Como surgiu o Estado Islâmico, como se financia e quem faz “vista grossa”

Como surgiu o Estado Islâmico, como se financia e quem faz “vista grossa”
por Olga Rodríguez

"As matanças como a de Paris são habituais no Médio Oriente, quer seja por exércitos ou por grupos terroristas. A chamada guerra contra o terror, a estratégia das bombas e das intervenções, mostrou-se ineficaz: longe de diminuir, o terrorismo e a violência crescem."
"O Daesh foi visto por alguns actores regionais - Israel, Turquia, Arábia Saudita, etc. - como uma arma potencial contra o Irão. Manteve débil o regime xiita do Iraque e manteve ocupados grupos inimigos de Israel, como o Hezbollah, que luta na Síria contra diversos grupos da oposição, entre os quais o Daesh.

A Turquia fez “vista grossa” perante o Daesh. O primeiro-ministro Erdogan tem querido ver nos movimentos islamitas radicais uma forma de deter tanto a influência xiita na zona como os curdos. Permitiu a passagem de jihadistas pela sua fronteira, bombardeou as YPG curdas - unidades de protecção popular - quando se supunha que esses ataques deveriam dirigir-se contra o Daesh, e permitiu o fluxo de camiões que cruzam a fronteira carregados de petróleo procedente dos campos sírios controlados pelo EI."

O início do que viria a ser o EI

Os antecedentes que deram lugar ao EI surgem no contexto da ocupação do Iraque. Depois da tomada do país pelas tropas britânicas e norte-americanas (e espanholas até 2004), formaram-se diversos grupos armados para lutar contra os invasores.

Entre eles aparece a autodenominada organização de base jihadista na Mesopotâmia (procedente da Jamaa al Tawhid wal-Jihad, nascida em 1999), conhecida na imprensa como Al Qaeda do Iraque. Posteriormente unir-se-ia a outros grupos, primeiro sob o nome de Conselho de Mujahidines e depois, em 2006, Estado Islâmico do Iraque.

O contexto no Iraque

Milhares de iraquianos foram detidos em cárceres secretos norte-americanos, onde sofreram torturas diárias. Alguns presos desapareciam para sempre. Outros reapareciam anos depois devastados pelas torturas, e com uma fé religiosa renascida, inquebrantável e extremista.

Depois da ocupação, os EUA desmantelaram imediatamente as Forças Armadas iraquianas, criminalizaram o partido Baas e integraram milícias sectárias nas novas forças de segurança iraquianas para lutar contra a resistência. Fomentaram as divisões e treinaram membros de milícias policiais que semearam o terror.

Foi o que se chamou esquadrões da morte, comandos que prenderam milhares de jovens sunitas, muitos dos quais apareciam semanas depois mortos nas ruas de cidades como Bagdade, com orifícios de bala na cabeça, pés ou pulmões, com ossos partidos, crânios esmagados, pele queimada ou arrancada, sinais de descargas eléctricas ou olhos fora das órbitas.

Centenas de milhares de famílias fugiram do país. Em apenas alguns meses mais de cinco milhões de iraquianos converteram-se em refugiados. Dos quais, dois milhões e meio instalaram-se na Síria.

Em pouco tempo o Iraque, que tinha sido um país onde muitos xiitas e sunitas conviviam juntos, onde uma elevada percentagem dos casais eram mistos, onde não havia grandes tensões sectárias, converteu-se num inferno. Muitos antigos integrantes das Forças Armadas desmanteladas partilharam cela com membros de grupos religiosos que se iam radicalizando à medida que aumentava a violência e a repressão.

O grupo do cárcere de Camp Bucca

Al Bagdadi, formatado depois da sua passagem pelo cárcere de Camp Bucca e pela guerra, anunciou em 2013 a criação do ‘Estado Islâmico’ do Iraque e do Levante (Síria).

Abu Baker Al Bagdadi, que se converteria em 2010 no líder do Estado Islâmico do Iraque, foi preso pelos norte-americanos em 2004 na cidade de Fallujah, duramente golpeada pelas forças de ocupação, que bombardearam casas, mercados, escolas, hospitais e utilizaram fósforo branco, um armamento letal que queima a pele das suas vítimas. A dor provocada naquela cidade é recordada até ao dia de hoje pelos seus habitantes.

Al Bagdadi foi enviado para o cárcere de Camp Bucca, onde as torturas estavam na ordem do dia. Alguns beberam ali as doutrinas mais extremistas e desvirtuadas do Islão, como o wahabismo. Daquela prisão sairiam muitos homens prontos a integrar as fileiras do Estado Islâmico (EI ou Daesh).

As revoltas no Iraque

Em 2010, num Iraque totalmente fracturado, irrompeu um movimento pacífico de protesto contra o governo central, que tomou força após a eclosão das revoltas na Tunísia e Egipto em 2011.

Entrevistei então um dos organizadores daquelas manifestações iraquianas, Udai Al Zaidi, irmão do famoso jornalista que lançou um sapato a George Bush e foi encarcerado por isso. Al Zaidi, xiita, manifestava-se no Iraque juntamente com milhares de sunitas e xiitas, contra um governo que tachavam de corrupto e sectário.

O governo de Al Maliki, agarrado ao poder, reprimiu aqueles protestos massivos usando balas contra os manifestantes, apoiado pelo Exército norte-americano. Morreram centenas de pessoas e milhares foram encarceradas.

O ‘Estado Islâmico’ na Síria

A repressão governamental iraquiana contra qualquer tipo de queixa ou protesto aumentou e levou ao extremismo alguns sectores da oposição.

O mesmo ocorreu na Síria, onde as revoltas tinham irrompido em Março de 2011. O ‘Estado Islâmico’ do Iraque enviou uma delegação à Síria em Agosto de 2011, quando a guerra civil síria já estava em marcha, depois do esmagamento das revoltas por Bashar al Assad.

O líder do ‘Estado Islâmico’ do Iraque, o clérigo Al Bagdadi, formatado pela sua passagem pelo cárcere de Camp Bucca e pela guerra, anunciou em 2013 a criação do ‘Estado Islâmico’ do Iraque e do Levante (Síria).

O auge do EI

Em 2014, o ‘Estado Islâmico’ tornou-se forte na Síria e no Iraque. Milhares de homens do EI, armados e protegidos com humvees e tanques, tomaram várias cidades iraquianas quase sem resistência.

Contactei então com alguns antigos efectivos das forças armadas iraquianas, desmanteladas pelos EUA, e com vários grupos da resistência iraquiana. Num momento em que eles próprios tinham ganhado posições em território iraquiano, faziam a seguinte pergunta:

Interrompemos a nossa luta contra o nosso inimigo, o governo de Al Maliki [apoiado pelos EUA], para lutar contra o Estado Islâmico, superior em número e força a nós, ou unimo-nos ao Daesh, apesar das nossas diferenças, para evitar ser derrotados?

A resposta escolhida por muitos foi a segunda. Preferiram ser cúmplices que inimigos.

Quem diria a alguns oficiais das forças do laico Baas iraquiano em 2003 que, anos depois, combateriam lado a lado com jihadistas extremistas que proclamavam um Califado e ditavam as normas mais violentas e medievais em nome de um distorcido e instrumentalizado Islão.

A conquista de mais território

Grupos sunitas de procedência diversa, só unidos por um inimigo comum, acabaram por integrar as fileiras do Daesh. Tomaram várias cidades iraquianas e chegaram muito perto de Bagdade. Apenas encontraram alguma resistência por parte do exército iraquiano, marcado pela corrupção:

“Os militares fugiram a correr, não havia aviões, não havia nada que os parasse. Para ser sincero, os únicos que fizeram algo para deter [o Daesh] foram os militares iranianos e as milícias xiitas”, confessava recentemente o ex-ministro da Defesa iraquiano Ali Allawi num documentário da Al Jazeera.

Desvincular o Iraque como contexto e desenvolvimento do Daesh seria fazer uma análise distorcida da sua evolução. Em 2014, após a tomada de um amplo território no Iraque, o Daesh proclamou o Califado do Estado Islâmico do Iraque e da Síria, controlando um espaço semelhante ao da Jordânia. Às suas fileiras juntaram-se chechenos, muçulmanos procedentes dos Balcãs, do norte de África e da Ásia.

Em agosto de 2014 chegou a resposta internacional. Obama prometeu acabar com o Daesh, e uma aliança militar integrada por EUA, Arábia Saudita, Emiratos ou Jordânia começou a bombardear focos supostamente controlados pelo grupo terrorista.

A “vista grossa” e o financiamento

O Daesh foi visto por alguns actores regionais - Israel, Turquia, Arábia Saudita, etc. - como uma arma potencial contra o Irão. Manteve débil o regime xiita do Iraque e manteve ocupados grupos inimigos de Israel, como o Hezbollah, que luta na Síria contra diversos grupos da oposição, entre os quais o Daesh.

A Turquia fez “vista grossa” perante o Daesh. O primeiro-ministro Erdogan tem querido ver nos movimentos islamitas radicais uma forma de deter tanto a influência xiita na zona como os curdos. Permitiu a passagem de jihadistas pela sua fronteira, bombardeou as YPG curdas - unidades de protecção popular - quando se supunha que esses ataques deveriam dirigir-se contra o Daesh, e permitiu o fluxo de camiões que cruzam a fronteira carregados de petróleo procedente dos campos sírios controlados pelo EI.

Desse modo acredita poder evitar a possibilidade de uma soberania dos curdos - que estão a lutar contra o Daesh - junto ao seu território.

A compra de petróleo no mercado negro turco tem sido um dos modos mais eficazes de financiamento para o Daesh, juntamente com a cobrança de grandes somas de dinheiro pelo resgate de alguns sequestrados.

Também recebe apoio económico de indivíduos sauditas face aos quais o regime de Riad faz “vista grossa”. Essas pessoas entregam dinheiro ao Daesh e fazem lóbi por ele, pressionando para que outros o apoiem.

A guerra contra o terror

Os aliados dos EUA na Síria na coligação que bombardeia o país têm sido entre outros a monarquia absolutista da Arábia Saudita, que continua a consentir o apoio ao Daesh a partir do seu país.

Washington e os sauditas também operam juntos, com os Emiratos, na coligação que bombardeia o Iémen, onde estão a criar mais caldo de cultura para o terrorismo com ataques como o que em Setembro passado matou 131 pessoas e feriu centenas mais.

As matanças como a de Paris são habituais no Médio Oriente, quer seja por exércitos ou por grupos terroristas. A chamada guerra contra o terror, a estratégia das bombas e das intervenções, mostrou-se ineficaz: longe de diminuir, o terrorismo e a violência crescem.

As matanças como a de Paris são habituais no Médio Oriente, quer seja por exércitos ou por grupos terroristas. A chamada guerra contra o terror, a estratégia das bombas e das intervenções, mostrou-se ineficaz: longe de diminuir, o terrorismo e a violência crescem.

François Hollande dizia no sábado que o massacre de Paris é um acto de guerra. Na realidade o Ocidente participa numa contenda desde que se envolveu no Afeganistão armando os mujahidines que se tornaram nos talibãs. Depois chegariam o Iraque, a Líbia, a Síria, o Iémen… Mas como são guerras que se travam longe das nossas fronteiras, só nos lembramos delas quando algum macabro eco chega aos nossos territórios.


Tradução de Carlos Santos para esquerda.net





Fonte: O Diário



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