Terror e militarismo na estratégia dos EUA para enfrentar a crise

Terror e militarismo na estratégia dos EUA para enfrentar a crise
por Luís Carapinha
 
 


"A essência exploradora e as práticas criminosas do capitalismo contrastaram em permanência com a imagem virtuosa da democracia representativa burguesa, arvorada em farol da liberdade e pináculo dos direitos do homem, cultivada pelos meios de legitimação da ordem capitalista."


"O rastro de destruição e instabilidade deixado pelas guerras no Afeganistão (cuja ocupação militar prossegue), Iraque e Líbia deixa a descoberto a estratégia terrorista impulsionada pelos EUA. Na Síria os grupos financiados, armados e treinados pelos Estados Unidos e o séquito de potências e países cúmplices (cada qual munido da sua pequena agenda própria) travam uma guerra de procuração que tem – no plano estratégico – os olhos colocados no Irão, Rússia e China. Não é segredo que a doutrina militar dos EUA identifica nos três países diferentes níveis de ameaça à manutenção da sua hegemonia. Daí todo o manancial de meios políticos, económicos e militares com vista à sua contenção, desestabilização e enfraquecimento (sem esquecer o velho plano de desmembramento da Federação Russa auspiciado por eminentes estrategas em Washington), que incluem igualmente a utilização do terrorismo."



O fenómeno do terrorismo, na complexidade e multiplicidade de formas e facetas que encerra, esteve sempre associado – de modo directo ou indirecto – à manutenção dos interesses de classe dominantes. A situação actual não constitui excepção. A estratégia militarista dos EUA e a expansão do terrorismo de Estado continua a socorrer-se do subterfúgio da ameaça terrorista e da guerra contra a Al-Qaeda, apesar de há muito serem conhecidas as ligações promíscuas entre a acção do terrorismo islâmico e os centros de subversão do imperialismo. A guerra de agressão contra a Síria, em que segundo Damasco participam mercenários oriundos de 83 países, coloca a nu esta relação criminosa. Só não vê quem não quer.

Historicamente, a expressão política suprema do terror está consubstanciada na ascensão do fascismo no século XX. Expoente da reacção extremista de classe no quadro disruptivo pautado pelo exacerbamento da crise geral do capitalismo e a eclosão da grande depressão em 1929. Contexto conturbado não dissociável do temor face à consolidação da experiência emancipadora da URSS e a perspectiva de novos avanços na via de rupturas revolucionárias e alternativas de desenvolvimento soberano e progresso social.

No nosso país, o PCP caracterizou o regime fascista de Salazar e Caetano, em definição tornada «clássica», como «a ditadura terrorista dos monopólios (associados ao capital estrangeiro) e dos latifundiários» .
 
É porém evidente que o emprego sistemático do terror e a utilização de métodos terroristas, o recurso organizado ao terrorismo de Estado extravasam as fronteiras do poder de estado fascista, no âmbito do qual a essência e mecanismos do terror convergem num estádio mais elevado de institucionalização e concretização.

Ao longo do último século as forças imperialistas, antes de mais os EUA e as potências europeias da NATO, recorreram ampla e reiteradamente a métodos e acções terroristas na arena internacional, mas também, quando necessário, internamente. O establishment democrático não impediu o desatar de campanhas de repressão e conspiração dentro de portas para liquidar «ameaças» reais ou fictícias e afivelar as correias do sistema. Cabe recordar, a título exemplificativo, a campanha tenebrosa de caça às bruxas nos anos do macartismo nos EUA. Ou a rede terrorista de exércitos clandestinos desenvolvida pela NATO na Europa Ocidental com inconfessados objectivos anticomunistas (em geral conhecida como Operação Gladio).

A essência exploradora e as práticas criminosas do capitalismo contrastaram em permanência com a imagem virtuosa da democracia representativa burguesa, arvorada em farol da liberdade e pináculo dos direitos do homem, cultivada pelos meios de legitimação da ordem capitalista.

A própria reificação e instrumentalização da democracia pela ideologia dominante (convertendo-a em categoria abstracta e perene que paira sobre o real), não só obscurece o latente pulsar antidemocrático do sistema assente na exploração capitalista, como acaba por servir a subversão dos valores proclamados e a degradação e esvaziamento de liberdades e direitos sociais, duramente conquistados. Não admira pois que as classes dirigentes, nos EUA, UE e Japão, se arroguem o direito omnipotente de ingerência e intervenção em busca da exploração mais desenfreada.

Ostentando a bandeira da ordem democrática, da defesa dos direitos humanos e os valores do mundo livre (do livre mercado global dos monopólios, entenda-se), o poder do grande capital instigou ao anticomunismo mais primário e promoveu conspirações e golpes antidemocráticos e genocidas. Sustentou ditaduras sangrentas, invadiu países e travou guerras criminosas de agressão e destruição em massa, utilizando em larga escala o terrorismo de Estado. Financiou e apoiou organizações fundamentalistas e terroristas em campanhas permanentes de desestabilização e subversão visando as forças revolucionárias e o movimento de libertação, a soberania e os direitos dos povos e trabalhadores.

Longe de uma excursão exaustiva ao cadastro do século XX, bastará aqui recordar a utilização da arma nuclear pelos EUA no Japão em 1945 e os horrores das guerras imperialistas na Coreia e no Vietname.

Recordar as atrocidades da guerra colonialista de França na Argélia e o extenso rol de crimes a cargo de impérios coloniais decadentes nas suas guerras e maquinações coloniais e neocoloniais (da Coroa britânica ao colonialismo luso pela mão do governo fascista).

Recordar a aplicação da doutrina Monroe para a América Latina (o «quintal das traseiras» dos EUA), com sucessivas invasões e golpes de Estado orquestrados por Washington. O recurso a forças mercenárias e as campanhas terroristas contra a Revolução Cubana e a Revolução Sandinista nicaraguense; o Plano Condor para o Cone Sul, urdido pela CIA e os esbirros do imperialismo, para liquidar o Governo da Unidade Popular de Salvador Allende no Chile e reprimir as forças de esquerda, conduzindo nos anos 70-80 ao reforço ou implantação de cruéis ditaduras militares na América do Sul.

Recordar as conexões estreitas dos EUA e da NATO com forças e regimes opressores em todo o mundo, responsáveis por crimes hediondos. Seja no Irão do Xá, na Indonésia de Suharto, nas ditaduras militares da Turquia e dos coronéis na Grécia ou nas monarquias obscurantistas do Golfo – vitais para o poder do petrodólar.

O imperialismo apoiou até ao limite o regime do apartheid na África do Sul (apenas em 2008 Mandela e o ANC foram discretamente apagados da lista de terroristas dos EUA!) e o seu envolvimento nas campanhas militares de ocupação da Namíbia e agressão a Angola, ao lado dos bandos terroristas da UNITA que Washington generosamente municiou e financiou.

Continua a sustentar o regime sionista e a política anexionista israelita na Palestina e territórios árabes ocupados.

Importa recordar, em particular, que na matriz do fenómeno contemporâneo do terrorismo da Al-Qaeda e da nebulosa do extremismo e fundamentalismo islâmicos é reconhecível o vínculo entre os EUA e a ditadura militar de Zia-ul-Haq no Paquistão, uma das principais pontas da rede de ligações perversas estabelecida pela CIA para derrubar a revolução afegã. A ditadura paquistanesa não só se distinguiu pela ferocidade com que perseguiu os comunistas e democratas paquistaneses. O seu cunho ficou inscrito na agenda reaccionária e subversiva com que disseminou a criação de madrassas e fomentou a islamização. A tripla aliança entre EUA, Arábia Saudita e Paquistão está na raiz da formação dos grupos armados dos mujahideen que a partir do final dos anos 70 assumiu um papel crucial na desestabilização do Afeganistão, para onde a URSS enviou, em 1979, um importante destacamento militar em auxílio do governo de Kabul.

Em grande medida foi este o caldo de cultura da Al-Qaeda e da miríade de organizações terroristas conexas que hoje intervém em vastas regiões do globo, do Norte de África à Ásia Central, do Cáucaso ao Sudeste Asiático. As diversas correntes do Islão radical confluem nos objectivos obscurantistas e papel reaccionário. Mantendo os vínculos capitais com os círculos influentes imperialistas, nomeadamente dos EUA, Inglaterra, Israel, e a Arábia Saudita. Independentemente da versão oficial da guerra contra o terrorismo inventada em Washington e profusamente difundida pelas grandes centrais de (des)informação.

As derrotas do socialismo e a desintegração da União Soviética repercutiram fortemente na correlação de forças mundial. Intensificou-se a exploração capitalista de recursos e mão-de-obra, a par da deslocalização e mundialização da produção. A hegemonia das relações de exploração e a subordinação ao modo de produção capitalista estendeu-se praticamente a todo o planeta (arrastando todo um feixe de novas e aprofundadas contradições). O imperialismo reforçou a posição dominante na economia mundial e na divisão internacional do trabalho .

O grau sem precedentes de encadeamento produtivo da economia mundial, os ganhos da produtividade e socialização não resultam contudo na valorização do trabalho e no desenvolvimento económico equilibrado e sustentável em benefício dos povos. Está perpassado e subordinado pela lógica implacável da concentração e apropriação capitalistas. Economias periféricas e semi-periféricas e sectores produtivos nacionais são objecto das distorções e destruição, produto da rapina dos monopólios transnacionais guiada pela lei cega de extorsão da mais-valia.

A expansão capitalista, o incremento da concentração e centralização acelerou, no entanto, o agravamento das contradições insolúveis do capitalismo. Acentuou-se a tendência de desenvolvimento desigual. Os níveis de polarização social, incluindo no centro da arquitectura capitalista, atingem níveis críticos.

À euforia transbordante de Wall Street dos primeiros anos pós-soviéticos sucederam os impactos autofágicos resultantes da irrupção de crises cíclicas cada vez mais frequentes, de efeito mais devastador e contagiante para a economia mundial. Maiores constrangimentos à realização do ciclo de valorização do capital aprofundaram a tendência irreprimível de financeirização. O endividamento da maior economia mundial atingiu rapidamente níveis astronómicos, enquanto o peso relativo da produção industrial e do PIB dos EUA prosseguiu a trajectória de declínio. Ampliou-se o isolamento e desgaste social e político dos EUA e do imperialismo em geral. Tanto mais que a ascensão económica da China emergiu como factor incontornável da cena mundial, impulsionando um processo de rearrumação de forças não isento de elementos contraditórios. O desenvolvimento do processo do BRICS é expressão desta tendência, cuja perspectiva ulterior permanece incerta.

O recurso à política de força, adoptado pelos EUA e partilhado pelos restantes pólos da tríade imperialista (UE e Japão), não obstante o agravamento de tensões e rivalidades inter-imperialistas, visa precisamente enfrentar estes dilemas. A intensificação da ofensiva contra o mundo do trabalho (forçando a redução dos seus custos unitários) e os povos é inseparável da escalada militarista e intervencionista à escala planetária.

No pano de fundo dos atentados terroristas de 11 de Setembro de 2001 nos EUA – ainda envoltos num espesso manto de interrogações e perplexidades – a Casa Branca apressou-se a proclamar a guerra infinita contra o terror. Na realidade, as guerras contra o Afeganistão e Iraque já haviam sido decididas de antemão por Bush e a entourage neocon. Restava apenas acertar a ordem de prioridades e o calendário.

Deste modo, a ofensiva do imperialismo ascendeu a um novo patamar em que o elemento instrumental do terror passou a assumir papel preponderante. A estratégia militarista e terrorista do imperialismo, a política intervencionista de terra queimada e livre arbítrio atenta contra a soberania e integridade territorial dos Estados e os princípios básicos do direito e ordenamento internacionais consagrados na Carta ONU, um legado da vitória sobre o nazi-fascismo em 1945.

O rastro de destruição e instabilidade deixado pelas guerras no Afeganistão (cuja ocupação militar prossegue), Iraque e Líbia deixa a descoberto a estratégia terrorista impulsionada pelos EUA. Na Síria os grupos financiados, armados e treinados pelos Estados Unidos e o séquito de potências e países cúmplices (cada qual munido da sua pequena agenda própria) travam uma guerra de procuração que tem – no plano estratégico – os olhos colocados no Irão, Rússia e China. Não é segredo que a doutrina militar dos EUA identifica nos três países diferentes níveis de ameaça à manutenção da sua hegemonia. Daí todo o manancial de meios políticos, económicos e militares com vista à sua contenção, desestabilização e enfraquecimento (sem esquecer o velho plano de desmembramento da Federação Russa auspiciado por eminentes estrategas em Washington), que incluem igualmente a utilização do terrorismo.

Neste sentido, para o imperialismo norte-americano conservar o domínio do dólar na arquitectura financeira mundial (em que a manutenção do sistema do petrodólar é essencial), travando o seu declínio, assume importância crucial.

Na engrenagem terrorista posta em movimento em vastas regiões do globo, não há processo desestabilizador de que o terror da Al-Qaeda e associados não se aproveite para servir, objectivamente, os interesses estratégicos do imperialismo. Um círculo quase perfeito em que terror e terrorismo de Estado se retro-alimentam reciprocamente.

Obama anunciou em Maio o fim da guerra infinita, mas a ofensiva intervencionista, longe de quebrada, fortaleceu-se. Reforçaram-se as operações militares clandestinas. Ampliaram-se as campanhas de assassinatos selectivos com recurso a drones, que funcionam como a poda que fortalece a seiva do radicalismo islâmico. A cada novo golpe multiplica-se o enxame de mercenários que as agências de terror vão despachando de foco em foco desestabilizador, disseminando o caos, destruição e barbárie. Não menos relevante, a campanha terrorista contra o terror constitui um instrumento eficaz de promoção de ideias reaccionárias e obscurantistas, de divisão e alienação das massas, contribuindo na essência para desarmar a resistência e luta consequente dos oprimidos. É claro que as classes dominantes utilizam, ao mesmo tempo, o contra-terrorismo como colete-de-forças para criminalizar e reprimir o direito legítimo de resistência anti-imperialista e a luta libertadora dos povos.

Não há que perder de vista a dimensão interna antidemocrática da ofensiva do imperialismo, a outra face da moeda da «campanha contra o terror», e reflexo da marcha sobressaltada da crise geral do capitalismo. Bush aproveitou os atentados de 2001 para introduzir o Patriot Act com vista a cercear e cancelar direitos e liberdades consagradas. O caso Snowden veio ultimamente revelar a dimensão verdadeiramente maquiavélica da rede de espionagem global montada pelos serviços secretos dos EUA. Outras secretas de países aliados seguem-lhe o exemplo e prestam-lhe vassalagem.

A degradação dos institutos de democracia burguesa é um traço que acompanha o aprofundamento da crise estrutural e as respostas de força ensaiadas pelas classes dominantes. A pretexto da ameaça terrorista, impõe-se a troca de direitos por medidas securitárias, procurando instilar socialmente um ambiente de terror e desconfiança. O frenesim securitário e o clima de chantagem psicológica, amplificados pelos média, contribuem para a tentativa de vulnerabilizar a opinião pública, no preciso momento em que novas e draconianas medidas de ajuste económico, desregulação e retrocesso social abrem fila no mundo capitalista. Situação que pode ser aproveitada para promover a agenda antidemocrática de forças que fazem profissão de fé do combate contra a «política e os políticos».

Por ser um sintoma de fraqueza, a ofensiva militarista em curso torna-se mais perigosa. Está em causa a paz e a segurança mundial. A ascensão do terror na estratégia do imperialismo é um sinal de endurecimento do sistema, resultado do agravamento de contradições fundamentais do capitalismo. Dir-se-ia que nesta ascensão é toda a essência da relação exploradora capitalista de extorsão da mais-valia que irrompe à superfície.

Impedir que a estratégia de terror e da guerra do imperialismo concretize a sua agenda global e eliminar a sua ameaça é uma questão incontornável do tempo presente.


 
 
 
Notas
1. Álvaro Cunhal, A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril (A contra-revolução confessa-se), Edições «Avante!», Lisboa, 1999, p. 65.
2. Estados que preservaram a sua capacidade soberana, e até a opção do socialismo (nomeadamente China, Vietname, Cuba) depararam-se com um novo contexto internacional, sumamente agressivo e hostil. Com diferentes nuances e situações particulares distintas, este foi um elemento que ditou a implementação de medidas especiais e a adaptação da linha táctico-estratégica com vista a salvaguardar e fortalecer a perspectiva básica de construção socialista nas condições do novo quadro existente (embora no caso da China, e de certa forma no Vietname, a introdução de reformas graduais com vista a tirar maior partido dos instrumentos do mercado na construção socialista tenha, inclusive, antecedido a derrota dos processos de construção socialista na Europa e URSS).


Fonte: O Militante



Mafarrico Vermelho

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