Pretty Woman - A grave questão da prostituição

Pretty Woman - A grave questão da prostituição
Por Odete Santos


Ele há temas que nos fazem vir à memória um poema pessimista de Jorge de Sena:

Neste vil mundo que nos coube em sorte/por culpa dos avós e de nós mesmos tão ocupados em esperanças de salvá-lo...

E se há temas que nos fazem dizer que o mundo está às avessas, um desses temas é sem dúvida nenhuma «a prostituição».

Com a ajuda da indústria cinematográfica cor de rosa, através do filme Pretty Woman
(1), somos levados mesmo a pensar que a prostituição é uma coisa bela, romântica... E viva a liberdade de a mulher se prostituir pois que no final ela transforma-se numa nova cinderela made in mundialização neoliberal.

Em nome da liberdade

De facto, os proxenetas, hoje considerados homens de negócios, aprenderam depressa o vocabulário neoliberal e falam do direito das mulheres a venderem o seu corpo pondo-o ao serviço do prazer dos homens.

Mas o corpo do ser humano não está à venda, não pode ser comercializado. O próprio corpo humano, nos diferentes estádios da sua constituição e do seu desenvolvimento não pode ser patenteado para depois ser objecto de qualquer negócio.

Com efeito, numa matéria relacionada com os direitos humanos das mulheres, é necessário que não nos deixemos embalar por esta linguagem pretensamente a favor da mulher e dos seus direitos.

Dizem-nos que para além da prostituição forçada haverá uma prostituição voluntária escolhida por mulheres maiores que decidiram livremente colocar no comércio jurídico o seu corpo e que terão direito a fazer do seu corpo aquilo que querem.

Lamenta-se que mulheres como Elisabete Badinter (filósofa francesa) tenham perfilhado esta ideia que é tão errónea como a afirmação de que a prostituição é a mais velha profissão do mundo.

Tirando casos verdadeiramente excepcionais como os retratados no filme Belle de Jour de Buñuel
(2), na prostituição, dita voluntária, há sempre o aproveitamento de qualquer situação de vulnerabilidade da mulher. Assim, não obstante o facto de o documento final da Conferência de Pequim condenar expressamente a prostituição forçada, a verdade é que a Convenção sobre o crime transnacional organizado e o seu Protocolo adicional relativo ao tráfico de mulheres e de crianças, assinada em Palermo no ano 2000, não adopta aquele termo e expressamente refere não ser aplicada ao tráfico de mulheres o consentimento para eximir da responsabilidade penal os autores do crime, e assinala para a tipificação do crime a existência de qualquer espécie de vulnerabilidade.

Aliás já a Convenção assinada em Nova York (Lake Sucess) em 21 de Março de 1950, na sequência de várias outras convenções da Sociedade das Nações, acordava em punir quem induzia ou desencaminhava para fins de prostituição, outra pessoa, ainda que com seu consentimento; e quem explorasse a prostituição de outra pessoa, ainda que com seu consentimento.

Mais acordaram as partes subscritoras da Convenção em que fosse punida toda a pessoa que mantivesse, dirigisse ou, conscientemente, financiasse uma casa de prostituição ou contribuísse para esse financiamento, ou ainda quem conscientemente desse, ou tomasse de aluguer, total ou parcialmente, um imóvel ou outro local, para fins de prostituição de outrem.

Mais se obrigavam as partes que ratificassem a Convenção a punir qualquer tentativa de tráfico ou todos os actos preparatórios do mesmo e a abolir toda a lei, regulamento e prática administrativa que obriguem a inscrever-se em registos especiais, possuir documentos especiais ou conformar-se a condições excepcionais de vigilância ou de notificação, as pessoas que se entregam ou que supõem entregar-se à prostituição.

Trabalhadoras de sexo?

Foi possível chegar à Convenção de 1950 na sequência de campanhas abolicionistas que propugnavam pela descriminalização da prostituição e pela punição dos que se aproveitavam da prostituição de outrem (os proxenetas). E também foi possível chegar aí porque dois anos antes tinha sido aprovada a Declaração dos Direitos do Homem. Em maré de garantias para o ser humano, é óbvia a solução de reprimir o proxenetismo, considerando as prostitutas vítimas de exploração.

Hoje, no entanto, os tempos são outros. São tempo de perda de direitos e de graves ameaças à dignidade do ser humano.

Não admira assim que estejamos hoje em plena campanha para que a prostituição seja regulamentada.

Fala-se hoje das vítimas de prostituição como se fossem «trabalhadoras do sexo», e dos proxenetas como empresários e homens de negócios.

Mas as actividades sexuais jamais poderão ser consideradas como um trabalho.

O trabalho na sua origem tornou possível a transformação de um cérebro de macaco num cérebro humano.

O trabalho explica a própria posição vertical do ser humano, passo decisivo para a passagem do macaco a homem.

O trabalho é que tornou possível o desenvolvimento da sociedade.

«E que encontramos como diferença caractertística entre o agrupamento de macacos e a sociedade humana? O Trabalho.»

(…) «O desenvolvimento do trabalho contribuiu necessariamente para fortalecer os laços entre os membros da sociedade multiplicando os casos de assistência mútua, a cooperação comum e tornando mais claro em cada indivíduo a consciência da utilidade desta cooperação».
(3)

Ora, não se reconhecem quaisquer destas características na actividade exercida pelas vítimas da prostituição.

O que se reconhece e explica a tal nova forma de encarar a prostituição é a mercantilização das relações sociais, fruto do neoliberalimo.

Como diz Richard Poulin, professor de Sociologia da Universidade de Ottava, a vitória do neoliberalismo nos anos 80 permitiu uma aceleração da monetarização das relações sociais que se traduziu num aumento considerável das iudústrias do sexo e pela sua legitimidade acrescida.

E chega-se mesmo ao desplante de nos Estados do Sul a prostituição fazer parte de estratégias de desenvolvimento dos países.

E até para o pagamento da dívida de Estados da Ásia e da África, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial encorajam esses Estados a desenvolverem indústrias de «divertimento», sacrificando assim as mulheres.

Prostituição é violência

A situação é muito preocupante. Porque em torno da prostituição floresce o crime organizado, o tráfico de seres humanos, os crimes muito violentos como homicídios em série, a corrupção.

A OIT avalia em 2,45 milhões as pessoas que são vítimas de tráfico para fins de exploração sexual.

Nos Países Baixos, 80% das pessoas que se prostituem são de origem estrangeira, 70% das quais são indocumentadas.

Sabe-se, pelo exemplo holandês, que a regulamentação da prostituição não faz cessar a prostituição clandestina e faz aumentar a própria prostituição infantil.

A mairie de Amsterdão acabou por fechar a sua zona RED LIGHT porque, segundo Karina Schaapman, ex-prostituta e conselheira municipal, a situação tornou-se incontrolável.

Refúgio para traficantes de seres humanos, as zonas de prostituição na Holanda acabaram por influenciar o aumento da prostituição infantil.

Segundo a Organização dos Direitos da Criança sedeada em Amesterdão, as crianças que se prostituíam passaram de 4000, em 1996, para 15 000, em 2001.

O calvário das mulheres exploradas sexualmente está bem patente no Acórdão proferido pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no processo Ransev contra a Rússia e o Chipre em 7 de Janeiro de 2010.

Tratou-se de uma jovem russa que não querendo continuar a trabalhar num cabaret em Chipre, depois de abandonar esse cabaret, para o qual tinha sido contratada como «artista», foi entregue pela polícia ao dono desse cabaret e encontraria a morte, em circunstâncias não apuradas devidamente pela polícia cipriota, precipitando-se no solo em queda a partir de um 5.º andar.

A prostituição é de facto uma actividade de grande risco.

E nela encontramos mesmo os serial killers, alguns dos quais ficaram célebres por matarem mulheres que, inclusivamente, trabalhavam em bordéis.

Nos Países Baixos foram assassinadas 50 mulheres entre 1992 e 2004 nos bordéis existente.

Não se compreende assim a decisão, no ano 2010, da Juíza Himel do Supremo Tribunal de Ontário ao invalidar algumas das disposições legais relativas à prostituição com o fundamento de que violavam a Carta Canadiana dos Direitos e Liberdades. A Juíza entendeu que a proibição dos bordéis e o sistema da comunicação usado pelas prostitutas, nos passeios, atentavam contra a segurança e punham em risco a vida das prostitutas.

Mas o que verdadeiramente põe em risco a vida das mulheres e das jovens são os proxenetas que contra elas usam de uma extrema violência para as manterem inteiramente submissas.

Aliás, dois dos três autores do processo decidido pela Juíza Himel eram proxenetas.

As vítimas

A prostituição não é a mais velha profissão do mundo. Não há nenhum facto histórico que permita tal conclusão.

E não pode considerar-se profissão ser uma escrava dos tempos modernos. Seguramente que haverá outras formas de garantir direitos. Desde logo pelo difícil caminho da reinserção social. Mas também encontrando outras respostas como existem no Canadá em que os direitos sociais estão relacionados com a cidadania e com o local de residência e não com o emprego.

Não é legalizando a expressão mais violenta do sistema patriarcal (mas talvez, quem sabe, punindo os clientes como na Suécia) que conseguiremos a igualdade, o fim das discriminações, enfim, aquilo que na Suécia se chama «A Paz das Mulheres».


Notas
(1) Título de um filme muito romântico sobre uma prostituta, protagonizado por Richard Gere e por Julia Roberts.
(2) A Belle de Jour é uma mulher da alta burguesia que se prostitui buscando apenas o prazer devido a uma errada formação da sua sexualidade.
(3) O papel do trabalho na transformação do macaco em homem, extraído de A Dialéctica da Natureza e da Origem da Família da Propriedade Privada e do Espado, de Engels, 1876.



Texto original na revista O Militante Nº 318 - Mai/Jun 2012 • Tema    


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