interesses da Europa, ou seja os dos trabalhadores, dos povos e dos Estados soberanos do continente. É uma luta que nesta fase passa primeiramente pela decidida rejeição de chantagens e pressões e pela luta, sem hesitações, em defesa da soberania nacional, que, como temos vindo a afirmar, é indissociável da luta pela emancipação social.

Como a realidade nacional demonstra a União Europeia não tenciona «permitir» o desenvolvimento de políticas progressistas, favoráveis aos reais interesses dos trabalhadores e dos povos. Mas a única impossibilidade que se vislumbra no horizonte é a da continuação das actuais políticas, chantagens e imposições da União Europeia. O que se afirma como uma necessidade premente é o desenvolvimento de políticas que vão exactamente no sentido inverso àquelas que se impõem hoje aos povos da Europa. Nesse desenvolvimento os embates serão inevitáveis, e serão essencialmente políticos e ideológicos. As pressões e chantagens serão muitas e variadas, mas como a situação na Grã-Bretanha está a demonstrar que o mundo não desaba sobre as cabeças de um povo se este decidir de forma soberana os seus próprios caminhos de desenvolvimento e relacionamento internacional.

A participação popular e a coragem e coerência política serão determinantes para enfrentar esses embates. É certo que a necessária libertação de países como Portugal das amarras da União Europeia, e desde logo da União Económica e Monetária, não se trata de processos simples, e muito menos de actos súbitos e voluntaristas. E também é certo que não existem receitas pré-determinadas para esses caminhos. Mas na realidade que vivemos e que temos pela frente há uma outra verdade inegável: o grau de desenvolvimento do processo de integração capitalista atingiu um tão elevado grau de aprofundamento que no embate entre os direitos dos povos e dos trabalhadores e as políticas da União Europeia não há conciliação possível porque tais elementos são cada vez mais antagónicos do ponto de vista de classe.

A resposta à profunda crise que grassa no continente europeu e à encruzilhada em que a Europa se encontra reside na consciência de que o modelo e o sistema que as classes dominantes tentam impor aos povos da Europa não são inevitáveis. Reside na capacidade dos povos, e das forças progressistas da Europa, de apresentarem e demonstrarem como possíveis novas formas de cooperação na Europa, baseadas no respeito pela soberania dos Estados e pela democracia; orientadas para o desenvolvimento social e económico mutuamente vantajoso, para a promoção dos valores da paz, da solidariedade, da amizade entre os povos, do respeito pelo ambiente e pela promoção da identidade e diversidade cultural. Novas formas de cooperação que, partindo do princípio de que os processos de integração não são neutros do ponto de vista de classe, articulem rupturas democráticas e progressistas no plano nacional com um processo de edificação de um novo quadro político, institucional, de cooperação entre Estados soberanos e iguais em direitos.

A outra Europa dos trabalhadores e dos povos passará obrigatoriamente pela derrota do processo de integração capitalista e nascerá da conjugação de quatro factores convergentes essenciais: o desenvolvimento da luta dos trabalhadores e dos povos e a crescente tomada de consciência política sobre a natureza de classe da União Europeia; a afirmação soberana do direito ao desenvolvimento económico e social dos Estados europeus; a alteração da correlação de forças política e institucional em cada um dos Estados-membros da União Europeia, ou pelo menos na sua maioria; e a articulação e cooperação das forças progressistas e de esquerda, com destaque para os comunistas, baseada numa clara posição de ruptura com o processo de integração capitalista europeu. É nessa luta que está e estará o PCP.


ÂNGELO ALVES


Notas

(1) Jacques Delors, Presidente da Comissão Europeia entre 1985 e 1995, membro do Partido Socialista francês, afirmou que a União Europeia era como uma bicicleta. Tinha de se continuar sempre a pedalar senão caía-se.



Fonte: O Militante UNIÃO EUROPEIA, EDIÇÃO Nº 344 - SET/OUT 2016



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