União Europeia - Uma ameaça à democracia

A bandeira da UE mostrada em manifestação em Atenas
União Europeia - Uma ameaça à democracia


Uma parte significativa das elites federalistas que hoje, face à realidade, é obrigada a distanciar-se da euforia com que saudou o euro, o Tratado de Lisboa e outras etapas do processo de integração da União Europeia (UE), continua a defender que a solução para a actual crise política, económica e social passa por «mais Europa!». Critica, e com a razão, a chanceler da Alemanha como ditadora pelas suas ameaças e actos contra a soberania dos povos, mas repete as palavras de ordem que conduzem exactamente àquilo que a Alemanha pretende, o reforço do seu poder de intervenção na orientação política dos governos dos outros Estados. «Mais Europa!» significa mais aprofundamento do federalismo, mais hegemonia alemã, mais retrocesso social e ataques à democracia, mais militarismo. Na verdade, a União Europeia, à medida que prossegue o seu aprofundamento, transforma-se cada vez mais numa verdadeira ameaça contra a soberania da maior parte dos Estados-membros e num perigo mortal para as conquistas democráticas e sociais obtidas pela luta dos trabalhadores e dos povos após a derrota do nazi-fascismo.


Quando o chefe do Departamento de Economia do Deutsche Bank, Norbert Walter, afirmou, em 2005, que «depois de se ter superado o socialismo na RDA» seria necessário «superar o socialismo alemão ocidental»
(1) ninguém imaginava que aquele membro destacado do Comité Central dos Católicos Alemães, autor de uma série de livros neoliberais, tais como «Menos Estado, mais mercado», «O Euro no caminho do futuro», não estava só a ameaçar os trabalhadores do seu país mas os povos de toda a UE. Poucos meses antes, o presidente da Federação da Indústria Alemã (BDI), Michael Rogowski, esclarecera: «Ao abrirmos o muro, a 09.11.1989, pusemos em posição os aparelhos de demolição contra o Estado social». Às medidas Hartz IV, «seguir-se-ão Hartz V até VIII. É uma ofensiva de classe e é bom que praticamente não sintamos o adversário do outro lado.» (2) Nesta altura, já o «camarada dos patrões», o chanceler social-democrata Gerard Schröder, tinha estendido a toda a Alemanha a contra-revolução social com base na agenda 2010 e assinado em Londres a chamada declaração Blair-Schröder, essa célebre cartilha dos ditos «modernizadores» e da «terceira via», ou «novo centro» que aconselhava a confiança total nos mercados para a resolução de todos os problemas económicos e sociais. Hoje, na Alemanha, a pobreza não pára de aumentar. Nos últimos seis anos, 700 000 agregados familiares tiveram de declarar insolvência privada.

O desemprego baixou mas sobretudo nas estatísticas, uma vez que muitos dos que não trabalham foram transferidos para as listas da assistência social, ou mesmo trabalhando não ganham o suficiente para sobreviver. Os contractos «atípicos», isto é, as relações de trabalho instáveis, sem quaisquer direitos e que envolvem o trabalho temporário, ou a termo, o trabalho parcial, o trabalho mínimo e a mão-de-obra alugada e subcontratada subiram na Alemanha para 23 milhões, perfazendo hoje mais de metade da situação laboral da população activa, a qual se situa nos 43,3 milhões.
(3) Só os rendimentos dos ricos é que continuam a subir.

Esta ofensiva brutal no plano social é acompanhada por um ataque cerrado contra a soberania dos povos e os princípios da democracia. Os adeptos do federalismo procuram esconder que sem respeito pela soberania de cada Estado e pela vontade de decisão de cada povo não há democracia possível. Um Estado, ou um grupo de Estados, não tem o direito de impor aos outros a sua vontade e interesses só porque demográfica, económica ou militarmente é mais forte. Só uma concepção imperialista do poder que não respeite os princípios do direito internacional e constitucional pode reger-se por tal comportamento. Infelizmente os tratados europeus, em particular o Tratado de Lisboa, ao romperem com o princípio da unanimidade nas decisões do Conselho Europeu, introduzindo a fraude das maiorias qualificadas, foram concebidos para garantir o poder das grandes potências como a Alemanha e a França. É essa a razão porque Berlim se permite ameaçar os Estados que não se submetam com a perda da soberania.

Mas a senhora Merkel é apenas um altifalante e um instrumento do grande capital. Num documento publicado em Setembro de 2011, face ao fiasco das medidas recessivas aplicadas à Grécia, a Federação da Indústria Alemã (BDI) afirma que «as dívidas e a crise de confiança na Europa são também uma oportunidade para lançar as linhas orientadoras» que conduzirão à «União Política da Europa». E prossegue: «Um novo passo em frente com um claro objectivo a longo prazo e com elementos e instrumentos concertados só é possível de atingir com um novo tratado sobre o euro».
(4) E esta poderosa organização do patronato germânico conclui reafirmando que: «A indústria alemã apoia inteiramente a política que visa a constitucionalização da união monetária». Ao exigirem que os Estados da zona euro introduzam nas respectivas Constituições limites para a dívida, ainda por cima impossíveis de cumprir, Ângela Merkel e Sarkozy chamaram a si a tarefa, à margem da vontade dos povos, da imposição antidemocrática dos interesses do grande capital dos seus países.

O comissário alemão para a energia em Bruxelas, Günther Oettinger, já sonha com o alargamento do território da Alemanha à Grécia e a invasão daquele país soberano por milhares de funcionários alemães ao serviço dos planos de rapina do grande capital, invasão disfarçada de ajuda inteligente: «Quando nós tomámos conta da RDA na forma de novos Estados federados, enviámos para lá milhares de funcionários inteligentes», avançou Oettinger como sugestão para a Grécia numa mesa-redonda na TV alemã.
(5) Na Alemanha, o grande capital e os seu agentes já vêem a multiplicidade de pequenos Estados da UE como uma reserva de novas anexações e aquisições territoriais.

Aliás, convém não esquecer que todo o processo de integração da UE tem fugido da democracia como o diabo da cruz. Quantas decisões importantes foram tomadas no silêncio dos gabinetes, proibindo-se referendos e consultas populares? Quantos processos eleitorais em que os eleitores votaram contra as propostas da UE foram repetidos até o resultado bater certo com os objectivos desejados? Sem esquecer que o fiasco da chamada «Constituição Europeia» só pôde ser ultrapassado, fraudulentamente, pelo Tratado de Lisboa, com a proibição expressa pela chanceler alemã ao primeiro-ministro português, José Sócrates, de realizar o referendo ao Tratado, referendo que Sócrates prometera durante a campanha eleitoral e na sua tomada de posse. A confissão do antigo chanceler Helmut Köhl nos 50 anos da Fundação Adenauer em Berlim, de que não foi possível submeter o euro a referendo porque na Alemanha dois terços dos eleitores votariam contra, é a maior declaração de falência democrática daqueles que hoje constrangem os povos a aceitarem a chantagem da ditadura do euro.

A governação económica não tem outra finalidade que não seja impor a toda a UE as medidas de miséria Hartz IV e entregar ao capital das grandes potências imperialistas o melhor da economia dos países submetidos. É um verdadeiro processo de ocupação e domínio, mesmo se não utiliza as colunas militares e as esquadras de aviões que noutros momentos da história da Europa executavam o saque dos países ocupados. O principal objectivo do salto federal que se prepara não é só a redução do défice mas, com o pretexto da diminuição da dívida, fazer pagar à esmagadora maioria do povo os efeitos da crise e obter assim uma alteração fundamental da distribuição da riqueza produzida a favor do grande capital e em prejuízo dos assalariados. O preço da mercadoria trabalho terá de baixar para um nível insuportável para quem trabalha em todos os Estados na UE. É uma mentalidade de campo de concentração e de trabalho escravo que se pretende legalizar com a palavra de ordem «mais Europa».

A entrada para o grupo do euro, que em Portugal foi apresentada pelos círculos do poder afectos ao grande capital como a adesão ao pelotão da frente, transformou-se numa autêntica marcha da miséria e num cativeiro. Ao abdicarem da sua autonomia monetária em favor do Banco Central Europeu (BCE), os pequenos Estados caíram na ratoeira, ficando à mercê das grandes potências europeias, sustentáculo dos grandes bancos de quem recebem sempre crédito, nunca tendo de suportar qualquer limitação imposta de fora aos seus orçamentos. Na prática, cabe aos Estados finceiramente mais fortes, e em primeiro lugar à Alemanha, decidir se esses membros recebem ou não crédito e sob que condições, apesar de formalmente tais Estados se encontrarem ligados a uma entidade dita «independente», o BCE, e não possuírem nenhum contracto com a Alemanha, que é quem de facto decide. Ainda recentemente pôde ver-se na TV o ministro das Finanças português, Vítor Gaspar, a mendigar alívios financeiros junto do ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäubler.

Quanto mais o processo de integração da UE avança mais os povos atingidos se apercebem do carácter subversivo e antidemocrático desta construção supra-nacional e da existência de um poder ilegítimo destinado a alimentar uma situação de golpe de Estado permanente contra os próprios princípios do parlamentarismo. Se até há pouco tempo Berlim se limitava a dar ordens directamente aos primeiros-ministros dos Estados-membros, chamando-os à chancelaria, hoje este processo já se estende a todos os orgãos de soberania, aos partidos políticos e sindicatos capitulacionistas dos Estados afectados. Como assistimos na Grécia e na Itália, quando a França e a Alemanha pressionaram os respectivos parlamentos para substituírem governos eleitos pelos chamados governos de «especialistas» apoiados pela oposição, está em marcha um processo de suspensão do direito dos povos de decidir através do sufrágio os destinos dos seus países. As troikas e os memorandos assinados por todos os partidos fiéis ao poder do grande capital visam a liquidação do sistema partidário pluralista, a prévia retirada aos membros dos partidos do direito estatutário de definirem a orientação política das suas organizações partidárias, conduzindo à constituição, de facto, de um verdadeiro partido único europeu em todos os Estados-membros da UE, partido controlado pelas potências estrangeiras. É uma situação muito perigosa, uma vez que as elites federalistas parecem continuar anestesiadas para a defesa dos princípios do pluralismo político inscritos nas respectivas Constituições nacionais e viradas para uma solução do tipo «mais Europa», que é aquela que mais interessa ao grande capital. Como noutros momentos da história terão de ser os povos a defender e a repor, pela luta, a legalidade democrática.

No célebre comício eleitoral da chamada «Europa connosco», que reuniu no Porto a fina flor da social-democracia europeia, Mário Soares, para ganhar as eleições, ainda afirmava que o Partido Socialista era contra a «Europa dos trusts» e pela «Europa dos trabalhadores». Dizia ser contra «a aproximação de Portugal às Comunidades Europeias numa perspectiva puramente capitalista» que «não correspondia aos interesses do povo português» e se afastava «dos imperativos de uma verdadeira independência nacional condicionando a transformção da sociedade portuguesa a caminho do socialismo». Mas este palavreado, não impediu o dirigente socialista e o seu partido, uma vez no governo, de se transformarem em aplicados construtores da Europa dos monopólios e ardentes coveiros da soberania nacional. Hoje, é fácil de verificar como o PCP, pela voz de Álvaro Cunhal, tinha plena razão quando desde o início avisou: «Com estruturas federativas e um governo central de facto, com políticas comuns impostas pelos países mais desenvolvidos e poderosos, com a transformação dos países menos desenvolvidos em países periféricos sem política própria, com a aceitação passiva e submissa a uma NATO autónoma comandada pelos Estados Unidos e arrastando os povos para guerras criminosas – esta nova Europa abafa e liquida a soberania dos Estados menos desenvolvidos, não serve os interesses dos povos e das nações, não serve os interesses do povo e da nação portuguesa».
(6)


Notas
1) Citado na ARD, Tageschau, 08.02.2005.
2) Ein neuer Vertrag für den Euro.12 teses de uma perspectiva industrial. BDI, 7 de Setembro de 2011. Teses 11 e 12.
3) DIW – Instituto Alemão para a Investigação Económica.
4) No canal TV Phoenix, 16.12.2004.
5) Na ARD em Maybrit Illner, 01.03.2012.
6) ÁlvaroCunhal, A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril, 1999, p. 321.



Texto original publicado na revista O Militante- Portugal Nº 318 - Mai/Jun 2012 • Internacional 


O Mafarrico Vermelho   

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