DE VANGUARDA ARTÍSTICA VIVA DE SEU TEMPO A HOJE “VIVER SEM RAZÃO”



ENTREVISTA DE GERALDO VANDRÉ A GLOBO NEWS

DE VANGUARDA ARTÍSTICA VIVA DE SEU TEMPO A HOJE “VIVER SEM RAZÃO”


Geraldo Vandré, um dos compositores mais emblemáticos e geniais oriundo de uma geração de artistas talentosos da MPB na década de 60 do século passado, ao completar 75 anos de idade, após longos 37 anos de um longo silêncio acerca do que realmente teria acontecido com ele, concedeu uma entrevista para a TV a cabo Globo News. Mas qual o interesse da organização dos Marinhos em mostrar o célebre ícone da resistência cultural do pós-golpe militar de 1964, anunciando em tom de grande sensacionalismo, “Geraldo Vandré quebra o silêncio em entrevista exclusiva”?

A Globo News ordena que o entrevistador (Geneton Morais) centrasse suas perguntas em apenas dois pontos básicos, as músicas “Disparada” e “Pra não dizer que não falei das flores”, Geneton insiste em pedir explicações do porquê destas canções , como se ambas fossem as únicas “obras-primas” criadas por Vandré. No entanto, a obra do genial Vandré, hoje reduzido a uma sombra do seu próprio passado é muito mais vasta e mais direta nas palavras, como diz esta canção chamada “Cantiga Brava”: “O terreiro lá de casa/ Não se varre com vassoura/ Varre com ponta de lança/ E bala de metralhadora”. Não, isto não interessa para os barões da comunicação no Brasil. O objetivo traçado na pauta era demonstrar como um agitador cultural, considerado antes como “subversivo”, foi esmagado mentalmente pelo regime militar e hoje se dedica exclusivamente a lançar loas à Força Aérea Brasileira. Isto, às vésperas das eleições presidenciais, não foi mera casualidade. Vejamos quem foi e qual significado da obra de Vandré dentro da história recente do Brasil.

UMA OBRA EM CONEXÃO COM A EBULIÇÃO SOCIAL/CULTURAL DOS ANOS 60

A década de 60 foi profundamente marcada pela Revolução Cubana deflagrada em pleno “quintal” do imperialismo ianque, pela Revolução Cultural na China, o Maio Francês em 1968. Ecos que se manifestaram com força no Brasil antes e após o golpe militar de 1964. A inquietação das ruas encontrava expressão nas artes: o teatro de José Celso Martinez (“Roda Viva” de Chico Buarque), o Cinema Novo de Glauber Rocha (“Dragão da maldade contra o Santo Guerreiro”), o periódico “O Sol” no jornalismo, só para citar uns poucos exemplos.

Neste contexto, a carreira musical de Vandré foi curta, mas incisiva, tornando-se conhecido do grande público após os festivais promovidos por emissoras de televisão. Fora influenciado pela Bossa Nova, mas não demorou muito para criar um estilo próprio, fundindo dialeticamente jazz/bossa/baião. Em 1966 ele ganhara o da Excelsior com a música “Porta-estandarte” e o da Record com “Disparada”. Poucos sabem que foi Vandré o primeiro a cantar em festival uma música do novato Chico Buarque em 1965 (“Sonho de um Carnaval”). Em companhia de Carlos Lyra, ajudou a criar os CPC (Centro Popular de Cultura da UNE). Foi um dos pioneiros na divulgação da importante obra de Luiz Gonzaga em todo o Brasil: em seu segundo disco, “Hora de lutar” (1965) cantou “Asa Branca” numa releitura bem original, guerreira.

Em meados de 1968, quando a agitação política e cultural evoluía rapidamente no país, Vandré passa a ser o ícone da resistência às arbitrariedades provocadas pelo regime militar, brota a canção “Pra não dizer que não falei das flores” com o “Quarteto Livre”, formado por Nana Vasconcelos, Franklin, Nelson Ângelo e Geraldo Azevedo, no festival Internacional da Canção promovido pela Rede Globo. Os festivais foram campos férteis para o sentimento de revolta da juventude oprimida. Os músicos atuavam como porta-vozes da angustia e da frustração da população. Ou seja, estes festivais apresentavam uma questão mais de fundo do que a aparência de uma simples competição. Nas ruas a cada dia crescia a insatisfação com o regime.

PARA OS MILITARES ERA NECESSÁRIO DESTRUIR AS REFERÊNCIAS POLITICO-CULTURAIS DAS MASSAS

No dia 13 de dezembro de 1968 é instaurado o AI-5. O regime militar recrudesce a repressão política sobre o movimento de massas, cujas prisões, torturas e assassinatos de militantes estavam a serviço da acumulação capitalista de uma burguesia associada ao imperialismo ianque. O parque industrial nacional foi subordinado aos monopólios imperialistas e sua economia de rapina voltada para o mercado externo. A cultura, como expressão da superestrutura econômica, deveria ser “substituída” por uma outra inofensiva para o regime. Despontava neste sentido, o fenômeno vazio da “Jovem Guarda” e sucessos ufanistas do tipo “País Tropical” de Jorge Ben. Precisamente por isso, artistas e intelectuais que estavam em consonância com a efervescência social vigente à época foram perseguidos, censurados, muitos torturados e expulsos do país.

Vandré encaixava-se perfeitamente neste “estigma” de artista engajado, porta-voz dos anseios das massas oprimidas. Para os militares, deveria sofrer uma punição exemplar. Conheciam, através dos “serviços de inteligência”, as fraquezas do gênio da música popular. Tinha uma estrutura psicológica bastante frágil e vulnerável, mesmo assim foi obrigado a exilar-se no exterior após o AI-5.

Ao receber ameaças, ser perseguido política e ideologicamente, preso e torturado (senão física, mas psicologicamente), não conseguiu suportar uma realidade totalmente adversa de isolamento social. Em sua obra revelava um sonho, ser um “guerrilheiro”. Em “Terra plana” diz: “Se um dia eu lhe enfrentar/Não se assuste capitão/Só atiro pra matar/E nunca maltrato não/Na frente da minha mira/Não há dor nem solidão”. Atordoado pela solidão, os militares sabendo desta situação dramática “acolheram” o frágil Vandré em um manicômio em 1973. Forçaram-no a declarar em uma entrevista “editada” veiculada no Jornal Nacional em agosto de 1973 em que renegava seu passado e que a partir deste momento comporá apenas canções de amor. Aqui sofre toda sorte de torturas psicológicas possíveis. Acaba destroçado, para “viver sem razão”.

Artigos divulgados pela Internet afirmam que Vandré não fora torturado, o que é no mínimo uma tremenda ingenuidade, pois é conhecido o papel eminentemente criminoso das FFAA no que tange à tortura. Ele foi, antes de tudo, a expressão mais cabal daquilo que representou a tortura no Brasil: a tentativa do regime político de quebrar forças militantes, o movimento de massas e ativistas culturais para implantar um modelo econômico agro-exportador pró-ianque.

Só para se fazer uma analogia política, uma das vítimas da ditadura militar, Frei Tito, foi brutalmente torturado nas dependências do DOPS, não suportou as sequelas psíquicas e cometeu suicídio, afirmando em um bilhete escrito de próprio punho antes de morrer: “É melhor morrer do que perder a vida”. Geraldo Vandré, ao contrário, “optou” por “perder a vida”... afirmando que vive exilado de si mesmo e que o velho Vandré conhecido por todos morreu no tempo, há quarenta anos atrás.Não é casual que em toda duração da entrevista peça para ver suas imagens perdidas do passado, como que buscasse desesperadamente se reencontrar consigo mesmo.

A ATUAL ETAPA DE RETROCESSO IDEOLÓGICO

No atual regime democratizante cabe responder a pergunta inicial deste artigo, qual o interesse da Globo em entrevistar alguém que “ficou fora dos acontecimentos dos últimos quarenta anos” como Vandré se autodefine? Demonstrar que não existem mais referências político-culturais no mundo atual e a subseqüente “desmoralização” dos ativistas de esquerda. A queda do Muro de Berlim, o fim dos Estados operários do Leste europeu, a queda da URSS e a contra-revolução que ronda o Estado operário cubano, a criminalização dos movimentos sociais provocam um imenso retrocesso na consciência ideológica das massas. Assim, interessa ao regime da democracia dos ricos apresentar um “velho senhor” de boné que diz que não foi maltratado pela ditadura e ainda por cima compõe versos à Força Aérea (“Fabiana”). Confuso, alterna parcos momentos de lucidez com declarações desconexas, perdido em seu mundo próprio. O que sobrou hoje não é mais Vandré; e o que fora, estava intimamente conectado à verve de seu tempo.

Mas Vandré é apenas uma expressão mais trágica dos efeitos do “moedor de carne” da atual etapa histórica, figuras como Chico Buarque que usava sua música contra a ditadura, hoje oculta seu passado militante (do MR-8) sem estar perdido na demência, o que importa hoje é negar valores. Ou seja, a arte acompanha o retrocesso das massas, não vale a pena enfrentar algo que fuja aos interesses da opinião pública burguesa e das novas “necessidades” mercadológicas da indústria cultural, por isto temos que nos conformar com os clones de ícones do melhor de nossa arte, como a “pop star” Maria Rita tão admirada por uma juventude orkuteira e desprovida de ideais.

Este quadro de atraso cultural e bestialização ideológica somente poderá ser superado com a mudança da atual correlação de forças entre as classes sociais, ou seja, com o surgimento de uma nova ofensiva das massas, como ocorreu em 68, em todos os terrenos da vida humana, forjando uma nova geração de intelectuais e artistas comprometidos com um novo mundo socialista e não mais com as exigências dos senhores do “sagrado” mercado.

LIGA BOLCHEVIQUE INTERNACIONALISTA

Texto original em :
http://www.lbiqi.org

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