União das Mulheres na Comuna de Paris - A organização das mulheres na primeira revolução proletária da História

União das Mulheres na Comuna de Paris - A organização das mulheres na primeira revolução proletária da História
por Isabel Cruz


"O ódio da burguesia à Comuna de Paris começou no próprio dia da sua proclamação, com toda a artilharia de cúmplices, jornalistas, padres, intelectuais, escritores/as e habituais fazedores de opinião. Os escritores notáveis posicionaram-se todos de forma aberta e virulenta contra a Comuna, à excepção de J. Vallès, A. Rimbaud, P. Verlaine e Villiers de l’Isle Adam. Nos discursos anti-Comuna as metáforas mais usuais aludem à bestialização e à doença – «animais ferozes», «urros selvagens», «epilepsia social», «febre epidémica»… Com imagens essencialistas e patológicas pretenderam destruir o sentido do acontecimento, retirar-lhe o conteúdo ideológico, despolitizá-lo.

E às mulheres, foi reservado um destaque particular: elas foram constantemente enxovalhadas, comparadas a «lobas», «hienas», «fanáticas», «imagem do crime e do vício», «bêbedas, debochadas, viragos, gatunas, de má vida…». As «pétroleuses», mulheres incendiárias, armadas de archote numa mão e de vasilha com petróleo na outra, foi abundantemente publicada na imprensa, uma imagem inventada pela calúnia reacionária que também serviu para esconder o efeito destrutivo das bombas incendiárias do exército de Versalhes, e para justificar o massacre e a condenação de muitas operárias."

Elas estão em todo o lado na defesa da Comuna e da revolução – nas oficinas, nas ambulâncias e cantinas, nos hospitais, clubes e associações, na redação de jornais e comités, nas escolas e nas barricadas – Chignon, Collin, Diblanc, Dmitrieff, Jaclard, Jacquier, Lachaise, Leloup, Le Mel, Marcand, Marchais, Michel, Perrier, Reclus, Suétens, Verdure, são alguns apelidos das centenas que participaram ativamente na primeira revolução proletária. Lavadeiras, costureiras, escoveiras, encadernadoras, cantineiras, sapateiras, combatentes e artilheiras, socorristas e enfermeiras, operárias, mestres, intelectuais e até aristocratas, sem excepção, foram condenadas, fuziladas, deportadas, exiladas, caluniadas. 

Pouco dias depois da proclamação da Comuna, trabalhava-se para constituir a (também) primeira organização de mulheres da História. A União das Mulheres foi uma das maiores associações da Comuna, distinta de qualquer outro movimento feminino pela sua importância numérica, pelo recrutamento jovem e operário, pelo funcionamento rigoroso e democrático, pela orientação marxista. Tal como acontecia aos elementos da Comuna, a maioria das mulheres mais destacadas da União tinha ligações à Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) e estava associada ao movimento socialista francês, integrando as suas diversas correntes políticas.

Nathalie Le Mel e Elisabeth Dmitrieff são as dirigentes que mais dinamizaram a União. A primeira, com 45 anos, é operária numa oficina de encadernação e aderiu à AIT em 1866, e na União ocupa-se principalmente das questões sociais. A segunda, com 20 anos, é uma revolucionária da secção russa da AIT. Meses antes, visitara Marx, em Londres, e este envia-a a Paris como representante do Conselho Geral da AIT. É precisamente com a sua chegada, no dia seguinte à proclamação da Comuna, que se iniciam as reuniões preparatórias que irão conduzir à constituição da União das Mulheres, onde Dmitrieff se ocupa das questões políticas, e em particular das medidas socialistas contra a exploração do trabalho das mulheres.

No Jornal Oficial de 11 de Abril é publicado um extenso Apelo às Cidadãs: sem direitos não queremos deveres, queremos trabalho sem exploradores e sem patrões – o meio para defender estes objectivos é lutar contra o inimigo. Termina com um convite para a reunião onde se decidirá da formação dos Comités de Arrondissements (divisão administrativa urbana) e da organização do movimento de mulheres para a defesa de Paris. Subscrevem-no: Nathalie Le Mel (encadernadora), Elisabeth Dmitrieff, Marceline Leloup (costureira), Blanche Lefèvre (lavadeira), Aline Jacquier (encadernadora), Thérèse Collin (sapateira) e Aglaë Jarry. Nessa noite é formalmente constituída a União das Mulheres para a Defesa de Paris e o Cuidado dos Feridos e são estabelecidos os 20 Comités de Distrito.

Três dias depois, os estatutos subscritos pelas «cidadãs delegadas membros do comité central das cidadãs, Adélaïde Valentin, Noémie Colleuille, Marcand, Sophie Graix, Joséphine Pratt, Céline Delvainquier, Aimée Delvainquier, Elisabeth Dmitrieff», todas operárias à excepção de Dmitrieff, são publicados em diversos jornais.

É definido o dever imediato: combater pela «grande causa do povo, pela Revolução», «resistência colectiva de toda a população» para assegurar o triunfo da luta para a «renovação social completa, assegurando o reinado do trabalho e da justiça». Mas sobretudo, se tomarmos em consideração as pronunciações que até aí se reclamavam do feminismo, uma nova e explícita referência à igualdade – quem se aproveita do antagonismo (criado e mantido) entre homem e mulher?

«A Comuna representa o grande princípio proclamando a eliminação de todo o privilégio, de toda a desigualdade – e por isso, deve ter em conta as reclamações justas de toda a população, sem distinção de sexo – distinção criada e mantida pela necessidade de antagonismo sobre o qual se apoiam os privilégios das classes governantes».

O programa da União exige a educação das raparigas e a sua formação profissional, a educação gratuita e laica para todas as crianças. As revolucionárias peticionam à Comuna a criação de orfanatos laicos, de creches para ajudar as mães solteiras a não cair na prostituição, e a substituição das religiosas dos hospitais e das prisões. A prostituição considerada como «forma de exploração comercial de criaturas humanas por outras criaturas humanas» é banida pela Comuna. 

O trabalho das mulheres 

Em França, as mais exploradas dos explorados representavam 33 por cento da população activa, concentradas nas manufacturas têxteis, ao domicílio e nas oficinas, em outras actividades artesanais, como o calçado e a encadernação, e também nas minas ou na construção do caminho-de-ferro, com jornadas de trabalho de 14 horas, ou mais, em condições sub-humanas e com salários de miséria. Uma miséria negra que só a prostituição ocasional poderia atenuar…

O Programa da União destaca o valor social e económico do trabalho das mulheres e a formação de comités locais para organizar o movimento de mulheres na defesa de Paris.

A Comissão Executiva do Comité Central da União foi eleita pelas representantes de cada Distrito, e foram recrutadas mais de mil socorristas (empregadas de ambulância) que ganhavam o mesmo salário e a mesma ração que os homens da Guarda Nacional – salário igual para trabalho igual, o mesmo princípio que fixou o salário nas oficinas municipais e de professoras e professores.

Para as medidas de protecção social e do trabalho das operárias Élisabeth Dmitrieff tem a ajuda do delegado eleito da Comissão do Trabalho e do Comércio da Comuna, Léo Frankel, ourives, sindicalista francês de origem húngara e membro da AIT.

Apoiando-se mutuamente, escrevem o relatório «O trabalho da mulher sendo o mais explorado, a sua reorganização imediata é urgente». Em Maio, a União das Mulheres inicia uma acção de organização do trabalho das mulheres, para retirar «o trabalho do jugo do capital» com a constituição das «associações produtivas livres», a «diminuição das horas de trabalho», cuidando da supressão de toda a concorrência entre os «trabalhadores dos dois sexos» tendo em conta o seu interesse comum.

Ambos consideram que organização de classe das trabalhadoras está ainda numa fase embrionária e dirigem apelos às operárias para a sua sindicalização. 

Nas barricadas contra a invasão 

No dia 20 de Maio, foram afixados os apelos para a «formação definitiva dos sindicatos femininos», a União convida as operárias de todas as corporações para a reunião de constituição dos sindicatos das trabalhadoras. A reunião é marcada para o dia seguinte… mas começam os combates contra as tropas de Versalhes, e Dmitrieff teria de lançar outro apelo: «É preciso reunir todas as mulheres, às barricadas!»

A defesa das barricadas de Clignancourt, de Batignolles, rua Lepic, Racine, École de Médecine, da Place Blanche e de Pigalle, esteve a cargo das mulheres do Comité de Vigilância das Cidadãs, dos Comités de Distrito e do Comité Central da União das Mulheres, entre elas, Anne Poustovoïtova, Béatrix Excoffon, Blanche Lefebvre, Elisabeth Dmitrieff, Louise Michel, Malvina Poulain, Marguerite Diblanc e Nathalie Le Mel.

A 25 de Maio, depois de a Guarda Nacional ter abandonado a barricada da rua Château-d’Eau, um batalhão de 52 mulheres armadas retomou o combate com gritos «Viva a Comuna!». Cercadas e desarmadas foram de imediato fuziladas. A 600 metros, na barricada Folie Méricourt, outras 50 combatentes foram também chacinadas.

O período de 21 a 28 de Maio ficará conhecido pela «semana sangrenta», homens e mulheres, crianças e velhos defendem nas últimas barricadas a bandeira vermelha da Comuna, e só os/as operários/as se mantiveram fiéis até ao fim.

Foi o massacre sistemático dos revolucionários – são mortos mais de 20 mil. Não chegava vencer a insurreição, era preciso castigar e fazer da revolução um banho de sangue. A burguesia europeia aplaude…

Adolphe Thiers, chefe do governo de Versalhes, proclama: «Agora o comunismo está morto para sempre!». Thiers, o carniceiro do povo de Paris, dos combates sangrentos, das execuções sumárias, das prisões arbitrárias, dos processos expeditos de condenação à morte, das deportações… Foram a julgamento cerca de mil mulheres, a maioria foi condenada, mais de 750 eram operárias.

O ódio da burguesia à Comuna de Paris começou no próprio dia da sua proclamação, com toda a artilharia de cúmplices, jornalistas, padres, intelectuais, escritores/as e habituais fazedores de opinião. Os escritores notáveis posicionaram-se todos de forma aberta e virulenta contra a Comuna, à excepção de J. Vallès, A. Rimbaud, P. Verlaine e Villiers de l’Isle Adam. Nos discursos anti-Comuna as metáforas mais usuais aludem à bestialização e à doença – «animais ferozes», «urros selvagens», «epilepsia social», «febre epidémica»… Com imagens essencialistas e patológicas pretenderam destruir o sentido do acontecimento, retirar-lhe o conteúdo ideológico, despolitizá-lo.

E às mulheres, foi reservado um destaque particular: elas foram constantemente enxovalhadas, comparadas a «lobas», «hienas», «fanáticas», «imagem do crime e do vício», «bêbedas, debochadas, viragos, gatunas, de má vida…». As «pétroleuses», mulheres incendiárias, armadas de archote numa mão e de vasilha com petróleo na outra, foi abundantemente publicada na imprensa, uma imagem inventada pela calúnia reacionária que também serviu para esconder o efeito destrutivo das bombas incendiárias do exército de Versalhes, e para justificar o massacre e a condenação de muitas operárias.

Os ensinamentos

Ao primeiro governo operário da História coube o «mérito de ter tomado as primeiras medidas verdadeiramente a favor da emancipação da mulher» (Conferência do PCP «A Emancipação da Mulher no Portugal de Abril», 1986).

O exemplo do primeiro governo operário autenticamente popular foi particularmente valorizado por Marx, Engels e Lénine quanto à questão do Estado. A Comuna provou que «a classe operária não pode simplesmente tomar posse da máquina do Estado [que encontra] montada e pô-la em movimento para os seus objectivos próprios» (K. Marx, F. Engels, Manifesto do Partido Comunista, Prefácio à Edição Alemã, 1972) – é necessário criar um novo tipo de Estado, «transformar os meios de produção, a terra e o trabalho, em instrumentos do trabalho livre e associado».

Lénine refere a falta de uma «organização política séria do proletariado», sem grandes sindicatos ou associações cooperativas, e sobretudo a falta de tempo – a Comuna só teve tempo para pensar na sua própria defesa. Todas as medidas de carácter prático e toda a legislação social da Comuna, corresponderam ao que designou por «programa mínimo do socialismo» (A Comuna de Paris e as Tarefas da Ditadura Democrática, 1905).

Tal como a emancipação da classe operária não poderá ter lugar no quadro do capitalismo (Karl Marx), também «a emancipação da mulher, como a de todo o género humano, só se tornará realidade no dia em que o trabalho se emancipar do capital» (Clara Zetkin).




Fonte: Avante




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