Dois negros na América

Dois negros na América
Por: Correia da Fonseca
Fonte: ODiario



A recente execução de Troy Davis veio recolocar as dúvidas mais do que justificadas que existiam acerca do processo que o condenou, e da propensão racista norte-americana para ver em cada negro um criminoso. Para um olhar lúcido sobre os Estados Unidos convém que não nos deixemos iludir pelo facto de há três anos ter sido eleito um afro-americano para a Casa Branca. Bem pelo contrário, será de admitir que essa eleição, que teve alguma coisa de surpreendente, pode ter sido «consentida» pelas forças que têm efectivo poder para que com ela se obtivesse um certo efeito de camuflagem, digamos assim.
 
 
1. Como decerto a quase totalidade dos portugueses, eu não sabia nada acerca de um negro norte-americano chamado Troy Davis. Até que há pouco mais de uma semana a televisão me ensinou que Troy era um afro-americano que há vinte e dois anos, era ele então um jovem de vinte anos de idade, foi acusado de matar a tiro um polícia e por esse crime, sempre por ele negado, foi condenado à morte; que sobre essa condenação sofreu a pena adicional de vinte e dois anos de prisão e de decerto terrível angústia; que foi finalmente executado por injecção letal no estado sulista da Geórgia. Mais soube, sempre graças à TV, que a condenação resultou exclusivamente do crédito atribuído pelo júri a nove testemunhos, sete dos quais foram posteriormente alterados; que o júri foi acusado de ser racista e de ter proferido a condenação em consequência das suas convicções racistas; que o governador (republicano) da Geórgia também tem idêntica reputação e que o seu estado tem o recorde circunstancial do maior número de execuções. A televisão também se referiu aos diversos pedidos de revisão do processo que foram rejeitados em diversas instâncias e dos igualmente desatendidos apelos de diversas figuras destacadas de todo o mundo, incluindo, se os meus ouvidos não me enganaram, de Bento é XVI.



2. Confesso não estar certo de ter sido também a TV, ou qualquer outro meio de informação, ou até a minha própria cabeça eventualmente propensa a pensar autonomamente, que me convenceu de que Troy Davis tinha de morrer não porque certificadamente assassinara um polícia branco mas sim porque era negro e, mesmo nos Estados Unidos actuais, sobretudo em certos dos seus cinquenta estados, em caso de dúvida a presunção é de culpabilidade se o réu for «preto». A triste verdade é que a suposta eliminação do racismo na «maior democracia do mundo» é ainda mais um mito ou um projecto do que uma realidade a toda a prova, e a mesma televisão no-lo tem vindo a recordar com alguns documentários transmitidos a desoras ou em canais pouco frequentados, designadamente alguns que se têm ocupado do Tea Party e do que esse movimento traz no seu ventre. E para um olhar lúcido sobre os Estados Unidos convém que não nos deixemos iludir pelo facto de há três anos ter sido eleito um afro-americano para a Casa Branca. Bem pelo contrário, será de admitir que essa eleição, que teve alguma coisa de surpreendente, pode ter sido «consentida» pelas forças que têm efectivo poder para que com ela se obtivesse um certo efeito de camuflagem, digamos assim.



3. Aliás, o risco que tais forças terão corrido, se algum risco correram, foi mínimo: a questão é que o efectivo poder do presidente dos Estados Unidos é muito menor do que poderá supor-se, mais aparente que real, como de resto os factos havidos nestes três anos de Administração Obama têm vindo a evidenciar. Seja ou não Barack Obama um homem menos à direita do que os seus antecessores, o facto é que tudo o que de relevante tem prometido ou deixado entrever como intenção sua tem sido desmentido pelos factos, o que já o coloca na situação de mentiroso habitual em matérias gravíssimas, desde o encerramento do campo prisional em Guantámano até ao agora recusado reconhecimento da Palestina como estado independente.

Esse caudal de concretos desmentidos às intenções proclamadas já se mostrou suficiente para liquidar a sua reputação como figura credível em matéria de política externa, e no plano interno a sua capitulação ainda recente perante as pressões republicanas só pode tê-lo desacreditado. Em resumo: Obama parece estar maduro para perder a reeleição no próximo ano.

Mas talvez fosse útil aos seus adversários lembrar que Barack Obama é um «preto» e que o «pretos» são mesmo para liquidar sem contemplações de qualquer ordem. Para isso, a execução de um negro de culpabilidade longe de estar provada, muito antes pelo contrário, mas comprovadamente negro, pode ter sido encarada como vantajosa. É que o quadriénio presidencial de Obama pode funcionar como suposta demonstração de que, também na presidência dos Estados Unidos, os negros não são de fiar nem são competentes e, nessa medida, funcionar como «vacina» para o futuro. Porque não integro o Tea Party nem sou seu simpatizante, não posso garantir que um projecto destes esteja nas intenções da direita norte-americana em aparente ascensão. Mas que parece poder estar, parece. E talvez não seja tempo perdido admitir essa hipótese para bom entendimento dos Estados Unidos actuais e imediatamente futuros.

O Mafarrico Vermelho

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