História do "bombardeio humanitário" promovido pelos EUA e a OTAN/NATO no IRAQUE
Em nome das crianças do Iraque cujas vidas foram um “Preço que vale a pena”
- Dedicado a Madeleine Albright**
Por Felicity Arbuthnot - Tribunal Iraque
Fonte: Uruknet
Tradução de F. Macias
“… a guerra no nosso tempo é sempre promíscua, uma guerra contra inocentes, contra crianças.” Howard Zinn (1922-2010).
Criança Iraquiana vítima dos "regalos" americanos à infância do terceiro mundo |
- Dedicado a Madeleine Albright**
Por Felicity Arbuthnot - Tribunal Iraque
Fonte: Uruknet
Tradução de F. Macias
“… a guerra no nosso tempo é sempre promíscua, uma guerra contra inocentes, contra crianças.” Howard Zinn (1922-2010).
Foi Kathy Kelly – firme, afectuosa e completamente leal ao povo do Iraque, arriscando constantemente a ira draconiana, penas de prisão, e sanções incríveis dos EUA, o Estado da sua compaixão - que me alertou. O telefone tocou no dia 12 de Maio 1996, era Kathy que telefonava de Chicago, atordoada. Madeleine Albright, então embaixadora dos EUA na ONU, tinha acabado de aparecer no “ 60 Minutos”.
Lesley Stahl, disse Kathy, tinha falado sobre o embargo dirigido pelos EUA ao Iraque: “Nós ouvimos dizer que já morreram meio milhão de crianças. Isto quer dizer mais do que as que morreram em Hiroshima. E, a senhora, acha que vale a pena este preço? E Albright tinha respondido: “ Eu penso que é uma escolha muito difícil, mas quanto ao preço… pensamos que o preço vale a pena.”
Há coisas que nos ficam marcadas para sempre na memória. Lembro-me que fiquei com dúvidas, talvez até a Kathy, que era muito meticulosa, tivesse de alguma forma interpretado mal alguma coisa. Perguntei-lhe se haveria alguma maneira de ela me enviar uma cópia por fax, nesse tempo em que a maior parte das pessoas já tinha computador em casa. Como por magia ela arranjou-me uma, numa hora. Ao lê-la, as imagens das crianças que eu tinha observado, indefesas, com a vida a extinguir-se por falta de medicamentos e tratamentos, que estavam embargados e que muitas vezes a possibilidade de uma cirurgia seria vital, essas imagens encheram-me a memória.
Pensei na expressão de súbita esperança, nos olhos de uns pais sentados junto da cama do seu filho, quando alguém entrou na enfermaria. Essa pessoa vinha de fora do Iraque, talvez houvesse algum milagre que ela pudesse fazer, mas logo a expressão desapareceu. Como aconteceu a tantas, tantas, pequenas e frágeis criaturinhas, a quem a vida foi arrancada. Agora eu sabia que eles eram “o preço que valia a pena”. E com isso apercebi-me que o mal total realmente existe.
O Iraque importava 70% de quase tudo. No Dia de Hiroshima em 1990, com a implementação do embargo, a vida racional acabou. Desde livros escolares a brinquedos de crianças, de batons a artigos de higiene, produtos de limpeza a sabões, o que era normal desapareceu. Mas foi o sector da saúde, dantes talvez o melhor do Médio Oriente e gratuito para todos, o único a ser totalmente devastado. Depois do bombardeamento de 1991, ele ficou – literalmente- em ruínas.
A imoralidade com que o Comité de Sanções da ONU actuava, troçava das bonitas palavras fundadoras da sua Carta em geral e da Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU em particular. Desde incubadoras a seringas pediátricas, de medicamentos para o cancro a máquinas e equipamento para diálise, de analgésicos a bisturis, de antibióticos a inaladores para asma, tudo foi vetado.
Seis meses antes da proclamação de Albright em Dezembro de 1995, Sara Zaidi e Mary Smith Fawzi do Centro para os Direitos Económicos e Sociais e a Escola da Saúde Pública de Harvard, escreveram para a Lancet, salientando que em Agosto de 1991, a apenas um ano do embargo: “o nível da mortalidade da população com menos de cinco anos de idade subiu de 43,2 por mil para 128,5 por mil, mostrando um aumento da mortalidade infantil para o triplo”. Numa outra pesquisa (1995) da FAO, sob os auspícios da ONU: “ a taxa de mortalidade dos menores de cinco anos quintuplicou.” Impedir o crescimento e devastar ganharam, num país onde dantes os alimentos eram baratos e abundantes.
Eu fui pela primeira vez ao Iraque depois do bombardeamento de 1991, menos de um ano depois, e em poucas horas eu verifiquei a realidade através das estatísticas. Naquilo que tinha sido um hospital escolar de vanguarda, eu vi uma enfermeira ainda jovem, a tentar freneticamente provocar a tosse a um menino recém-nascido perfeito, enquanto os jovens pais se mantinham com caras aterrorizadas. Uma amiga minha, médica da Escócia estava comigo, ela olhou em volta e disse: ”Numa situação como esta, em qualquer hospital se sabe onde estão os recursos vitais, aqui não há nada. ”Vimos impotentes, aquela criaturinha tornar-se branca, cinzenta, azulada e perder a luta pela vida que estava a começar, enquanto o sol entrava pelas janelas estilhaçadas pelas bombas. As fábricas de vidro tinham sido bombardeadas e o vidro também estava embargado. O bebé tinha morrido pela falta de uma bomba de aspiração de plástico, fundamental e que custava pouco mais de uns cêntimos.
Em 1993, as mães mal alimentadas para amamentarem e sem poderem comprar leite em pó, alimentavam os seus bebés com água açucarada ou chá preto com açúcar. Quase todos ficavam inchados e com desnutrição crónica, e acabavam por morrer. Os médicos inventaram um novo diagnóstico. Chamavam-lhes “os bebés de açúcar”.
Quanto às crianças que sobreviviam, especialistas de crianças nas zonas de guerra avisaram que esta era possivelmente a população infantil mais traumatizada ao cimo da terra. Com a austeridade e os recentes (ilegais) ataques dos EUA e Reino Unido, elas não têm como recuperar das suas más experiências.
Um exemplo inesquecível foi o de uma criança com cerca de cinco anos, numa pequena mercearia, uma manhã cedo. Ele entrou orgulhoso, como qualquer criança que foi encarregada de uma missão importante. Comprou um ovo. Na altura, uma caixa de ovos custava um ordenado mensal de um professor universitário. Ir tomar uma refeição e encontrar lá dentro pedacinhos de ovo, era na verdade um luxo. O menino levou-o com cuidado até à porta mas deixou-o cair. Ajoelhou-se e tentou apanhá-lo do chão, com as lágrimas a correrem-lhe pela face. Eu levei a mão ao bolso, e o dono da loja bateu-lhe no ombro e deu-lhe outro.
Duas outras crianças que “valem o preço”, sofriam de leucemia da medula, tinham hemorragias internas, estavam cheias de nódoas negras devido a roturas das veias e tinham dores horríveis. Não havia meios para reduzir o sofrimento. O mais novo, de três anos, estava deitado rígido, e continha as lágrimas dos olhos. Ele tinha aprendido sozinho a não chorar, porque isso iria torturar ainda mais o seu corpinho agonizante. Saí dali sem ser capaz de tirar uma fotografia ou tomar notas, apenas queria confortá-lo, mas tocar-lhe provocava-lhe mais sofrimento.
Perto da porta, eu inclinei-me e acariciei a cabeça do mais velho, de apenas cinco anos. A este gesto que lhe deve ter causado o inimaginável, ele respondeu como qualquer outra criança, com afecto, e apertou-me a mão com firmeza. Eu escrevi então: “Eu saí da enfermaria, apoiada à parede, e soube que era realmente possível morrer-se de humilhação.”
A senhora Albright teria ficado sem dúvida, satisfeita com os bons resultados do seu projecto em Bassorá.
Numa visita ao hospital pediátrico e maternidade, a querida amiga Dra. Jenan Hussein saiu a correr para me abraçar. Depois de uns momentos de silêncio, eu tive uma quase premonição.
Ela disse: “Felicity, lembra-se daquelas crianças sobre quem você escreveu, em Junho?” (agora estávamos em Novembro) “ Lamento muito, mas elas morreram todas.” Eram dezassete bebés que estavam na unidade dos prematuros, que não tinha sequer oxigénio (embargado).
Aquela foi a visita em que eu quase perdi a capacidade de entender o que estava a acontecer. Eu entrei numa enfermaria onde estava um grupo de mulheres perturbadas, tias e avós, junto a um catre, de outro recém-nascido perfeito, que tinha acabado de morrer. A mãe tinha saído a correr da unidade fora de si, em luto. Eu perguntei se poderia pegar no pequeno ser ainda quente. “Sim, faça favor”. Eu coloquei-o sobre o ombro, acariciei-lhe a cabeça, para trás, certa de que eu poderia fazê-lo voltar à vida, ele estava quente, leve, perfeito. Não sei quanto tempo eu estive a afagar a sua pequena figura, desejando trazê-la de volta. Por fim, derrotada, eu coloquei-o para baixo, cobri-o e nós chorámos juntas.
No mesmo corredor estava outro recém-nascido. Estava numa incubadora, envolto em cobertores pois a incubadora não funcionava (e equipamentos de substituição estavam embargados) no mundo de vidro em que o Iraque se tornara. Ele precisava de uma transfusão de sangue, porque era prematuro e estava amarelo devido a icterícia. Eu pensei que tinha o tipo de sangue necessário e ofereci-o para eles o testarem, visto que sangue errado é tão mortal como não haver sangue. Não havia meios para fazer a análise. Embargados. Eu tive um filho prematuro que foi salvo por uma transfusão de sangue. Eu olhei para os olhos da mãe e fiz eco do seu desespero. Nós, os médicos, o bebé, éramos todos impotentes.
Quando os cancros aumentaram (em meados dos anos 90 as crianças nasciam por vezes com cancro – um fenómeno inédito) os tratamentos para o cancro foram embargados. O cancro está associado ao uso de armas, especialmente o urânio empobrecido.
A Autoridade de Energia Atómica do Reino Unido num relatório “por iniciativa própria”, calculou que se a quantidade de resíduos deixados depois das guerras de 1991 fosse cinquenta toneladas, em 2000 haveria mais meio milhão de mortes por cancro. De facto as mais altas estimativas dos resíduos deixados são de 700 toneladas. Em 1998 um estudo da Universidade John Hopkins estimou que se os cancros continuassem a aumentar na mesma proporção, 44% da população em 2000 contrairiam cancro.
Os ataques-relâmpago de 2003 podem ter deixado mais 2,000 ou 3,000 toneladas de urânio empobrecido. Durante muitos anos os casais tinham medo de ter filhos, dado a epidemia das deformações congénitas daí resultantes, como é de esperar se os lixos nucleares forem lançados sobre as populações.
Eu escrevi muito sobre Jassim, o menino poeta, que ao ouvir dizer que eu era escritora, corou de prazer, e tirou um livro de notas debaixo da almofada onde estava deitado na enfermaria dos doentes com cancro. Ele poderia ler-me o seu poema? Claro:
“O nome é amor
A classe não faz sentido
A escola está a sofrer
O Estado é uma tristeza
A cidade está a suspirar
A rua é miséria
O número da casa é mil suspiros”.
“Jassim”, disse eu, recuperando por fim a voz, se tu sabes escrever isto aos treze anos, imagina o que irás escrever aos vinte. Perguntei-lhe se eu podia servir-me do poema para o homenagear. Ele ficou muito contente. Nunca o viu publicado, em muitos lugares e línguas. Morreu antes de uma organização de ajuda, rodeando o embargo, ter obtido os medicamentos de que precisava.
Pouco antes da invasão, perguntei ao pai doutra criança doente terminal, Mohammed, (de 10 anos) o que gostaria de perguntar a George W. Bush e Tony Blair. E ele respondeu: “Pergunte-lhes por favor se tudo o que eles querem das crianças são os seus sacrifícios?”
“Libertar” o Iraque resultou em cinco milhões de órfãos, um milhão de viúvas, quase cinco milhões de deslocados, internamente e fora do país, e uma infra-estrutura com deformação social, tragédia a nível médico, o que faz anos de embargo parecer pouca coisa. Entre o embargo e a invasão – de 1990 a 2011, as estimativas mais elevadas dão três milhões de mortos, entre nado-mortos, recém-nascidos e menores de cinco anos,ainda a pagar o preço mais alto. Um “preço que vale a pena”
Feliz Aniversário, senhora Albright.
**Madeleine Albright, secretária de estado do Império americano. Cúmplice dos assassinatos de crianças no Iraque e que cínicamente falou tal disparate.
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