Nos EUA a crise não é para todos


Trabalhadores pagam e capital embolsa

Entre 1979 e 2006, os 1 por cento mais ricos viram os

seus rendimentos crescer 256 por cento


A Reserva Federal dos EUA admitiu, quinta-feira, 29, que a economia norte-americana permanece praticamente estagnada. As consequências fazem-se sentir com violência no país e os dados mostram não só que a crise não é para todos como é endémica ao sistema baseado na exploração de classe.


De acordo com o relatório da Reserva Federal, o nível de consumo voltou a cair (0,8 por cento) pelo segundo mês consecutivo, arrastando o índice para o pior resultado do ano de 2010. A crescer apenas o segmento da aquisição de géneros de primeira necessidade, ao passo que a transacção de bens duráveis e particularmente de imóveis continua a cair, adianta a entidade responsável por emissão de moeda nos EUA.


Segundo a Associação Nacional de Corretores de Imóveis, no mês de Junho o total de casas vendidas baixou 26 por cento face ao ponto mais alto do volume de transacções, registado em Setembro de 2005.


A Reserva já admite voltar a forçar os apoios à chamada recuperação da economia, isto é, equaciona voltar a verter milhões de dólares, às expensas do erário público, sobre um modo de produção anárquico, depredador e sorvedor de recursos, caracterizado pela antagonia entre o carácter privado da propriedade e o carácter social da produção.


Longa agonia do sistema


A par dos indicadores de conjuntura, a crise capitalista revela com crueza as suas consequências. Os principais atingidos são os trabalhadores. Só no ano de 2009, mais de 20 por cento das famílias norte-americanas sofreram uma perda de rendimento disponível na ordem dos 25 por cento, diz um relatório elaborado pela insuspeita Fundação Rockefeller.


O documento, intitulado «Segurança económica em risco», adianta ainda que, desde 1985, o total de famílias que perderam um quarto dos respectivos rendimentos cresceu quase 50 por cento quando se comparam os dados dos últimos 25 anos com os registados entre 1960 e 1985.

Quando o período é o de 1966 a 2006, o total de norte-americanos que perderam pelo menos 25 por cento dos rendimentos ascende a 60 por cento do total da população.


Estes dados confirmam não apenas que a crise capitalista é de natureza sistémica – a delapidação dos rendimentos do trabalho (necessária para manter a taxa de rentabilidade do capital) agudizou a crise de sobreprodução empurrando a burguesia para mecanismos de reprodução do capital acumulado não ligados aos sectores transformadores (bolsa, futuros, etc.) –, como se iniciou muito antes do dobrar do século XXI.


Com efeito, a escalada da crise e as suas consequências iniciou-se, pelo menos, em 1985. O número estimado de trabalhadores «economicamente inseguros» nesse ano era de 28 milhões. Em 2007, ascendia já a 46 milhões, informa igualmente a Fundação Rockefeller (FR).


O referido texto não inclui dados relativos a 2010, quando todos os indicadores apontam para a transformação do desemprego de longa duração num problema estrutural. Não obstante, o quadro estatístico observado permite à FR afirmar que 2010 será muito pior que 2009.

Os ricos mais ricos


Outro dado interessante deste estudo é o que resulta da evolução dos rendimentos por «estratos sociais». Diz a FR que entre 1979 e 2006 a restrita classe média dos EUA viu a sua renda crescer 21 por cento, ao passo que os 10 por cento mais ricos incrementaram os respectivos rendimentos em 112 por cento e os 1 por cento obscenamente abastados bateram todos os recordes, com um aumento de 256 por cento.


A actual fase da crise é, ainda, uma enorme oportunidade para continuar a acumular capital e consolidar a posição cimeira arrasando a concorrência. Um exemplo: só durante o primeiro semestre de 2010 mais de 100 pequenos e médios bancos fecharam as portas em consequência da crise. A esmagadora maioria destas instituições, ao contrário das congéneres monopolistas, não recebeu qualquer tipo de apoio estatal. Os seus negócios foram, na quase totalidade, absorvidos pelos grandes conglomerados financeiros.


Em 2009, 140 bancos pequenos e médios já haviam encerrado nos EUA. No mesmo sentido, o The New York Times informou recentemente que os lucros das multinancionais cresceram 40 por cento entre o final de 2008 e o primeiro semestre de 2010. Entre as empresas que relataram ganhos no segundo trimestre deste ano, os lucros subiram 42,3 por cento.

Para o próximo trimestre de 2010, as empresas esperam aumentos dos lucros em 19,3 por cento face a 2009, e para 2011 as corporações almejam atingir um recorde de crescimento das margens de lucro na ordem dos 8,9 por cento, difundiu também o diário nova-iorquino.


Como se constata, a quebra observada nas vendas não significa necessariamente uma perda de lucros. Factores como a delapidação de milhares de postos de trabalho e o aumento da exploração sobre os trabalhadores – quer pela retirada de regalias quer pela supressão de parte do salário quer ainda pelo aumento da jornada e a flexibilização dos horários – contabilizam milhões em bolsa.


Tal é o caso da Harley Davidson (cortou 1/5 da sua força de trabalho e planeia cortar mais 1500 empregos apresentando o triplo dos lucros de 2009), da General Electric, JPMorgan Chase ou Ford (que desde 2005 já cortou quase metade da sua força de trabalho nos EUA), diz o NYT.


O Wall Street Journal explica a aparente contradição. Os mercados financeiros estão a premiar todas as empresas que planeiam despedir mais ou, pelo menos, não voltar a contratar.

Flagelo nacional


Do outro lado da barricada ficam os milhões de desempregados norte-americanos. Na última semana de Julho, o total registado pelo Departamento do Trabalho caiu 2,4 por cento, mas esta quebra pode estar relacionada com a suspensão dos despedimentos em fábricas automóveis do Michigan e Nova Iorque. Nada que deixe grandes ânimos, já que no total pediram protecção social ao Estado outros 457 mil trabalhadores norte-americanos neste período.

A taxa de desemprego oficial mantém-se alta, a rondar os 10 por cento. Entre os jovens dos 16 aos 25 anos, a taxa ascende a 20 por cento. A 10 de Julho, 8,3 milhões de norte-americanos recebiam algum tipo de ajuda. Milhões pura e simplesmente desistiram da inscrição nos departamentos de emprego.


Milhões para a guerra

Entretanto, o Congresso dos EUA aprovou, por 308 votos a favor e 114 contra, o projecto de lei, anteriormente sufragado pelo Senado, que destina outros 33 mil milhões de dólares para custear o envio de mais 30 mil soldados para a guerra do Afeganistão. Mais 4 mil milhões de dólares serão destinados a propósito de programas de «ajuda» naquele território, no Paquistão e Iraque.


A aprovação ocorreu quando a Wikileaks divulgou milhares de relatórios sobre a guerra do Afeganistão e o site Democracy Now denunciou que rádios e outros meios de comunicação afegãos recebiam dinheiro para divulgarem propaganda dos EUA. Os serviços de inteligência, as unidades de guerra psicológica e alguns oficiais das forças armadas norte-americanas referem-se a jornalistas afegãos como «os nossos jornalistas».

O Pentágono já se tinha envolvido numa operação semelhante no Iraque, tendo mesmo contratado para o efeito a Lincoln Group, responsável pelos pagamentos a jornalistas iraquianos dispostos a publicar informação favorável aos ocupantes.


Texto original em Jornal Avante , sítio em http://www.avante.pt/pt/1914/internacional/109940/



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