PARIS, ATENAS E SUBÚRBIOS-Parte II


PARIS, ATENAS E SUBÚRBIOS- parte II

anotações de viagem - por J. Quartim Moraes


No século passado, à medida que a especulação imobiliária empurrava a classe operária para fora do perímetro urbano de Paris, os que tinham melhores salários alugaram ou mesmo compraram com financiamento casas nos subúrbios. Elas estão construídas em terrenos que formam longos retângulos de frente relativamente estreita, na maioria em torno de dez metros, com uns cem, cento e vinte metros de fundo. Essas casas são chamadas “pavillons”; quando têm as parede externas recobertas de pedra são consideradas “maisons meulières” (de “meule”=moinho: lembram as moradias dos moleiros medievais). Entre o portão de entrada e a porta da casa há quase sempre um pequeno jardim, em geral com muitas flores. Bem maior e mais importante é o longo quintal atrás da casa. Assim que a temperatura sobe e os dias se alongam, a mesa do jantar, principalmente quando vêm amigos, é posta num terraço diante da relva, ao lado de flores, cerejeiras carregadas, tomates já bem avermelhados por doze horas de luz diária, muitas groselhas e outras pequenas frutas vermelhas e roxas. É um costume mais antigo e mais popular do que o “barbecue and swimming-pool” com que sonham as camadas médias estadunidenses, traduzido no Brasil pelo “churrasco à beira da piscina”.


Na latitude da região de Paris, o entardecer, durante o período próximo ao solstício de verão, começa em torno das seis e vai até as nove e meia ou dez horas. Por isso os franceses distinguem “après-midi” e “soir” e os italianos, mesmo situados mais abaixo, “pomeriggio” e “sera”. Na Espanha, os espetáculos e outros encontros de verão são anunciados para “las nueve de la tarde”. Em tardes como essas, no final de maio, hospedado em Vitry-sur-Seine, avancei noite adentro, em longas conversas entre veteranas e veteranos na vida e no comunismo. Vitry é uma localidade do subúrbio sul da região parisiense, ao lado de Ivry-sur-Seine, uma das principais, mais antigas e firmes bases vermelhas do PCF. Em 1932, o secretário geral do PCF, Maurice Thorez, foi eleito deputado em Ivry. Até hoje a sombra de Thorez paira indômita nesses velhos baluartes: os comunistas mantêm o poder local nos dois municípios.


Normal que em nossa faixa etária falássemos do passado, dos tempos em que o PCF era a coluna vertebral da esquerda. Não havia renegados no jantar, mas só uma minoria dentre os presentes tinha prosseguido na militância com o mesmo empenho daquela época. Por que recuamos tanto de lá para cá? O vinho encorajou-nos na dura dialética do universal e do particular, dos grandes desastres e dos pequenos desânimos. A maior dúvida era saber quando começou o declínio. Com o euro-comunismo? Com a guinada de Mitterand à direita, já durante seu primeiro mandato presidencial? Com o triunfo da contra-revoluçã o na URSS? Acabamos discutindo só os dois primeiros desses três fatores de deliqüescência.


Assumi o risco de ferir os brios patrióticos dos amigos franceses sustentando que o PCF tinha absorvido o cupim eurocomunista das mãos do já carcomido PCI. A diferença, responderam, é que continuamos de pé, não escondemos nosso nome, não liquidamos nosso Partido. Claro que a questão não é só de nomes, mas mudar de nome já é buscar nova auto-identificaçã o. Dos italianos e dos espanhóis pode-se dizer que intitular-se "eurocomunistas" foi a maneira envergonhada que encontraram para deixar o comunismo, carregando o que lhes interessava de sua herança (os móveis, principalmente) e jogando fora o resto. Enrico Berlinger, o profeta do “valor universal da democracia”, pretendia inserir sua abortada "terceira via" entre o comunismo soviético e a social-democracia. A brilhante idéia foi retomada por Blair, Schroeder e parceiros. Mas agora, com mais objetividade, para pôr a via dita terceira entre o neoliberalismo extremado e a social-democracia. Em 1999, na Iugoslávia, eles explicaram na prática (sobre a cabeça dos sérvios) que por "terceira via" entendiam a trajetória dos mísseis da OTAN: os chefes de Estado e de governo envolvidos naquela operação de aniquilamento cometeram solidariamente infames crimes de guerra.

Entre eles estava o último filhote de Berlinger, D’Alema, chefe do governo italiano, que seguiu a reboque da caravana bélica comandada por Clinton. Tentou sujar-se só um pouco com a destruição da Iugoslávia. De quando em vez assaltava-o um resto de escrúpulo. Em 26 de março, disse estar disposto a intervir para conseguir uma trégua nos bombardeios. Se tentou, não foi levado a sério pelo Pentágono e pelo sócio britânico. A posição miserável de seu governo transpareceu quando, em entrevista à RAI, procurou justificar o apoio italiano ao furor bélico anglo-estadunidense , com o argumento de que “não poderíamos lavar as mãos” (diante do que ocorria no Kosovo). Trocadilho ou ato falho? No país da máfia, a primeira grande ofensiva político-judiciá ria contra a imensa organização criminosa ítalo-estadunidense intitulou-se operação "mãos limpas".

Também o social-democrata Jospin, chefe do governo francês, quis sujar-se só pela metade. Apoiou a fundo a destruição da Sérvia e a entrega do Kosovo à máfia albanesa, mas condenou os bombardeios crônicos do Iraque pela dupla Clinton-Blair. Mais arrogante, porém que o colega italiano, declarou publicamente que o bombardeio da Sérvia era uma “guerra pela civilização”. Nove anos antes, o melífluo liberal Norberto Bobbio havia qualificado de "guerra justa" a agressão colonial dos Estados Unidos e das potências capitalistas satélites contra o Iraque.
[IE1] Voltou a se pronunciar a propósito da Sérvia, para aplaudir os bombardeios, que também foram abençoados pelo arcebispo de Canterbury.

Ninguém dentre os amigos participantes da noturna tertúlia de Vitry contestou que o governo Jospin tinha arruinado a segunda chance histórica que teve a esquerda francesa para oferecer uma resposta avançada à ofensiva neoliberal. A primeira tinha sido comprometida por François Mitterand. Reeleito presidente, em 5 e 12 de junho de 1988, ele dissolveu a Assembléia Nacional para convocar novas eleições legislativas, nas quais a esquerda obteve maioria absoluta: a bancada socialista, incluídos os chamados “apparentés”, isto é, deputados próximos que se agregaram ao bloco parlamentar do PS, atingiu 275 membros, isto é 48% da representação nacional. Os comunistas elegeram 23 deputados e sua bancada agregou dois “apparentés”. Maioria absoluta para a esquerda, portanto: 300 deputados num total de 575. Entretanto, o que essa maioria fez (ou não fez) do mandato que o corpo eleitoral lhe confiou explica em boa medida suas derrotas posteriores.

J. Quartim Moraes
Professor Unicamp
texto original em Eskuerra

(continua)

Para ler a Parte l http://mafarricovermelho.blogspot.com/2009/07/anotacoes-de-paris-atenas-e-suburbios-i.html

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