Exportar a «boa governação»

Exportar a «boa governação»
por João Ferreira
 
 
"Séculos de rapina e de opressão colonial forjaram a desigualdade que caracteriza as relações Norte-Sul. Relações de dominação/dependência, que nem o tempo nem as lutas de libertação nacional lograram, no essencial, alterar. No último quartel do século XX e início deste século, os ajustamentos estruturais impostos pelo FMI e pelo Banco Mundial ao terceiro mundo prolongaram a desigualdade, a dependência e a dominação, agora de cariz neocolonial. São realidades que assentam em continuados processos de extorsão, de que a dívida externa e o seu serviço são um exemplo claro (mas não único). "


Lançada há cerca de um ano e meio, a «Agenda para a Mudança» é um documento estratégico da Comissão Europeia que se propõe enquadrar a abordagem da UE à cooperação para o desenvolvimento.

Numa altura em que se discute um novo pacote financeiro para o período 2014-2020, a cooperação para o desenvolvimento é um dos temas em discussão. Um tema ao qual se justifica dedicar alguma atenção.

Séculos de rapina e de opressão colonial forjaram a desigualdade que caracteriza as relações Norte-Sul. Relações de dominação/dependência, que nem o tempo nem as lutas de libertação nacional lograram, no essencial, alterar. No último quartel do século XX e início deste século, os ajustamentos estruturais impostos pelo FMI e pelo Banco Mundial ao terceiro mundo prolongaram a desigualdade, a dependência e a dominação, agora de cariz neocolonial. São realidades que assentam em continuados processos de extorsão, de que a dívida externa e o seu serviço são um exemplo claro (mas não único).

A UE, tida como o maior bloco «doador» em termos de «ajuda ao desenvolvimento», tem, naturalmente, a sua estratégia própria neste campo. Uma estratégia que agora se procura afinar, em face das novas condições criadas pelo aprofundamento da crise do capitalismo e das alterações e rearrumações na correlação de forças em curso no plano mundial. A afinação da estratégia visa, no essencial, prosseguir, nas novas condições, os mesmos velhos objectivos estratégicos – de dominação e extorsão.

O Tratado de Lisboa fornece um primeiro enquadramento para esta estratégia, ao submeter a dita «política de cooperação para o desenvolvimento» aos «objectivos da política externa da UE».

A «Agenda para a Mudança» afirma o objectivo de assegurar «a boa governação a nível político, económico, social e ambiental» nos países em desenvolvimento, ao qual se deve associar a condicionalidade da ajuda. A composição e o nível da «ajuda ao desenvolvimento» é, assim, condicionada pela UE à «realização de reformas» em cada um dos países destinatários dessa ajuda. Que reformas? À cabeça: a promoção do sector privado e da economia de mercado.

São novos passos na imposição chantagista de modelos no plano da organização económica e social do Estado, procurando forçar o alargamento e consolidação das relações de produção capitalistas e, por essa via, a colonização de mercados, mais espaço para a circulação dos capitais, melhores condições para «disciplinar» o trabalho, lá como cá.

Como habitualmente, o Parlamento Europeu alinha com a Comissão Europeia e advoga várias medidas tendentes a este crescimento do sector privado: a defesa da redução de encargos regulamentares considerados excessivos impostos às empresas – em especial, claro está, às europeias; a defesa de sistemas de direitos fundiários – imprescindíveis a uma futura apropriação privada de terras hoje comunitárias; e as famosas parcerias público-privado.

No capítulo da composição da «ajuda», é anunciada a intenção de aumentar o recurso a instrumentos financeiros ditos inovadores. Que «instrumentos inovadores» são estes? Para além da combinação de subvenções com empréstimos (susceptíveis de aumentar e eternizar a dívida), as já mencionadas parcerias público-privado e as soluções financeiras «criativas» – novos «veículos financeiros» capazes de insuflar novas bolhas especulativas nos mercados financeiros.

O destino da «ajuda» decide-o o «doador». O financiamento de projectos em áreas como a «prevenção de conflitos, a segurança, as alterações climáticas, a segurança alimentar, o acesso à água e ao saneamento, a segurança energética» está entre as prioridades definidas.

 
Há não muito tempo, uma delegação oficial do Parlamento Europeu deslocou-se ao Burkina Faso. Uma das várias visitas realizadas foi a um moderno sistema de tratamento e abastecimento de água nas imediações de Ougadougou, a capital do país. Projecto, apoiado e financiado pela UE, foi apresentado como um exemplo do caminho a seguir; um exemplo do sucesso das sinergias possibilitadas pelas parcerias público-privado. Concebido e explorado por uma empresa privada (por sinal, uma multinacional europeia do ramo), o projecto foi financiado com fundos públicos da ajuda ao desenvolvimento. A elogiada qualidade técnica e relevância social chocavam porém com um pequeno detalhe: a lógica de remuneração do capital privado determinou preços de exploração pura e simplesmente incomportáveis para a generalidade da população local, deixando de fora do sistema o grosso dos milhares de utilizadores potenciais, que continuaram a ir buscar a água aos poços de antes...
 
 
 
Fonte: Avante
 
 
 

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