As origens obscuras da União Europeia
As origens obscuras da União Europeia
por Luisen Segura
"Uma instituição sempre se pode vestir sob um manto de correção política, mas as pessoas tendem a ficar marcadas pelas suas ações de uma forma mais indelével, sendo símbolo de ideias e episódios históricos concretos. A União Europeia pode apresentar a sua história como uma epopeia da democracia – um conceito, aliás, que merece uma abordagem à parte, para podermos compreender o que é, de facto –, mas o papel protagonista de certos “pais fundadores”, que fizeram parte do nazi-fascismo ou do conservadorismo mais reacionário, serve para colocar sobre a mesa algumas provas da falácia historiográfica europeísta."
O enredo histórico que esteve na origem da atual União Europeia foi complexo.
Estudar a história do que veio a ser chamado de “integração europeia”, a partir do objetivo inicial da criação de um mercado comum continental, significa a submersão numa maré confusa, na qual diferentes correntes intervêm. Referimo-nos a um oceano cheio de tratados, de relatórios, de comissões, de declarações, de acordos e de desacordos com nomes próprios. Referimo-nos à sucessão, combinação e mutação de uma série infinita de instituições e de organismos de natureza duvidosa (muitas vezes utilizando uma definição ambígua entre o estatal e o corporativo), compostos de órgãos e membros dependentes de diferentes alianças, muitas vezes com passados ocultos.
Entre tantas assinaturas solenes, uma pretendeu assumir-se como data da fundação, ano zero, para contar a história da atual União Europeia: a assinatura dos chamados Tratados de Roma, a 25 de março de 1957. O estabelecimento da Comunidade Económica Europeia – CEE – e da Comunidade Europeia da Energia Atómica – EURATOM – reforçaram o processo aberto em 1951 pela Comunidade Europeia do Carvão e do Aço – a famosa CECA –, primeiro órgão supranacional dos monopólios europeus, neste caso, franceses e alemães, juntamente com os italianos e os do Benelux. Mas começar a contar a história do processo de integração dos monopólios europeus num mercado continental comum a partir de Roma, em 1957, ou a partir do Tratado de Paris, de 1951 – nascimento da CECA – omitiria parte da história, a génese de um processo ligado não só ao período pós-Segunda Guerra Mundial, mas também inerente à própria eclosão dos dois conflitos mundiais que marcaram a história do século XX.
A União Europeia e o projeto de integração continental apresenta-se quase sempre como um paradigma de cooperação entre as nações, que ultrapassa as diferenças, a favor da convivência democrática. No entanto, esta é uma história com grandes capítulos escondidos. As obras de maior alcance serão aquelas que, no futuro, expuserem as contradições fundamentais do oficialmente contado em relação ao realmente ocorrido. No seio das cúpulas que dirimiram o futuro da integração europeia no século XX houve enormes contradições táticas. Diferenças entre federalistas e funcionalistas, entre aqueles que procuravam uma formulação política supranacional desde o primeiro momento, e aqueles que priorizavam a unidade de
ação econômica. No contexto das guerras mundiais, do capitalismo decididamente
monopolista, no surgimento de um bloco de nações socialistas, a ideia da Europa
como um centro de poder capitalista, a ideia de uns Estados Unidos da Europa, foi a
aposta dos grandes capitais financeiros – confluência dos monopólios industriais e
bancários – do velho continente, com medo de serem asfixiados na zona intermédia
que separavam as duas grandes potências mundiais. Uma oligarquia que em função
dos seus interesses nacionais havia sido dividida em diferentes facções durante as
guerras mundiais e que, uma vez passadas, deveria pôr-se de acordo novamente,
senão iria perecer debaixo da ascensão do primo estadunidense, ou pelo contágio
soviético.
Um estudo detalhado, com nomes e apelidos, com dados económicos e suas
traduções políticas, pode e deve ser feito. No entanto, quase como uma curiosidade
histórica, é possível vislumbrar no atual discurso histórico sobre a União Europeia
uma falácia. Apesar de os interesses económicos sempre terem sido, como continuam
a ser, o motor de tal união continental, este facto, mesmo não sendo ocultado, é
apresentado como um germe de menor importância. O que de facto se oculta
deliberadamente é a participação de personalidades de passado obscuro, no processo
de construção da União Europeia. Uma instituição sempre se pode vestir sob um
manto de correção política, mas as pessoas tendem a ficar marcadas pelas suas ações
de uma forma mais indelével, sendo símbolo de ideias e episódios históricos
concretos. A União Europeia pode apresentar a sua história como uma epopeia da
democracia – um conceito, aliás, que merece uma abordagem à parte, para podermos
compreender o que é, de facto –, mas o papel protagonista de certos “pais
fundadores”, que fizeram parte do nazi-fascismo ou do conservadorismo mais
reacionário, serve para colocar sobre a mesa algumas provas da falácia historiográfica
europeísta.
Se decidirmos traçar os primeiros passos da integração dos interesses monopolistas
europeus, teremos de voltar aos anos pós-guerra do primeiro conflito mundial.
Configura-se, então, a União Pan-Europeia, fundada em 1922, que realiza o seu
primeiro Congresso em 1926. Concebida e dirigida pelo conde austro-húngaro,
Richard Nikolaus Coudenhove-Kalergi, propõe uma união federalista das
nações europeias, tendo como base ideológica o cristianismo, como meios de ação a
atividade econômica com vista à formulação de um mercado comum e como objetivo
construir uma Europa “livre de niilismo e ateísmo”, travando o possível avanço do
recém-nascido comunismo soviético.
O Congresso de Haia, também conhecido como o Congresso da Europa, realizado
entre 7 e 11 maio de 1948, é o evento capital da considerada proto-história da UE. O
seu discurso, com os campos de batalha ainda fumegantes, está cheio de convites à
harmonia. Mas quem estava por detrás dele e como é que foi convocado? O Comité
Internacional para a Unidade Europeia tinha sido o organismo convocante. Não era
uma entidade oficial de confluência estatal, o que viria a ser confirmado com a sua
integração no Movimento Europeu (cuja definição é bastante ambígua). Este efémero
comité era o resultado da união de seis organizações não-governamentais: a União
Europeia dos Federalistas, composta por movimentos de Resistência não comunistas; o Movimento para a Europa Unida, liderado por Winston Churchill; a Liga
Europeia de Cooperação Económica, dirigida por Paul Van Zeeland, Joseph
Retinger e Pieter Kersten; as Novas Equipas Internacionais, no âmbito da
democracia-cristã anticomunista, sob a direção de Robert Schumann; o
Movimento Socialista pelos Estados Unidos da Europa; e a União Parlamentar
Europeia, liderada por Coudenhove-Kalergi.
Convém determo-nos em alguns dos nomes deste grupo heterogêneo, entre os quais
já se destacam alguns dos heróis da UE, e onde as vozes hegemônicas serão as
funcionalistas e as localizadas num espaço político-ideológico mais à direita. Winston
Churchill, a sua figura mais conhecida, é lembrado como o adversário de Hitler na
guerra – o que, aliás, constitui um paradoxo da história, uma vez que os pontos de
conexão ideológica entre os dois são muito mais do que aqueles que poderia esperar
alguém não iniciado nesta matéria. Churchill havia sido durante décadas o símbolo e
carrasco do movimento operário. Cruzado anticomunista desde a primeira hora,
aquando da greve geral de Inglaterra, em 1926 – quando era ministro das Finanças –
ordena a utilização de metralhadoras contra os grevistas, louvando a Itália de
Mussolini, que, afirma, “prestou um serviço ao mundo, ensinando como se
combatem as forças de subversão”. Vários foram os membros deste Comité. Um
deles, Paul Van Zeeland, primeiro-ministro belga, do Partido Católico, tornar-se-á
secretário-geral honorífico de um grupo, hoje, de reconhecido gabarito, o Clube
Bilderberg. O polaco Joseph Retinger, co-fundador, com Zeeland, da Liga Europeia
de Cooperação Económica, também figura como promotor de Bilderberg e
embaixador do sionismo na Europa. Quanto à democracia cristã, citemos o caso do
francês Robert Schumann, um dos maiores representantes da calculada ambiguidade
do animal político ao serviço dos interesses financeiros nos tempos entre-guerras e da
pós-Segunda Guerra Mundial. Schumann, recordado pela Declaração que iria entrar
para a história com o seu nome, foi quem oficializou, a 9 maio de 1950, o casamento
do carvão e do aço alemães e franceses como símbolo da Europa unida, tendo tido
anteriormente um papel que não é tão recordado. Nos seus primeiros passos pela
política, milita nas fileiras de um dos partidos que compõem o Bloco Nacional de
Raymond Poincaré, o qual delineava como eixos o patriotismo e o
antibolchevismo; em 1938, declarou o seu apoio aos Acordos de Munique, dirigidos
por Mussolini, nos quais a França e a Inglaterra consentiam a anexação de parte da
Checoslováquia pela Alemanha nazi.
A declaração Schumann levou à prática outro destes planos com nome próprio que
ordenam a cronologia integracionista, o Plano Monnet. Este plano deve o seu nome a
Jean Monnet, banqueiro e empresário francês, que propôs ampliar o poder de um
pool de empresas do carvão e do aço. O seu contributo vale-lhe a honra de “pai
fundador” da Europa comunitária. Não é em vão, pois era um homem com
experiência no que tocava a investir em áreas devastadas. De facto, entre 1934 e 1936,
viveu na China, fazendo assessoria e trabalhando para o governo anticomunista e
ultranacionalista de Chiang Kai-shek, que o havia convidado explicitamente a
Xangai para dirigir a construção de vias férreas.
Sempre foi tradição batizar os relatórios, declarações, planos e outras elaborações
teóricas da UE com o nome dos seus autores. O referido Plano Monnet e a Declaração Schumann, ou outros documentos, como o Relatório Tindemans – adoção do nome
de Leo Tindemans, primeiro-ministro belga e Primeiro Secretário-geral do Partido
Popular Europeu – ou o plano Genscher-Colombo, são apenas uma pequena amostra
de uma longa relação. Uma tradição batismal gradualmente abandonada, porque aos
nomes imaculados acaba, por vezes, por lhes caírem as máscaras. O caso do Plano
Genscher-Colombo reflete isso mesmo. Hans-Dietrich Genscher, antes de ser
Ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha Ocidental e autor de um novo plano
para aprofundar a União Europeia, foi membro das Juventudes Hitlerianas e da
Luftwaffe – as forças aéreas nazis; além disso, foi membro do Partido Nazi – cartão
NSDAP 10.123.636. O seu passado nazi militante e a sua condição de prisioneiro de
guerra alemão não foram obstáculo para alcançar as mais altas instâncias do Estado
na Alemanha Ocidental e, como se demonstra, tão pouco o foram para se converter
em outro dos alicerces e dinamizadores da União Europeia.
Os velhos políticos e militares nazis encontraram um albergue nas instituições da
Alemanha Ocidental e nas instituições europeias. São notórios, embora se tentem
ocultar, casos como o de Genscher, que não é, no entanto, o mais óbvio. Talvez o caso
mais significativo seja o de Walter Hallstein, advogado do Partido Nacional-socialista,
estratega político do Estado nazi e, décadas mais tarde, o primeiro
Presidente da Comissão Europeia e um dos doze signatários dos Tratados de Roma.
Hallstein, decano da Faculdade de Direito e Economia na Universidade de Rostock,
pronuncia um discurso, a 23 de janeiro de 1939, sobre “A entidade jurídica da
Grande Alemanha”. O discurso, conhecido – ou desconhecido – como o “Discurso da
Conquista”, defendia os planos de anexação alemã que já estavam em marcha.
Outros membros do Partido Nazi viram o seu passado ser convenientemente
apagado, a fim de se manterem funcionais aos monopólios que os haviam guindado
ao poder antes da guerra e que, depois dela, tentavam recompor-se, em aliança com
os seus antigos inimigos. O caso do cartel químico alemão IG Farben, que era
composto pelas bem conhecidas marcas BAYER, BASF e Hoechst – entre outras –, é
sobejamente conhecido. Hallstein e muitos outros nazis ligados à IG Farben – como
Carl Friedrich Ophüls, membro do Partido Nazi de 1933 a 1945 e representante
permanente da CEE e EURATOM desde 1960 – não tiveram qualquer problema em
transitar das instituições nazis para as instituições da Comunidade Europeia do pós guerra.
Mas não foram só os gestores políticos dos monopólios que financiaram os
nazis, pois também os próprios donos dessas empresas foram, aliás, prontamente
recuperados para a legalidade europeia. Fritz Ter Meer, director da IG Farben,
condenado em Nuremberga, chegou de novo à presidência da BAYER em 1956. E não
é caso único.
Os nomes mais respeitados atualmente como pais fundadores da União Europeia têm
um passado obscuro. Gradualmente, no entanto, vão sendo desvendados capítulos
ocultos. Uma famosa fotomontagem do artista alemão John Heartfield
denunciava, à época, o financiamento do nazismo por parte do grande capital.
Os milhões que levaram os nazis ao poder, com efeito, não foram propriamente votos.
A mesma lógica e protagonistas quase idênticos serviriam para montar a
engrenagem das origens da União Europeia.
Tradução do castelhano de RG
Fonte: Pelo Socialismo
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