Sobre o conceito de “DEMOCRACIA AVANÇADA” - A propósito do XX Congresso do PCP
Sobre o conceito de “DEMOCRACIA AVANÇADA”
M.E.L. - Fonte: Pelo Socialismo ( Parte )
M.E.L. - Fonte: Pelo Socialismo ( Parte )
"Vulgarmente, o conceito de democracia é empregado para designar uma forma de regime político do sistema capitalista, em que existe o direito de voto, um determinado grau de liberdade de expressão, de organização, de manifestação, mas em que o poder do Estado ao serviço dos monopólios está previamente assegurado – esta é apenas a democracia burguesa, ou a ditadura da burguesia, uma minoria, sobre a maioria dos produtores.A democracia proletária chama-se ditadura do proletariado, isto é, os trabalhadores e os seus aliados exercem o poder através do Estado proletário, governam para a imensa maioria e reprimem os exploradores e opressores da sua classe.Não é no quadro da legalidade determinada pela burguesia que se pode passar de uma para a outra – é necessário o emprego da força organizada da classe operária e dos seus aliados. Por isso, a importância da clarificação do conceito de “democracia avançada”. Se não implica uma mudança da classe no poder, se não implica a modificação das relações de produção na sociedade, só pode ser considerada como reforma do sistema capitalista e não a sua superação.
Lenine refere esta questão do seguinte modo: «A não ser para troçar do senso comum e da história, é claro que não se pode falar de “democracia pura” enquanto existirem classes diferentes, pode-se falar apenas de democracia de classe. […] A “democracia pura” é uma frase mentirosa de liberal que procura enganar os operários. A história conhece a democracia burguesa, que vem substituir o feudalismo, e a democracia proletária, que vem substituir a burguesa»"
1
Antecedentes
A “Democracia Avançada”, como “programa” de um partido comunista, havia sido adotada pelo Partido Comunista Francês, numa Conferência realizada em 5 e 6 de dezembro de 1968 (recorde-se a agitação do maio desse ano, em Paris). Foi o “Manifesto do PCF – Por uma democracia avançada para uma França socialista” 1 , também conhecido por Manifesto de Champigny, local onde se realizou a Conferência. Este documento tem 10 capítulos, com uma introdução inicial:
Introdução;
I – Por uma vasta aliança de todas as camadas sociais vítimas dos monopólios e do seu poder;
II – O que é uma democracia avançada?;
III – O socialismo também para a França:
IV – A passagem ao socialismo;
V – O que é o socialismo?;
VI – O papel dirigente da classe operária;
VII – O Partido Comunista e o seu papel de vanguarda;
VIII – A cooperação dos partidos e formações democráticos na construção do socialismo;
IX – Democracia socialista e defesa do socialismo;
X – O Partido Comunista é o grande partido revolucionário do nosso tempo.
Refere-se na “Nota dos Editores” do sítio pelosocialismo.net, na publicação do
Manifesto de Champigny 2:
«A democracia avançada era concebida como uma formação política e econômica
entre o socialismo e o capitalismo em que a progressiva transformação das
estruturas econômicas pela nacionalização dos setores monopolistas abriria o
caminho ao socialismo sem um confronto revolucionário mais ou menos intenso
entre as principais classes antagônicas. Essa tese correspondia a uma espécie de
ressurgimento da teoria da “transformação pacífica do capitalismo em socialismo”
e da “democracia, criação contínua”, defendida anteriormente por Jean Jaurès e
comum a Bernstein, que Lenine refutou implacavelmente. O Manifesto de
Champigny passa ao lado da teoria marxista-leninista do Estado, não define a sua
natureza na “democracia avançada” – se é burguês ou proletário com os seus
aliados – nem clarifica qual o modo de passagem e qual a natureza das estruturas
políticas que asseguram o domínio das classes exploradoras para as estruturas
politicas que servem a defesa dos interesses das classes e camadas exploradas».
O Manifesto surge na sequência de 2 acordos com o PS francês, concluídos em
dezembro de 1966 e em fevereiro de 1968.
O Manifesto entende que a luta por uma democracia avançada reduziria a força do
capitalismo/monopólios, que seriam obrigados – de forma pacífica, sem reagir – a
ceder/em as suas posições. Isto porque deixariam de poder recorrer (!!?!!) à força 3.
Embora antes tenham admitido que, havendo violência contra o povo se possa
encarar “a passagem ao socialismo por métodos não pacíficos”4, logo acrescentam
que os comunistas franceses orientam a sua atividade para a passagem pacífica ao
socialismo 5. E invocavam as Declarações dos Partidos Comunistas de 1957 e 1960,
posteriores ao XX Congresso do PCUS e à viragem reformista (teórica e prática) que
introduziu no Movimento Comunista Internacional (MCI) 6.
Note-se que, apesar de tudo, o Manifesto exigia o desaparecimento simultâneo da
NATO e do Pacto de Varsóvia e que a França não renovasse os seus compromissos
com a NATO “no prazo posterior a 1969”
7.
2
Adoção da DA como Programa do PCP
O conceito de DA defendido no Programa do PCP não sofreu qualquer alteração
essencial nas alterações de 1992 e 2012: contém cinco componentes ou objetivos
fundamentais (eram 6 em 1988, mas 2 foram fundidos, em 1992); e refere que a luta pela concretização dessas cinco componentes e a
luta com objetivos imediatos “são parte constitutiva da luta pelo socialismo”
8.
Sendo parte constitutiva da luta pelo socialismo – no P. é organicamente apresentada
como uma “etapa” para o socialismo –, poderá concluir-se que a DA não é o
socialismo, a ditadura do proletariado, uma vez que está ausente a necessária
mudança da classe no poder.
De facto, não é possível encontrar em todo o programa da DA uma posição clara
sobre a natureza do Estado onde ele seria realizável: Estado burguês/capitalismo ou
Estado proletário/socialismo.
Na concepção marxista-leninista, não se tratando de socialismo, será,
forçosamente, ou capitalismo/ditadura da burguesia, ou a revolução. Com
efeito, escreveu Lenine: “O grau transitório entre o Estado, órgão de dominação
da classe dos capitalistas, e o Estado, órgão de dominação do proletariado, é
precisamente a revolução, que consiste em derrubar a burguesia e quebrar,
destruir a sua máquina de Estado (…). Que a ditadura da burguesia deve ser
substituída pela ditadura de uma classe, do proletariado, que aos «graus
transitórios» da revolução se seguirão os «graus transitórios» da extinção gradual
do Estado proletário…” (realce nosso) 9.
De outra forma, está a conceber-se um sistema socioeconômico entre o capitalismo e
o socialismo, que não tem nada de a ver com aquela concepção científica. Neste caso,
tratar-se-ia de uma tática de passar para segundo plano a luta pelo socialismo,
tentando alcançar a adesão de massas despolitizadas e/ou anticomunistas com
“perspetivas políticas atraentes”, mas que se sabe serem impossíveis – dito de forma
crua, está a enganar-se os trabalhadores e o povo.
Mas que não é socialismo parece resultar da afirmação de que a DA é uma parte
constitutiva da luta pelo socialismo. Assim, não se defendendo no Programa que a DA
é a revolução, e partindo do princípio de que não se estão a enganar os trabalhadores
e o povo, a DA será para concretizar em capitalismo. Se assim é, algumas questões se
colocam de imediato:
1. É possível em capitalismo – hoje, na sua fase superior, o imperialismo –
alcançar os cinco componentes ou objetivos fundamentais enunciados?
2. Não haverá uma contradição entre uma sociedade capitalista, na sua fase
imperialista, ser “liberta do domínio dos monopólios”, como se propugna no
segundo objetivo fundamental, sem se libertar do capitalismo como sistema de
produção? – e mesmo que fosse possível regredir à época pré-monopolista (uma posição reacionária), a evolução do capitalismo não levaria de novo ao
imperialismo?
3. E libertar o país do domínio dos monopólios não imporia, pelo menos,
defender a saída de Portugal das associações imperialistas e militaristas,
designadamente da UE e da NATO? – no programa da DA não consta
nenhuma destas exigências, apesar da retórica usada em relação a estas duas
organizações imperialistas devesse levar a essa conclusão.
Note-se também que o conceito de democracia não é usado numa perspetiva
marxista-leninista, como uma democracia de classe, antes a referenciando como
tendo um valor intrínseco.
De facto, sublinhemo-lo de novo, o determinante em relação à democracia é saber a
quem essa democracia beneficia – qual é a classe cujo domínio é assegurado pelo
Estado. Esse Estado assegura a manutenção das relações de produção dominantes e é
definido por elas. As expressões, e os respetivos conteúdos, “democracia” e “regime
democrático” não podem, de um ponto de vista marxista-leninista, ser utilizadas de
forma abstrata, sem o seu conteúdo de classe, porque na ideologia burguesa a
“democracia”, que parece ser uma igualdade para todos, é objetivamente o domínio
da maioria explorada por uma minoria exploradora.
A exigência da democracia no fascismo era uma palavra de ordem que apontava para
o derrubamento da ditadura mais feroz do capital, para a conquista das liberdades
burguesas (de expressão, organização, manifestação etc.), que também eram
imprescindíveis para o proletariado desenvolver a sua luta. O fascismo foi derrotado,
e hoje, num quadro mundial extremamente complexo, em que a luta de classes se
encontra agudizada de forma inaudita, a luta do proletariado exige uma definição de
classe do conceito de democracia.
Vulgarmente, o conceito de democracia é empregado para designar uma forma de
regime político do sistema capitalista, em que existe o direito de voto, um
determinado grau de liberdade de expressão, de organização, de manifestação, mas
em que o poder do Estado ao serviço dos monopólios está previamente assegurado –
esta é apenas a democracia burguesa, ou a ditadura da burguesia, uma minoria, sobre
a maioria dos produtores.
A democracia proletária chama-se ditadura do proletariado, isto é, os trabalhadores e
os seus aliados exercem o poder através do Estado proletário, governam para a
imensa maioria e reprimem os exploradores e opressores da sua classe.
Não é no quadro da legalidade determinada pela burguesia que se pode passar de
uma para a outra – é necessário o emprego da força organizada da classe operária e
dos seus aliados. Por isso, a importância da clarificação do conceito de “democracia
avançada”. Se não implica uma mudança da classe no poder, se não implica a
modificação das relações de produção na sociedade, só pode ser considerada como
reforma do sistema capitalista e não a sua superação.
Lenine refere esta questão do seguinte modo: «A não ser para troçar do senso
comum e da história, é claro que não se pode falar de “democracia pura” enquanto
existirem classes diferentes, pode-se falar apenas de democracia de classe. […] A
“democracia pura” é uma frase mentirosa de liberal que procura enganar os
operários. A história conhece a democracia burguesa, que vem substituir o
feudalismo, e a democracia proletária, que vem substituir a burguesa»10.
3
A natureza do Estado
O que se disse antes relativamente à natureza de classe da “democracia”, também se
pode dizer acerca da natureza do Estado. Um dos pontos-chave da caracterização da
“democracia avançada” é precisamente o já referido 2.º ponto: “Um Estado
democrático, representativo, baseado na participação popular, moderno e
eficiente”. O Estado que assim se apresenta fora da existência das classes, fora da
sociedade e acima dela é precisamente a representação burguesa do Estado. O
conceito marxista-leninista de Estado é outro: “O Estado é a organização especial da
força, é a organização da violência para a repressão de uma classe qualquer”
11
.
Esse “Estado” da DA é o Estado burguês, (mais ou menos) democrático, legitimado
pelo sufrágio eleitoral universal, “representativo” – de todas as classes, burguesia e
proletariado, trabalho e capital reunidos no parlamento – que assegura um “regime
de liberdade”, isto é, também a liberdade de explorar o trabalho alheio, “no qual o
povo decida do seu futuro”, tal como tem vindo a acontecer nos regimes
parlamentares burgueses desde que foram instituídos. Deste mesmo “Estado” se diz
ainda que está baseado na “participação popular”, afirmação redundante, já que o
povo tem vindo sempre a participar na “decisão do seu futuro” através do voto. A
“participação popular” não é o poder popular, não é o exercício do poder pelo
povo, em primeiro lugar pela classe operária e seus aliados, com as suas próprias
estruturas.
Logo, este Estado é igualzinho ao Estado burguês que se conhece.
O “Estado democrático, representativo” da “democracia avançada” é um embuste
para os trabalhadores e o povo, porque:
1. Apaga a natureza de classe do Estado e, ao fazê-lo, assume o entendimento
burguês do Estado, aquele que interessa à burguesia para esconder a natureza
exploradora do capitalismo, a luta de classes e a natureza do Estado como
instrumento de repressão das classes dominadas, do “apaziguamento” social;
2. Com este apagamento, esconde que defende o Estado burguês – democrático,
é certo –, mas que inclui a liberdade burguesa da exploração do trabalho pelo
capital;
3. Exclui o Estado proletário, a democracia proletária, do horizonte da luta dos
trabalhadores portugueses, a troco de uma utopia;
4. Apontando o caminho das reformas e do parlamentarismo burguês, não coloca
à classe operária e aos trabalhadores a necessidade de realizar a revolução que
derrubará o Estado burguês e instaurará o Estado proletário, última forma
histórica de Estado, afastando, desta forma, a possibilidade da luta pelo
socialismo.
4
Observações finais
Um dos argumentos utilizados no P. contra quem apresenta críticas ao conceito de
DA é o de que se pretende “queimar etapas”, “querer o socialismo já”, sem ter em
conta as condições objetivas e subjetivas existentes, o que “afasta do Partido
camadas antimonopolistas”. E aparece então o rótulo de “sectário”.
1. Porém, a questão não é a de colocar o socialismo como “objetivo imediato–
socialismo já”, mas sim a de colocar tão simplesmente o socialismo “como
objetivo” – claro que pode sempre haver (e haverá), o afastamento de camadas
antimonopolistas que não entendem que, hoje, os monopólios só serão
vencidos com o derrube do capitalismo e a substituição deste sistema pelo
socialismo. Mas, se não colocarmos o socialismo como objetivo nunca
ganharemos as massas para lutarem por ele.
2. O sectarismo manifesta-se, pelo contrário, na consideração de que as posições
do marxismo-leninismo só podem vingar através de mistificações teóricas que
escondam os verdadeiros objetivos (designadamente, o objetivo último de pôr
fim à exploração do homem pelo homem) ou os atirem para as calendas,
banindo-os do horizonte da luta. Lenine afirma: «É precisamente reformismo
quando o “objetivo final” (ainda que seja relativamente à democracia) é
afastado da agitação»12.
3. Por outro lado, a DA tem quase tantas interpretações ou maneiras de a ver e
entender, como quantas as pessoas com quem se fala sobre ela; mas o mais
importante é esclarecer se é para levar a cabo no sistema capitalista ou no
socialista; se é no primeiro, pode questionar-se tal possibilidade – e tratar-se-ia
sempre de meras reformas do sistema capitalista; se é no segundo, trata-se
de uma utopia ou impossibilidade, porque não há qualquer referência à
mudança do sistema de produção, ao fim das relações de produção capitalistas.
Notas:
1
http://www.aaweb.org/pelosocialismo/index.php?option=com_booklibrary&task=mdownload&id=584&Itemid=17
2 Id., p. 5.
3 “Organizar o combate das massas contra o poder pessoal, por um regime de democracia avançada,
enfraquecer as forças do grande capital na vida nacional, promover um movimento da maioria do
povo a favor do socialismo de maneira que os monopólios sejam obrigados a ceder as suas
posições sem poder recorrer à guerra civil para contrariar a vontade popular é a melhor forma
para abrir a via do socialismo no nosso país.” – Id., p. 19
4 Id., p.18.
5 Id., Ibid.
6 Id., Ibid.
7 Id., p. 13.
8 Livro do XIX Congresso do PCP, ed. Avante!, 2013, p. 283.
9 V. I. Lénine, A Revolução proletária e o Renegado Kautsky, em Obras Escolhidas de V. I. Lénine
(OEL), ed. Avante!, em 3 tomos, tomo 3 (1979), p. 74
10 Id., pp. 14 e 15.
11 V. I. Lénine, O Estado e a Revolução, em Obras Escolhidas de V. I. Lénine, em três tomos, Edições
“Avante!”, 1982, tomo 2, p. 238
12 V. I. Lénine, O Marxismo e o Reformismo, em Obras Escolhidas de V. I. Lénine, em três tomos,
Edições “Avante!”, 1982, tomo 2, p. 116.
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