Máquinas de controle social

Máquinas de controle social 
por César Príncipe*
 
 
"Reduzi tudo a cifras. Comprai, vendei, agiotai. No fim disto tudo o que lucrou a espécie humana? E eu pergunto aos economistas-políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à penúria absoluta, para produzir um rico." Almeida Garrett

 
Máquinas da comunicação. Domínio da opinião. Em Portugal, as máquinas pesadas são 11: Cofina, Controlinveste, Estado, Igreja Católica, Igreja Universal do Reino de Deus, Impala, Impresa, Média Capital, Sojormédia, Sonaecom, Zon Multimédia. Por detrás destes títulos tecnológicos e teológicos escondem-se centenas de estações e publicações. Quase tudo o que circula por terra e ar, o que se vê, escuta e lê. Em papel, hertz, on-line. O programa dos 11 é só um: formatação do publicado e controlo do público. Imposição do uniforme, sob a capa do colorido e do ruidoso, e de algum contraditório de baixa intensidade.
 
O grupo estatal, com acrescidas responsabilidades constitucionais, legais e estatutárias, embora cumpra os serviços mínimos, há muito que se tem vindo a desvincular do contrato de cidadania, subjugando-se à agenda do Bloco Central de Interesses (BCI). De facto, ao BCI corresponde um Bloco Central Mediático (BCM). O chamado arco do poder é assessorado pelo arco do dizer. Grande parte do mundo vive em apagão informativo. A consciência nacional está sob sequestro mediático.
 
Por cá, temos – é certo – algumas compensações. A ignorância lusófona é inesgotável. Muitas vezes de cordel. Por vezes de bordel. Conheço pivôs das 20 horas e opinadores de todas as horas capazes de traduzir J`accuse de Zola por Jacuzzi de Berlusconi. Infelizmente as 11 máquinas conseguem ocupar a caixa craniana de milhões de telespectadores, radiouvintes, leitores. A política de redução de cabeças tem sido condição de sucesso eleitoral, lúdico e publicitário. O capitalismo é redutor por vocação e decapitador por ambição.

Howard Zinn sublinhou

Um lembrete de fora, que se aplica ao caso português, na medida em que as 11 máquinas são fiéis fotocopiadoras do Império: Bush, o filho, invadiu e ocupou o Iraque em 2003. Em 2006, 95% da comunicação americana ainda apoiava a guerra, mas 50% da opinião pública defendia a retirada. Isto é, o jornalismo hegemónico, porta-voz militarista e imperialista, tarde ou cedo, ficará isolado nas suas posições. Para quem entender aprofundar a tese, recomendo os documentários e os comentários de Howard Zinn, que atravessou a vida a iluminar a História – ele, cognominado historiador do povo , ele – cientista das ideias e dos movimentos colectivos, professor emérito da Universidade de Boston, veterano da II Guerra Mundial, despedido em 1963 do Spelman College por se haver solidarizado com as estudantes negras que repudiavam a segregação escolar e social. Faleceu em 2010. Faremos bem em tê-lo a nosso lado. Dentro de nós, sempre que necessário.

Pulitzer alertou

Uma imprensa cínica, mercenária, demagógica e corrupta formará um público tão vil como ela mesma.

Quem pronunciou o anátema? Algum revolucionário marxista-cunhalista? Segundo li e reli, foi Joseph Pulitzer, nascido em 1847, 29 anos depois de Marx, 66 anos antes de Cunhal. Pulitzer, jornalista-empresário, patrono de Prémios da Imprensa Burguesa United States. Pulitzer ainda acreditava, pelos fins do séc. XIX, início do XX, nas virtudes da objectividade e da independência da Informação. Concepção romântica que contou com poucos praticantes ou ensaiadores, até porque nada é isento. Eu, por exemplo, aceito o inevitável: não há isenção na informação. Eu, por exemplo, estou comprometido com a liberdade e a fraternidade (agradecia que me cantassem a Grândola), sim, estou comprometido com a democracia patriótica, política, económica, social e cultural da Constituição da República Portuguesa.

Northcliffe confirmou

Mas queiram fazer o favor de ter paciência e escutar mais uma citação burguesa e anglo-saxónica:

Deus ensinou os homens a ler para que eu possa dizer-lhes quem devem amar, quem devem odiar e o que devem pensar.

Quem assim se pronunciou não foi Salazar, ex-inquilino de São Bento, residência agora ocupada pelos putativos netos. Esse grande português tinha outra fórmula para obter as equivalências: bastava ao povo saber ler e contar. Então, quem terá assumido a divina vocação de controlador dos homens através da leitura, já que, na sua passagem por Londres, ainda não dispunha de televisão para nos controlar? Segundo li e reli, foi lorde Northcliffe, nado em 1865 e finado em 1922, o magnata escolhido pelos céus como pioneiro da Imprensa de massas, modernamente baptizada de tablóide. O lordepress elegia como assuntos-chamariz o amor, a comida, o crime e o dinheiro . Onde é que nós, mais caderno de encargos, menos caderno de encargos, já teremos deparado com este jornalismo?

Malcom X preveniu

Não resisto a mais uma citação anglo-saxónica, desta vez, anti-burguesa:

Se não te acautelas dos meios de comunicação, far-te-ão amar o opressor e odiar o oprimido.

Quem nos terá recomendado tantas dietas e vacinas? Um norte-americano, um activista dos direitos civis, um cidadão que aprendeu a ler e recusou amar, odiar e pensar conforme a Escola de Jornalismo do Lorde. Foi Malcom X, que nasceu num país racista e burguês em 1925 e se fez consciente do domínio dos meios de comunicação e se tornou um combatente de primeira linha da liberdade e da dignidade até ser assassinado em 1965. Hoje, dia 13 de Abril, convidei Malcom para a celebração do centenário de Álvaro Cunhal. Até os mortos vão a nosso lado. José Gomes Ferreira e Fernando Lopes-Graça, por certo, também aqui presentes, os convocam nas Heróicas , cântico dos cânticos da resistência.

Thomas Jefferson pré-acusou

13 de Abril.

Neste dia, em 1743, nasceu Thomas Jefferson, autor da Declaração da Independência dos Estados Unidos. Autor também de uma declaração que ajuda a explicar a crise dos défices e das dívidas e a liquidação das soberanias e dos estados sociais, desencadeada pelo gangsterismo-banqueirismo planetário, sobretudo a partir do seu pólo norte, o banquistão euro-americano, modelo esclavagista contemporâneo:

Acredito que as instituições bancárias são mais perigosas para as nossas liberdades do que exércitos prontos para o combate. Se o povo americano alguma vez permitir que bancos controlem a sua moeda, os bancos e todas as instituições em torno dos bancos despojarão o povo de toda a posse, primeiro pela inflação, depois pela recessão, até ao dia em que os seus filhos vão acordar sem casa e sem tecto.

O Bloco Central Mediático cita diariamente Obama, o 44º presidente dos USA, mas evita dar a palavra a Jefferson, o terceiro. A censura não poupa declarações com mais de dois séculos. Teme a aliança entre os melhores mortos e os melhores vivos. Nada que não seja da tradição do Santo Ofício.

Almeida Garrett incriminou

13 de Abril.

Neste dia, em 1846, Almeida Garrett inaugurou o Teatro Nacional de D. Maria II, em Lisboa. Em maré de invocações anglo-saxónicas, considerar-me-ia sem brio português e sem honra portuense se não terminasse com uma citação de 1846, que até poderá parecer da autoria de um colaborador do Avante!:

Reduzi tudo a cifras. Comprai, vendei, agiotai. No fim disto tudo o que lucrou a espécie humana? E eu pergunto aos economistas-políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à penúria absoluta, para produzir um rico.

O Bloco Central Mediático tem abertura para citar as impressões curiosas de Garrett. No entanto, corta a narrativa sempre que se põe em causa parasitas e fabricantes de pobres. O Grupo dos 11 está atento. Talvez mais atento do que os consumidores dos seus produtos.

O autor desta interpelação, Almeida Garrett, nasceu antes de Marx e Cunhal, de Malcom X e de Howard Zinn e bastante depois de Thomas Jefferson. Mas os cinco poderiam, com subtis diferenças, subscrevê-la. Também nós poderíamos enviar este extracto das Viagens na Minha Terra aos capitulacionistas que controlam a Assembleia da República, ao Governo, controlado pelos agiotas, ao presidente, controlado pelas cifras, ao Grupo dos 11, vendedor das graças do capitalismo selvagem, como se alguma vez o capitalismo tivesse sido civilizado ou respeitasse valores humanos sem ser encostado à parede das reivindicações e das revoluções. Bastará rever a história e ver a realidade de frente. A Europa do Leste afundou-se com a perestroika. A Europa Ocidental afunda-se com a troika. Nos dois casos, o mesmo agente e a mesma consequência: o processo capitalista em curso. Com a comunicação anti-social a exercer o controlo dos danos.

Almeida Garrett, escritor, poeta, publicista, pedagogo, renovador do teatro, exilado e libertador da pátria, merece que, hoje, na Biblioteca com o seu nome, também o associemos à homenagem a um vulto do séc. XX: Álvaro Cunhal, orgulho dos comunistas, dos antifascistas, dos democratas, defensor dos explorados e oprimidos, património cívico e intelectual da Humanidade.

 

César Príncipe
 
(Dedico naturalmente a minha intervenção, nesta Conferência, a Álvaro Cunhal, que foi redactor da Imprensa clandestina, a única que enfrentou o regime fascista e nunca deixou de exercer a liberdade de expressão, a denúncia dos crimes da ditadura, a defesa dos direitos políticos e populares. Nesta dedicatória, englobo todos os intelectuais, operários gráficos e distribuidores da Imprensa do PCP (1931-1974), que ainda hoje continua a marcar a diferença noticiosa e crítica).
 

1. Conferência Soberania e Independência Nacional , promovida no âmbito das comemorações do centenário de Álvaro Cunhal, Auditório da Biblioteca Almeida Garrett, Porto (13/04/2013).
 

[*] Escritor.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .



Mafarrico Vermelho

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