A «receita» para o ébola

A «receita» para o ébola
por Maurício Miguel


"A ONU e a OMS apelam à mobilização de meios financeiros e materiais, mas sublinham que é sobretudo necessário «gente». E se perante este apelo Cuba decidiu enviar para a África Ocidental 465 trabalhadores da saúde experimentados no combate a catástrofes naturais e epidemiológicas, os EUA anunciaram o envio de quatro mil soldados. A UE apoia. Segundo o imperialismo vale mais um soldado do que um médico, uma espingarda do que uma seringa, um tanque do que uma ambulância, uma base militar do que um hospital.

Com a soldadesca no terreno, será mais fácil controlar os interesses dos grandes monopólios, que saúdam a decisão, afinal estes países e toda a região têm importantes recursos naturais de que a grande indústria necessita. Abre-se caminho a uma maior presença militar do imperialismo na região, o AFRICOM (comando americano para África) deslocar-se-á aos poucos da base americana na Alemanha para o terreno da sua vocação natural: África. A solidariedade e o humanismo de Cuba e da sua Revolução contrastam com a falta de escrúpulos das grandes multinacionais cuja defesa de interesses impõe a presença militar dos EUA e o apoio dos seus aliados da UE."

Não se surpreenda o leitor se numa próxima ida ao médico por motivo de uma dor de cabeça, cólicas, uma constipação, achaques dos rins ou da vesícula, dores nas costas ou males dos jarretes, calosidades ou outra qualquer maleita do corpo ou do espírito, o doutor lhe prescrever meia dúzia de soldados em jejum, duas peças de artilharia, uma ao almoço e outra ao jantar, e um avião ou um submarino antes de dormir.

Se o mal persistir não estranhe nem desanime, as soluções são tantas quantos os recursos ao dispor da moderna ciência militar, poderá ver-lhe receitada uma carga de artilharia mais pesada, uns obuses maiores, mísseis disparados de terra, ar e água, umas armas químicas ou biológicas, e se ainda assim o problema teimar, não desespere, no quartel militar de serviço existe uma última alternativa, definitiva, infalível, recorrer-se-á à famosa bomba atómica, que é como quem diz, a bomba nuclear.

Não há nada de novo nem na receita nem na bula do medicamento, este é o resultado de uma ampla experimentação mundial. Veja-se o caso actualíssimo do combate ao vírus ébola em vários países de África Ocidental, particularmente na Libéria, Serra Leoa e República da Guiné, onde já morreram mais de três mil pessoas, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), e onde, face às características do vírus e às insuficiências do combate, se assistirá ao aumento exponencial do número de infectados nos próximos meses.

Estamos perante o falhanço de tudo o que nesses países não existe, a saber, um sistema de saúde público e universal, dotado de meios materiais e humanos suficientes para combater o vírus, capacidade de tomar medidas educativas de prevenção, infra-estrutura de saneamento básico, enfim, graves carências de um país onde a vontade de agir morre impotente perante a inexistência dos meios, sucumbindo às suas mãos centenas de pessoas (por dia). Atente-se no exemplo da Serra Leoa, onde existindo apenas dois médicos por cada 100 mil habitantes quatro deles morreram desta doença. Não é ficção mas a dura realidade de um país em que até umas simples luvas faltam – fundamentais para evitar o contacto com os fluidos que transportam o vírus –, não há condições para cuidar dos vivos nem enterrar os mortos, cresce a incerteza, até os quase inexistentes meios económicos de sobrevivência da imensa maioria da população são colocados em causa pelas medidas de combate à proliferação. Somam-se ao ébola todos os outros vírus e doenças que nem por isso meteram licença, continuando a matar sem cessar, acrescentando sofrimento e morte onde nunca houve queixas da sua escassez.

Trata-se de alguns dos países mais pobres do mundo, saídos ainda recentemente de décadas e décadas de guerras civis que destruíram o que apenas começava a nascer, um país independente, soberano, o sonho de uma vida melhor. 

Um pretexto para o imperialismo

A ONU e a OMS apelam à mobilização de meios financeiros e materiais, mas sublinham que é sobretudo necessário «gente». E se perante este apelo Cuba decidiu enviar para a África Ocidental 465 trabalhadores da saúde experimentados no combate a catástrofes naturais e epidemiológicas, os EUA anunciaram o envio de quatro mil soldados. A UE apoia. Segundo o imperialismo vale mais um soldado do que um médico, uma espingarda do que uma seringa, um tanque do que uma ambulância, uma base militar do que um hospital.

Com a soldadesca no terreno, será mais fácil controlar os interesses dos grandes monopólios, que saúdam a decisão, afinal estes países e toda a região têm importantes recursos naturais de que a grande indústria necessita. Abre-se caminho a uma maior presença militar do imperialismo na região, o AFRICOM (comando americano para África) deslocar-se-á aos poucos da base americana na Alemanha para o terreno da sua vocação natural: África. A solidariedade e o humanismo de Cuba e da sua Revolução contrastam com a falta de escrúpulos das grandes multinacionais cuja defesa de interesses impõe a presença militar dos EUA e o apoio dos seus aliados da UE.

Talvez o humor, a ironia, ou ambos, sejam uma forma tosca de tratar uma realidade que nos dá um nó nas entranhas e nos impele à denúncia, à acção, à luta. Talvez. Sentimo-nos muito pequenos perante o sofrimento desses milhões de seres humanos a quem a morte vai cercando e elevando a voz para dizer: o próximo és tu. É o nosso pequeno mas genuíno acto de solidariedade. 


Fonte : Avante em www.avante.pt




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