Portugal : A ideologia dominante no Ensino - Reflexos nos exames nacionais

A ideologia dominante no Ensino - Reflexos nos exames nacionais

por ANDRÉ LEONEL



"Tendo em conta a importância colectiva que tem a Educação para os destinos do país e do ponto de vista individual para cada um, é urgente por este e outros problemas do ensino, a intensificação da luta dos estudantes pela defesa da Escola Pública, Gratuita, Democrática e de Qualidade, e com a sua vontade transformadora, alterar a realidade da Educação dos dias de hoje e reconstruir a escola de Abril."


Há dois anos a camarada Cátia Lapeiro escreveu um artigo para esta mesma revista 1 onde analisava a relação entre os conteúdos de manuais escolares do 9.º ano e a ideologia dominante. A contextualização teórica que a camarada fez escusa-me de certa maneira a repeti-la, no entanto nunca é demais frisar esta ideia essencial: ao contrário do que nos querem fazer crer a educação não é apolítica – nunca o poderia ser.

Tal como no artigo de há dois anos, também neste traremos exemplos, desta vez mais centrados em elementos de avaliação, em particular os exames nacionais do 12.º ano da disciplina de História A, desde 2008 até este ano de 2014, de 1.ª e 2.ª fase.

De forma não exaustiva (porque certamente este tema daria para muitas páginas) procuraremos abordar alguns temas, como o «pós-guerra fria», a forma como o papel dos Estados Unidos da América é apresentado, as causas e consequências das derrotas do socialismo – num ano em que se assinalam 25 anos sobre a queda do Muro de Berlim, esta questão é de todo relevante.

Vale a pena fazer uma ressalva desde já: por muitos exemplos que tenhamos nestes elementos de avaliação, a verdade é que a raiz do problema é mais ampla, está desde logo nos currículos e programas, está na forma como a matéria é dada ao longo do ano, e nomeadamente como ela é tratada nos manuais escolares – os exames acabam por ser um reflexo disso mesmo.

< Um outro exemplo que mostra de forma clara a ideologia do sistema educativo neste momento é o da União Europeia e a forma como a integração portuguesa aparece retratada. Em primeiro lugar confunde-se (como é muito hábito na comunicação social) União Europeia com Europa, como se esta fosse indissociável daquela. «A Europa em construção»2 é um termo que é, no mínimo, vago, se nos estivermos a referir a uma evolução geral das civilizações europeias, ou pouco rigoroso, se falarmos do processo de construção da CEE/UE, no qual não se incluem todos os países da Europa e que não esgota em si um processo verdadeiramente europeu. Em segundo lugar, de todas as vezes que esta questão é tratada nos exames – 2008, 1.ª fase, 2011 e 2012, 2.ª fase, 2013, 1.ª fase, 2014, 2.ª fase – apenas neste último surge uma opinião divergente à da perspectiva optimista e positiva da integração de Portugal neste processo – a do camarada Álvaro Cunhal – que é imediatamente sucedida da opinião de Mário Soares. O que nos é pedido é para compararmos as duas perspectivas, um tipo de pergunta habitualmente usado quando existe um texto comunista 3. Com todo o mérito que este tipo de questão tem, não será por acaso que ela é feita em determinado tipo de grupos e com determinado tipo de documentos.

De resto, o ex-dirigente do PS figura em mais dois exames: no de 2008, para falar na comemoração dos 50 anos sobre a assinatura do Tratado de Roma (de 9 de Fevereiro de 2007), e no de 2012, sobre Portugal e Espanha na Comunidade Ibero-Americana (de 12 de Abril de 2008).

Dado o papel que teve em todo o processo não espanta a quantidade de textos – tal como não deve surpreender a visão floreada e idílica que transparece em todos os seus discursos. Os problemas e desvantagens que a UE trouxe para Portugal são deixados para segundo plano ou ignorados de todo.

Se os alunos quiserem abordá-los, apenas têm o texto de Álvaro Cunhal para se basearem, sendo que este data de 1980: embora a sua análise se tenha verificado correcta e por isso seja de grande actualidade, deixa forçosamente de fora aspectos mais específicos e relevantes a que os alunos podem e devem ter acesso.

Não me vou deter sobre o texto do exame de 2012, embora aí também se refira, por exemplo, que «a entrada de Espanha e de Portugal para a então CEE […], como membros de pleno direito, favoreceu igualmente as relações entre a Europa e a Ibero-América»4, uma afirmação que mereceria algum apontamento. Mas gostava de voltar ao exame de 2008, 1.ª fase, onde o tema da integração é mais amplamente desenvolvido, como aliás se pode ver pelo título do grupo de perguntas: «integração e participação de Portugal no projecto europeu»5 (mais um uso abusivo do adjectivo). Uma destas perguntas pede-nos para identificar três aspectos positivos da adesão de Portugal à CEE, segundo o mesmo autor: de facto, quem melhor que Mário Soares para isto?

Segundo os critérios de avaliação, a resposta com maior cotação será aquela que identificar claramente três dos seguintes aspectos positivos: «aprofundamento da democracia conquistada com o 25 de Abril; consolidação da estabilidade político-militar e fim das ameaças totalitárias; apoio ao desenvolvimento de Portugal, face ao atraso em relação à Europa comunitária, através de apoios financeiros; transformação das mentalidades; abertura cultural e humana.»6. Isto, como tudo o resto, não é um dogma, está sujeito a leituras e interpretações e são a opinião de alguém que esteve intimamente ligado a todo este processo de integração de Portugal. É uma visão com uma forte componente política e ideológica que ao longo dos anos se tem revelado cada vez mais incorrecta, mas que nem por isso deixa de ser apregoada: segundo ela, Portugal mergulharia no caos sem esta integração. É uma visão da ideologia dominante que é incutida aos mais novos.

Vejamos agora a questão em torno da queda do Muro de Berlim e o fim da URSS e atentar uma vez mais nos documentos apresentados. Há três documentos sobre o tema da nova ordem mundial: o discurso da tomada de posse de Bill Clinton, em 1993 7; um discurso de Barack Obama, sobre «Desafios do mundo actual», de 2008 8; outro discurso de Bill Clinton, em Pequim, de 1998 9.

A nenhum destes documentos é apresentado um contraponto, de maneira a que se possa fazer um confronto de ideias como acontece noutros casos. A visão que aqui temos é-nos apresentada como unânime: actualmente vivemos mais seguros e mais livres. Que vivemos num mundo cheio de desafios, é algo dito por ambos – que esses desafios decorrem, em boa parte, de um imperialismo militar, económico e cultural a que os EUA sujeitam o resto do globo, com o apoio da União Europeia e outros aliados (apoio esse, aliás, seguido da forma mais escandalosamente subserviente por parte de vários governos portugueses: vejam-se alguns sentidos de voto em sede da ONU, já para não falar da cedência da Base das Lajes, entre outros exemplos) é uma visão que não consta num exame nacional do 12.º ano.

É preciso chegar uma vez mais ao exame deste ano (1.ª fase) para vermos nos critérios de avaliação alguns tópicos que são, de facto, fundamentais para entendermos e abordarmos esta matéria de forma séria. As ameaças à paz no mundo pós-guerra fria foram afloradas algumas vezes (nos critérios de avaliação do exame de 2008, por exemplo, está referido o «aumento da instabilidade político-militar e da insegurança; corrida aos armamentos»10 – uma referência, ainda que indirecta, ao problema), mas só este ano é apresentado como hipótese de resposta «intervenções político-militares dos EUA, em diversos assuntos e regiões, por vezes conduzidas de modo unilateral (ou sem mandato da ONU).»11 De notar, contudo, a forma superficial como isto é apresentado: este é um aspecto de entre oito que são apresentados, num tópico de resposta (há três tópicos de resposta) – para a cotação máxima exigiam «abordagem de nove aspectos, com três aspectos de cada um dos tópicos de referência»12. Claro que está aqui em causa a forma de avaliar e construir as respostas, algo que se pode achar mais ou menos justo. De qualquer forma, a verdade é que as intervenções político-militares dos EUA e a ameaça à paz, directa e bem real, é algo muito pouco tratado nas escolas.

É preciso fazer um esforço no sentido de informar e consciencializar. Demos aqui exemplos que figuram em exames nacionais do 12.º ano de História A, mais centrados em questões concretas da CEE/UE e do fim da URSS, mas muitos outros exemplos podem ser dados: a Revolução de Outubro e desenvolvimento da URSS, a ditadura fascista do Estado Novo e a Revolução do 25 de Abril são alguns deles. Também noutras disciplinas assistimos a omissões: em Filosofia, o materialismo dialéctico – instrumento de análise da realidade que marcou de forma profunda o último quartel do século XIX e o século XX e que, ao contrário do que nos é repetido incessantemente, tem perfeita aplicabilidade nos dias de hoje – é de certa forma ignorado.

Todos estes casos reflectem um estado geral na educação, por isso não podemos pensar nos exames isoladamente: se isto acontece nos exames é porque a própria matéria, os manuais escolares, enfermam do mesmo mal. Se há ideia que gostávamos que ficasse clara é que seria um erro pensar que isto é fruto do acaso ou da ingenuidade de alguém: o cunho político que existe no ensino é consciente e decorre do sistema em que vivemos. A educação, como tudo o resto, é política.

Por fim, e nunca é demais referir, embora os casos referidos não sejam mais que um reflexo de todo um sistema de ensino, do programa que é dado e que consta nos manuais escolares, os problemas dos exames nacionais estão longe de poderem ser reduzidos a este tipo de ofensiva ideológica. A realidade mostra que os exames nacionais do Ensino Secundário são incompatíveis com um justo sistema de avaliação contínua – desvalorizando o trabalho desenvolvido pelos estudantes ao longo dos três anos do Ensino Secundário, o que é comprovado pelo peso dado a este elemento de avaliação na média final do Ensino Secundário e no acesso ao Ensino Superior. O problema vai ainda para além disto – este modelo, não levando em linha de conta as desigualdades entre os estudantes e as próprias escolas, acaba por aprofundá-las ainda mais, contribuindo assim para uma cada vez mais acentuada elitização do ensino. Veja-se o exemplo do estudante de família com melhores condições económicas, que tem acesso a mais instrumentos para se preparar para um Exame Nacional. Por isto, a JCP defende o fim dos exames nacionais e a valorização da avaliação contínua.

Tendo em conta a importância colectiva que tem a Educação para os destinos do país e do ponto de vista individual para cada um, é urgente por este e outros problemas do ensino, a intensificação da luta dos estudantes pela defesa da Escola Pública, Gratuita, Democrática e de Qualidade, e com a sua vontade transformadora, alterar a realidade da Educação dos dias de hoje e reconstruir a escola de Abril.


ANDRÉ LEONEL


Notas

(1) O Militante, N.º 320, Setembro/Outubro 2012, p. 40.

(2) Exame de 2011, 2.ª fase, p. 4.

(3) Veja-se, por exemplo, o exame de 2013, 1.ª fase, p. 4.

(4) Exame de 2012, 2.ª fase, p. 6.

(5) Exame de 2008, 1.ª fase, p. 6.

(6) Critérios de avaliação do exame de 2008, 1.ª fase, p. 8.

(7) Exame de 2008, 2.ª fase, p. 6.

(8) Exame de 2012, 1.ª fase, p. 7.

(9) Exame de 2013, 2.ª fase, p. 6.

(10) Critérios de avaliação do exame de 2008, 2.ª fase, p. 8.

(11) Critérios de avaliação do exame de 2014, 1.ª fase, p. 11.


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