O Acordo de Paris sobre alterações climáticas

O Acordo de Paris sobre alterações climáticas
por VLADIMIRO VALE


"Tal como em todo o processo de preparação, também as conclusões desta cimeira foram acompanhadas de uma imensa campanha de propaganda ideológica com que os centros de decisão do capital pretendem legitimar mecanismos de acumulação capitalista. A propósito da necessidade de combate às alterações climáticas, querem legitimar e aprofundar a implementação de mecanismos como o Mercado de Carbono enquanto mecanismos que visam mercantilizar e financeirizar o ambiente com o pretexto de solucionar problemas reais. O facto da Conferência se ter realizado num quadro de limitações às movimentações de massas, na sequência dos atentados de Paris, silenciou as vozes críticas e as manifestações públicas, o que contribuiu para o favorecimento da propaganda oficial."
" o Esquema Europeu de Transacções (ETS), introduzido há 10 anos, não conduziu à desejada redução de emissões de gases de efeito de estufa, bem pelo contrário. A experiência europeia de transacção de quotas de carbono desmente claramente a virtuosidade da regulação pelo mercado e demonstra a ineficácia e perversidade dos seus instrumentos, que visam a obtenção de lucro, a acumulação de riqueza e o aprofundamento das desigualdades."

Legitimar a mercantilização do ambiente, apagar responsabilidades, favorecer processos de natureza colonial e transferir custos para os povos do mundo.

«O Homem vive da natureza significa: a Natureza é o seu corpo, com o qual ele tem de permanecer em constante processo para não morrer. Que a vida física e espiritual do homem esteja em conexão com a Natureza, não tem outro sentido senão que a Natureza está em conexão com ela própria, pois o homem é uma parte da Natureza.»
K. Marx – «Manuscritos Económico-filosóficos de 1844»

«Os factos lembram-nos que não reinamos sobre a natureza como conquistadores sobre um povo estrangeiro submetido, como alguém que estaria para além da natureza, mas que lhe pertencemos com a nossa carne, o nosso sangue...».
F. Engels – A Dialéctica da Natureza

«No modo de produção actual apenas se considera, face à natureza, como à sociedade, o resultado mais próximo,... a obtenção do lucro imediato,... depois, ainda há quem se espante que as consequências longínquas das acções que visam este resultado imediato sejam completamente diferentes e na maioria dos casos completamente opostas.»
F. Engels – A Dialéctica da Natureza

«A época do capitalismo contemporâneo mostra-nos que se estão a estabelecer determinadas relações entre grupos capitalistas com base na partilha económica do mundo».
V. I. Lénine – O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo

Foi anunciado um acordo na sequência da Conferência de Paris no âmbito da Convenção Quadro sobre Alterações Climáticas das Nações Unidas. Uma imensa campanha de propaganda propagou a ideia de um «acordo histórico» e de uma «grande vitória diplomática». No entanto, o Comité Central do PCP sublinhou: «designadamente em relação aos objectivos mais ambiciosos de redução das emissões de gases com efeito de estufa, os mesmos não encontram resposta no texto aprovado.»De facto, parece ter ocorrido um salto em frente para esconder a falta de compromissos concretos. Daí o estabelecimento de objectivos mais ambiciosos para limitar o aumento de temperatura a 1.5ºC, em vez dos 2ºC inicialmente indicados, não havendo no entanto esclarecimento sobre a forma como vão ser atingidos os objectivos, uma vez que as medidas já anunciadas por 185 países, dos 195 que aprovaram o texto, são insuficientes para cumprir o objectivo anunciado, colocando o aquecimento, nas contas apresentadas, acima dos 3ºC. Acresce que nem sequer estão acordados limites concretos para as emissões de Gases com Efeito de Estufa (GEE) e que o próprio acordo só entrará em vigor em 2020.

Tal como em todo o processo de preparação, também as conclusões desta cimeira foram acompanhadas de uma imensa campanha de propaganda ideológica com que os centros de decisão do capital pretendem legitimar mecanismos de acumulação capitalista. A propósito da necessidade de combate às alterações climáticas, querem legitimar e aprofundar a implementação de mecanismos como o Mercado de Carbono enquanto mecanismos que visam mercantilizar e financeirizar o ambiente com o pretexto de solucionar problemas reais. O facto da Conferência se ter realizado num quadro de limitações às movimentações de massas, na sequência dos atentados de Paris, silenciou as vozes críticas e as manifestações públicas, o que contribuiu para o favorecimento da propaganda oficial.

Na anterior conferência, COP20, em Lima, o anterior Ministro do Ambiente do Governo PSD/CDS afirmava «combater as alterações climáticas é urgente, mas também é possível e pode ser custo-eficaz». O Ministro do PSD/CDS defendia a necessidade de colmatar a aquilo que chama «lacuna financeira» e «promover o mercado de carbono a nível global, desenvolvendo e interligando sistemas de comércio de emissões a nível nacional, regional e sectorial». Ou seja, deu voz às posições do directório de potências que visam a financeirização do ambiente. Senão vejamos: num artigo que Ban Ki-Moon, Secretário -Geral das Nações Unidas, fez publicar na sequência do Acordo de Paris, pode ler-se: «Os mercados têm agora o sinal claro de que necessitavam para aumentarem os investimentos que vão gerar desenvolvimento com baixas emissões de gases e mais resiliente ao clima». Christine Lagarde, Directora do FMI, num artigo que publicou nos dias que antecederam a Conferência Alterações Climáticas das Nações Unidas, escreveu o seguinte: «se os países que mais emitem Gases com Efeito de Estufa (GEE) impusessem um preço da tonelada de CO2 de 30 dólares, podiam gerar receitas fiscais de cerca 1% do seu PIB». O Público na sua edição de 13/12/2015 decretava num subtítulo de um artigo sobre «Os pontos essenciais do novo tratado climático aprovado na Cimeira de Paris»: «Instrumentos de mercado vão ajudar a cumprir promessas». Também encontramos esta linha nas grandes opções do plano do actual Governo PS, onde se assume como bom e eficaz o Mercado de Carbono (MC), manifestando a intenção de alargar a experiência a outros sectores, como o residencial, o dos serviços, dos transportes e da agricultura, argumentando que apenas 50% das emissões estão incluídas no Mercado de Carbono.

Tudo isto passando ao lado da evidência de que o Mercado de Carbono não funciona e tem tido um efeito perverso. Num quadro de crise e de redução da actividade económica, os produtores de GEE diminuíram a procura de licenças de produção de CO2. Com a diminuição da procura baixou o preço das licenças, o que tornou muito barato poluir. A tonelada de CO2 chegou a atingir os 3 €, e mesmo após intervenção da UE apenas aumentou para os 8 €, o que faz com que seja barato utilizar combustíveis mais poluentes. O Administrador da EDP, Rui Teixeira, disse numa entrevista ao Expresso: «Ultimamente a União Europeia criou uma forma de retirar do mercado algumas das licenças e fazer subir o preço. Ainda assim, há um consenso de que € 8 por tonelada não é suficiente para justificar que indústrias mais poluidoras acabem por fechar. Isso hoje em dia vê-se na utilização do carvão para a produção de electricidade na Europa em geral, que prevalece sobre a utilização do gás. Com os preços do CO2 como estão continua a ser mais barato produzir com carvão do que com gás.»

Assim, comprova-se o que o PCP tem vindo a denunciar: o Esquema Europeu de Transacções (ETS), introduzido há 10 anos, não conduziu à desejada redução de emissões de gases de efeito de estufa, bem pelo contrário. A experiência europeia de transacção de quotas de carbono desmente claramente a virtuosidade da regulação pelo mercado e demonstra a ineficácia e perversidade dos seus instrumentos, que visam a obtenção de lucro, a acumulação de riqueza e o aprofundamento das desigualdades.

Apesar da falência destes esquemas de transacção são muitas as empresas, entidades e ONG envolvidas na sua promoção e implementação. Por exemplo, a Inner City Fund (ICF) International – fundada por consultores do Departamento de Defesa dos EUA – é a consultora norte-americana a quem foi adjudicado um projecto de assistência técnica ao desenho e implementação do comércio de emissões de carbono da China. Um projecto considerado «decisivo para reformar a economia chinesa», desenvolvido com fundos da União Europeia e em colaboração com a Comissão Nacional de Reforma e Desenvolvimento, o organismo ministerial chinês encarregue do planeamento económico. São mecanismos como este, decorrentes do protocolo de Quioto, que mercantilizam o ambiente, colocam a capacidade da Terra de reciclar Carbono nas mãos das mesmas corporações que estão a delapidar recursos e a degradar o ambiente, consolidando uma política de privatização da atmosfera.

Como escreveu Lénine: «A época do capitalismo contemporâneo mostra-nos que se estão a estabelecer determinadas relações entre grupos capitalistas com base na partilha económica do mundo». Daí que nas conclusões da cimeira seja possível identificar que, por detrás da propaganda, está a intenção de favorecer processos de natureza colonial e de financiamento de projectos de grandes grupos transnacionais em países em desenvolvimento, potenciando a dominação imperialista dos recursos destes países. E daí que o Comité Central do PCP sublinhe: «Quando se exigia a assumpção do princípio da responsabilidade comum mas diferenciada, entre países em desenvolvimento e industrializados, é proposto um sistema único, susceptível de aprofundar mais injustiças entre os países que mais contribuem e contribuíram para a acumulação de carbono na atmosfera e os países em desenvolvimento.»

A criação de um sistema único de regras de «Combate» às alterações climáticas para todos os países era um grande objectivo da Administração dos EUA que, assim, justificava que «as regras, para serem inclusivas e para serem válidas para um largo espectro de Países, têm que ser pouco rígidas». Não quiseram dois sistemas – um para países desenvolvidos, outro para países em desenvolvimento – propostos por vários países, entre os quais Cuba e o Brasil. Os EUA, quiseram assim desenvolver uma forma de condicionar os países em desenvolvimento com uma fórmula que é potenciadora de injustiças, na medida em que os países industrializados, que mais contribuem e contribuíram para a dita acumulação de carbono na atmosfera, querem agora pagar a mesma factura que os chamados países em desenvolvimento. Tanto mais que não basta comparar uma produção instantânea ou anual de GEE, visto que a poluição é um fenómeno cumulativo. Ou seja, começaram a apagar a responsabilidade histórica dos países industrializados nas emissões de GEE.

Os instrumentos de mercado conjugados com o conceito de neutralidade de emissões contêm riscos graves. Neste quadro, a aposta nos ditos sumidouros de CO2 (florestas e outros métodos) tem tudo para se tornar um grande mecanismo de não resolver o problema e até de o aprofundar. Um exemplo, que até já acontece hoje em dia e que pode vir a ser mais generalizado, é o de uma grande empresa que emite CO2 e que, para ganhar créditos de emissão, investe na criação de uma monoprodução florestal num país em desenvolvimento. Continua a emitir Gases e destrói a floresta autóctone afectando a biodiversidade.

Tanto mais que a visão das florestas da organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura FAO tem sido deformada por um erro fundamental: definem-se florestas simplesmente como cobertura de árvores. Florestas tropicais são desmatadas e substituídas por plantações de borracha. Florestas moderadas e subtropicais com alta biodiversidade são arrancadas afim de abrir caminho para plantações de pinheiro ou eucalipto. Segundo a definição da FAO isto não conta como perda de floresta (no net deforestation). Quando savanas são destruídas ou a terra de pequenos agricultores é roubada e convertida em monoculturas florestais industriais, a FAO considera isso como reflorestação (afforestation). A recusa da FAO em aceitar que as florestas devem ser definidas pela sua diversidade biológica, social, cultural e espiritual, fomenta a extensão de vastas plantações de árvores em detrimento de comunidades locais, florestas verdadeiras e outros ecossistemas. Até plantações com eucaliptos geneticamente modificados são chamadas de «florestas». (Diga à ONU: Plantações não são florestas!)

Assim, assentar grande parte da estratégia do combate às alterações climáticas, nos sumidouros de carbono, nomeadamente em florestas, tem riscos graves, com o efeito perverso de reservar grandes áreas naturais de países em desenvolvimento para as grandes multinacionais, que ficam com capacidade de aprofundar a ingerência.

Neste quadro, o reforço do Fundo Verde para os 100 mil milhões de dólares anuais pode ser o instrumento para favorecer o financiamento de projectos dos grupos económicos e processos de ingerência em países em desenvolvimento, potenciando a dominação imperialista dos recursos destes países. Fazendo crer que os mecanismos de mercado são aqueles que dão resposta a estes problemas ambientais. A Alemanha, país defensor do reforço do Fundo Verde, quer instituir seguros (com fundos privados e públicos), supostamente para os países mais frágeis responderem a catástrofes, mas que tem tudo para ser mais uma forma de financiamento indirecto das seguradoras e de grupos financeiros e económicos, a pretexto de ajudar os países em desenvolvimento.

A campanha montada a partir do tema alterações climáticas tem muito de «greenwashing» (lavagem verde) de grandes grupos económicos e de líderes mundiais. Christine Lagarde, no citado artigo que fez publicar antes da Conferência, adiantava a táctica: «Aumentos graduais e previsíveis nos preços de energia fornecerão um forte incentivo para os consumidores reduzirem a sua factura da energia.» «É por isso que o FMI tem vindo a recomendar uma estratégia em três vertentes: atribui-lhe o preço certo, taxa-o com esperteza e fá-lo agora», acrescentando «cada vertente é essencial».

Assim fica claro outro objectivo, que é passar o ónus dos problemas ambientais para os cidadãos individuais, de modo a desculpabilizar os verdadeiros responsáveis e a criar condições para vir a legitimar o aparecimento de novos impostos sobre os trabalhadores e os povos, acentuando injustiças, retirando o ónus dos problemas ambientais que o sistema capitalista, os grupos monopolistas e a estratégia de dominação imperialista promovem, acentuando desigualdades e não resolvendo os principais problemas com que se confronta a humanidade.

A utilização de argumentos ditos ecologistas para aumentar a carga fiscal sobre as camadas mais empobrecidas, teve como exemplo recente e paradigmático a Reforma da Fiscalidade Verde do governo PSD/CDS, que o PCP caracterizou como uma reafectação da tributação, com base na argumento falso de que a taxação dos seus hábitos e actividades têm efeitos ambientais sensíveis.

Tal como o PCP tem vindo a dizer só com uma profunda ruptura política que assente numa perspectiva patriótica e de esquerda se constrói um Estado capaz de gerir e proteger a natureza, capaz de colocar a riqueza natural do país ao serviço do povo e do desenvolvimento nacional e não ao serviço do desenvolvimento dos interesses privados, que vêem nos recursos naturais apenas o substrato para actividades lucrativas, independentemente da sua real utilidade ou racionalidade, ou mesmo do seu impacto negativo junto da conservação dos recursos.

Os combustíveis fósseis satisfazem actualmente mais de 80% das necessidades energéticas a nível mundial. É necessário diminuir esta dependência, aumentando a eficiência energética, desenvolvendo alternativas energéticas de domínio público, que não ponham em causa a segurança alimentar das populações – como é o caso dos agro-combustíveis –, é fundamental investir em Investigação & Desenvolvimento. Esta dependência não se combate destruindo o transporte público, como têm feito os sucessivos governos.

As emissões que contribuem para o efeito estufa são um problema grave. É por isso que temos de defender a produção local, reduzindo a amplitude dos ciclos de produção e consumo, travar a liberalização do comércio mundial, factor de incentivo no aumento do consumo energético e de emissão de gases com efeito de estufa e, além do mais, com graves consequências no plano económico e social.

A limitação da produção de gases que contribuem para o efeito estufa tem que ter em conta uma justa distribuição dos esforços por sectores e países. Deve ser feita através de normativo específico sem a atribuição de licenças transaccionáveis que já provou a sua ineficácia na redução da produção destas emissões e que tem o efeito perverso de condicionar os países menos desenvolvidos.

Temos que proteger os ecossistemas naturais, terrestres e marinhos, e recuperar os ecossistemas degradados, dado o importante papel que desempenham no ciclo do carbono e nos equilíbrios naturais. Para tal, é preciso romper com a lógica de destruição ao sabor dos grandes interesses privados.

A luta por um mundo mais respeitador do ambiente está inseparavelmente ligada à luta para reduzir as injustiças sociais e à luta por uma sociedade que se eleve acima das leis da economia de mercado. Os problemas da natureza não se resolvem enganando-a para fazer lucro.



VLADIMIRO VALE




Fonte: O MIlitante EDIÇÃO Nº 341 - MAR/ABR 2016



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