Losurdo: "A Geopolítica da internet"

"A Geopolítica da internet"
por Domenico Losurdo

Este texto foi publicado na revista Belfagor. Rassegna di varia umanità, dirigida por Carlo Ferdinando Russo, 31 Julho 2010, p. 489-494. Rome.

"Mas a Internet não é ela mesma a expressão da liberdade de expressão? Os que argumentam isto são só os menos dotados (e os menos escrupulosos). Na realidade – reconhece Douglas Paal, ex-colaborador de Reagan e de Bush sénior – a Internet é actualmente «gerada por uma ONG que não passa de uma emanação do Departamento do Comércio dos EUA». Mas trata-se apenas de comércio? O semanário alemão Die Zeit pede esclarecimentos a James Bamford, um dos maiores especialistas sobre os serviços secretos americanos: «Os chineses também receiam que empresas americanas como o Google sejam em última análise instrumentos dos serviços secretos americanos em território chinês. Será isso uma atitude paranóica?» «De modo nenhum» é a resposta imediata. Pelo contrário – acrescenta o especialista – até «organizações e instituições estrangeiras estão infiltradas» pelos serviços secretos americanos, que estão sempre em condições de interceptar comunicações telefónicas em todos os cantos do planeta e devem ser considerados como «os maiores piratas informáticos do mundo»."

O Google desafia o governo da República Popular da China: a grande imprensa de «informação» aplaudiu sem reservas o rigor moral e a coragem duma multinacional disposta a pagar caro em termos económicos para não se submeter às imposições da censura e reafirmar o direito humano à livre informação. Na verdade, embora de modo muito reduzido, também se fizeram ouvir algumas vozes apelando a uma maior prudência: teria havido apenas nobres motivações para explicar a posição do Google ou também haveria considerações de outra natureza? O grandioso gesto podia ser apenas um golpe de teatro numa habilidosa campanha de relações públicas: virar as costas desassombradamente a um mercado, embora prometedor, mas em que a concorrência local é feroz e conquistadora, pode vir a ser benéfico para a imagem e para os lucros da multinacional americana, abrindo-lhe o caminho para uma expansão noutros países e a nível mundial… E assim, no cenário traçado na Itália pelos órgãos de imprensa mais «não-conformistas», o cálculo utilitário aparece ao lado dos direitos do homem. A geopolítica, pelo contrário, continua a estar ausente, apesar de, para um observador mais atento, ser ela o autêntico protagonista.

Para o verificarmos, demos um salto atrás de cerca de sessenta anos e concentremo-nos num incidente, reconstruído aqui a partir dum recente artigo de Alessandra Farkas no Corriere della Sera.

Uma misteriosa epidemia de loucura colectiva”

A 16 de Agosto de 1951, fenómenos estranhos e inquietantes vieram perturbar Pont-Saint-Esprit, «uma aldeia tranquila e pitoresca» situada «a sudeste da França». Sim, «a região foi sacudida por uma misteriosa epidemia de loucura colectiva. Morreram pelo menos cinco pessoas, dezenas foram parar ao hospício, centenas mostraram sinais de delírio e de alucinações […] Muitas delas foram parar ao hospital com uma camisa-de-forças». O mistério, que durante muito tempo rodeou este ataque de «loucura colectiva» já se dissipou: tratou-se duma «experiência efectuada pela CIA, com a Divisão Especial de Operações (SOD), a unidade secreta do exército dos EUA de Fort Detrick em Maryland»; os agentes da CIA «contaminaram com LSD o pão vendido nas padarias da região», provocando os resultados que descrevemos acima. Estamos no início da guerra-fria: claro que os Estados Unidos eram aliados da França, mas foi exactamente por isso que esta se prestou às experiências de guerra psicológica que obviamente tinham como objectivo o «campo socialista» (e a revolução anti-colonialista) mas dificilmente podiam ser efectuadas nos países situados por detrás da cortina de ferro.

Então a pergunta que se põe é esta: a excitação das massas só podia ser provocada através da via farmacológica? Os acontecimentos que, no final da guerra-fria, varreram o «campo socialista», de resto amplamente desacreditado e enfraquecido, dão que pensar. A 17 de Novembro de 1989, a «revolução de veludo» triunfava em Praga, com uma palavra de ordem que se pretendia inspirada em Gandhi: «Amor e Verdade». Na realidade – confessa hoje o International Herald Tribune – o papel decisivo foi desempenhado pela difusão duma notícia falsa segundo a qual um estudante tinha sido «brutalmente assassinado» pela polícia. Se, no caso da Checoslováquia foram suficientes duas «pequenas» manipulações (por um lado a transfiguração dos líderes da revolta em seguidores devotos de Ghandi no culto da verdade e da não-violência, por outro a produção inteligente e a difusão de «notícias» destinadas a suscitar a indignação das massas), a promoção da revolta que derrubou a ditadura de Ceausescu na Roménia, semanas depois foi mais complicada. A encenação, nas suas linhas gerais, não varia: tratou-se sempre de desacreditar e até mesmo de diabolizar o poder a derrubar, para o transformar num alvo fácil da indignação das massas alimentada sabiamente e sem sombra de escrúpulos. Pois é, mas como atingir esse objectivo na situação concreta da Roménia no final de 1989? A partir de certa altura, os meios de comunicação ocidentais começaram a difundir maciçamente na população romena, e a bombardeá-la mesmo, com informações e imagens do «genocídio» perpetrado em Timisoara pela polícia de Ceausescu. O que é que aconteceu na realidade? Passemos a palavra a um prestigiado filósofo (Giorgio Agamben) que não é propriamente um crítico da ideologia dominante mas que sintetizou de modo magistral a questão que estamos a tratar:

«Pela primeira vez na história da humanidade, cadáveres acabados de enterrar ou alinhados nas mesas das morgues foram desenterrados à pressa e torturados para, em frente das câmaras, simular o genocídio que devia legitimar o novo regime. O que o mundo inteiro teve debaixo dos olhos em directo nos ecrãs da televisão, como sendo verdade era a não verdade absoluta; e embora a falsificação por vezes fosse evidente, era de qualquer modo autenticada como uma verdade pelo sistema mundial dos meios de comunicação, para que se tornasse claro que a verdade passara a ser apenas um momento do movimento necessário da falsidade».

O fim da guerra-fria não era o fim do Grande jogo. Para os EUA, não bastava liquidar o «campo socialista» e desmembrar a União Soviética; também era preciso promover e impor na Europa oriental a ascensão ao poder de líderes completamente ligados a Washington. Na Geórgia, a certa altura até Edouard Chevardnadze (até então estimado e apreciado no ocidente pelo papel «democrático« que tinha desempenhado ao lado de Gorbatechev na dissolução do «campo socialista» e, posteriormente, ultrapassando o próprio Gorbatchev, na dissolução da União Soviética) se tornou num líder indesejável e a substituir.

Foi a tarefa confiada à famosa «revolução das rosas». Concentro-me nalguns dos seus momentos chave, servindo-me da reconstrução aparecida numa reputada revista francesa de geopolítica. Televisões georgianas nas mãos da oposição e dos meios de comunicação ocidentais empenharam-se numa campanha conjunta e infindável:

«A corrupção do regime é apresentada sob todos os seus aspectos. Não hesitando o recurso à mentira em caso de necessidade. Em meados de Novembro, revistas alemãs afirmam que pessoas próximas de M. Chevardnadze lhe compraram uma luxuosa moradia na cidade termal de Baden-Baden, no sul da Alemanha. A Bild afirma que a residência está avaliada em 11 milhões de euros. A informação não é confirmada. Não interessa […] Uma das nossas fontes informar-nos-á posteriormente que a foto apresentada foi recolhida ao acaso na Internet».

Depois da proclamação dos resultados eleitorais que confirmam a vitória de Chevardnadze e que são acusados de fraudulentos pela oposição, esta decide organizar uma marcha em direcção a Tbilissi, que deveria confirmar «a chegada simbólica e pacífica à capital de todo o país em fúria». Embora convocados em todos os cantos do país com grande apoio de meios propagandistas e financeiros, nesse dia apareceram para a marcha entre 5000 a 10.000 pessoas: «para a Geórgia, isso não era nada»! Mas, graças a uma encenação sofisticada e altamente profissional, a cadeia de televisão mais vista do país consegue transmitir uma mensagem totalmente diferente:

«A imagem está aqui, poderosa, a de todo um povo que segue o seu futuro presidente». A partir daí, as autoridades politicas são consideradas ilegítimas, o país fica desorientado e confuso, e a oposição mais arrogante e mais agressiva do que nunca, tanto mais que os meios de comunicação internacionais e as chancelarias estrangeiras a encorajam e a protegem. O golpe de estado está maduro, vai levar ao poder Mikhaïl Saakashvili, que fez os seus estudos nos EUA, fala um inglês perfeito e está em posição de compreender rapidamente as ordens dos seus superiores.

As «guerras na Internet»

Até agora temos visto a transformação da «não verdade absoluta» em «verdade verdadeira» e incontestável passar em primeiro lugar nos «ecrãs da televisão» enquanto que o papel da Internet era secundário e negligenciável. Mas é interessante assinalar que, a partir do fim dos anos 90, no International Herald Tribune um jornalista (Bob Schmitt) observava: «As novas tecnologias alteraram a política internacional». Aqueles que estavam em posição de as controlar viam aumentar desmesuradamente o seu poder e a sua capacidade em desestabilizar países mais fracos e tecnologicamente menos avançados.

Com efeito, com a chegada e a generalização da Internet, do Facebook, do Twitter, apareceu uma nova arma, susceptível de modificar profundamente as relações de força no pano internacional. Isto já não é um segredo para ninguém. Actualmente, nos EUA, um rei da sátira televisiva como Jon Stewart proclama: «Mas porque é que estamos a enviar exércitos se é mais fácil deitar abaixo uma ditadura via Internet do que comprar um par de sapatos?» O significado militar das novas tecnologias está aqui explicitamente sublinhado e reivindicado: sem tocar no direito de Washington a julgar e a condenar de modo soberano, a partir de agora é possível recorrer a armas novas e mais sofisticadas para punir os culpados e os rebeldes.

Mas a Internet não é ela mesma a expressão da liberdade de expressão? Os que argumentam isto são só os menos dotados (e os menos escrupulosos). Na realidade – reconhece Douglas Paal, ex-colaborador de Reagan e de Bush sénior – a Internet é actualmente «gerada por uma ONG que não passa de uma emanação do Departamento do Comércio dos EUA». Mas trata-se apenas de comércio? O semanário alemão Die Zeit pede esclarecimentos a James Bamford, um dos maiores especialistas sobre os serviços secretos americanos: «Os chineses também receiam que empresas americanas como o Google sejam em última análise instrumentos dos serviços secretos americanos em território chinês. Será isso uma atitude paranóica?» «De modo nenhum» é a resposta imediata. Pelo contrário – acrescenta o especialista – até «organizações e instituições estrangeiras estão infiltradas» pelos serviços secretos americanos, que estão sempre em condições de interceptar comunicações telefónicas em todos os cantos do planeta e devem ser considerados como «os maiores piratas informáticos do mundo».

A partir da agora – afirmam ainda no Die Zeit dois jornalistas alemães – não há quaisquer dúvidas:

«Os grandes grupos Internet tornaram-se num instrumento da geopolítica EUA. Anteriormente, eram necessárias laboriosas operações secretas para apoiar movimentos políticos em países longínquos. Actualmente basta muitas vezes um pouco de técnica da comunicação manobrada a partir do ocidente […] O serviço secreto tecnológico dos EUA, a National Security Agency, está em vias de montar uma organização totalmente nova para as guerras na Internet».

À luz de tudo isto, convém reler certos acontecimentos recentes de explicação difícil. Em Julho de 2009 ocorreram incidentes sangrentos em Urumqi e em Xinjiang, uma região da China habitada sobretudo por ouigours. São explicados pela discriminação e pela opressão à custa de minorias étnicas e religiosas? Não parece muito plausível uma abordagem desse tipo, pelo menos a julgar pelo que refere o correspondente de Pequim de La Stampa (Francesco Sisci):

«Numerosos hans de Urumqi queixam-se dos privilégios de que os ouigours desfrutam. De facto, estes, enquanto minoria nacional muçulmana, têm condições de trabalho e de vida muito melhores que os seus colegas hans, em igualdade de situação. Os ouigours, no seu escritório, têm autorização para suspender o seu trabalho várias vezes por dia para efectuar as cinco orações muçulmanas diárias tradicionais […] Além disso, podem não trabalhar à sexta-feira, dia santo muçulmano. Em teoria, deviam compensar ao domingo. Mas ao domingo os escritórios estão fechados […] Um outro ponto doloroso para os hans, submetidos à dura política de unificação familiar que continua a impor um filho único, é que os ouigours podem ter dois ou três filhos. E, enquanto muçulmanos, têm subsídios para além do salário dado que, como não podem comer carne de porco, têm que recorrer ao carneiro que é mais caro».

Isto não bate certo com a acusação feita pela propaganda ocidental de que o governo de Pequim quer eliminar a identidade nacional e religiosa dos ouigours. Então, como é?

Reflictamos sobre a dinâmica dos incidentes. Numa cidade do litoral chinês onde, apesar das diferentes tradições culturais e religiosas pré-existentes, os hans e os ouigours trabalham lado a lado, espalha-se de repente o boato segundo o qual uma rapariga han foi violada por operários ouigours; daí ocorrem incidentes durante os quais são mortos dois ouigours. O boato que provocou essa tragédia era falso mas eis que logo a seguir se espalha um segundo boato ainda mais grave e ainda mais funesto: a Internet difunde na sua rede a notícia segundo a qual na cidade do litoral chinês teriam sido mortos centenas de ouigours, massacrados pelos hans sob a indiferença e até mesmo a complacência da polícia. Resultado: tumultos étnicos no Xinjiang, que provocam a morte de quase 200 pessoas, desta vez quase todas hans.

Pois bem, estaremos na presença duma intriga infeliz e casual de circunstâncias ou da difusão de boatos falsos e tendenciosos com vista ao resultado que se constatou efectivamente na sua sequência? Volta assim à nossa memória a «experiência feita pela CIA» no verão de 1951, que provocou «uma misteriosa epidemia de loucura colectiva» na «pitoresca e tranquila aldeia» de Pont-Saint-Esprit. E de novo nos vemos obrigados a fazer a pergunta inicial: a «loucura colectiva» pode ser produzida apenas por via farmacológica ou pode ser hoje também o resultado do recurso a «novas tecnologias» da comunicação de massas?

Quem são os “ciberidiotas?

Uma coisa é certa: aqueles que são os alvos das «guerras na Internet» não ficam de braços caídos: como em todas as guerras os fracos procuram compensar a sua desvantagem aprendendo com os mais fortes. E eis que esses gritam com escândalo: «No Líbano” – podemos ler no Corriere della Sera de 20 de Março – «aqueles que dominam os meios de comunicação noticiosos e as redes sociais não são as forças políticas pró-ocidentais que apoiam o governo de Saad Hariri, mas os ‘Hezbollah». Esta observação origina um suspiro de desânimo: ah como seria bom se, como aconteceu com a bomba atómica e com as armas (propriamente ditas) mais sofisticadas, e também com as «novas tecnologias» e as novas armas da informação e a desinformação de massas, fossem os países que infligem um martírio interminável ao povo palestino e que querem continuar a exercer uma ditadura terrorista no Médio Oriente, a deter o monopólio! O facto é – lamenta-se Moises Naïm, director da «Política Externa« – que os EUA, Israel e o ocidente já não lidam com os «ciberidiotas de antigamente». Estes «contra-atacam com as mesmas armas, exercem a contra-informação, envenenam os poços»: uma verdadeira tragédia do ponto de vista dos paladinos da «liberdade de informação» e do «pluralismo».

Infelizmente, os estrategas e os ideólogos do Pentágono e do Departamento de Estado ainda podem encontrar actualmente alguns motivos sólidos de consolação: em vez de estarem dispersos, os ciberidiotas mostram-se mais vivos do que nunca à «esquerda»: estão empenhados em apresentar as manobras turvas do Google como o desafio lançado pelo David da liberdade e da verdade contra o Golias da autocracia e da censura!

Textos citados:

• Thomas FISCHERMANN, encontro com James BAMFORD, “Passen Sie auf, was Sie tippen”, in Die Zeit de 18 Fevereiro 2010, pp. 20-21.

• Alessandra FARKAS, “La Cia drogò il pane dei francesi. Svelato il mistero delle baguette che fecero ammattire un paese nel ‘51”, (A CIA drogou o pão dos franceses. O mistério das baguetes que enlouqueceram uma aldeia em 1951), in Corriere della Sera de 13 Março 2010, p. 25.

• Thomas FISCHERMANN, Götz HAMANN, “Angriff aus dem Cyberspace”, in Die Zeit de 18 Fevereiro 2010, pp. 19-21.

• Massimo GAGGI, “Un’illusione la democrazia via web. Estremisti e despoti sfruttano Internet” (Uma ilusão a democracia via Internet. Extrémistas e déspotas exploram a Internet), in Corriere della Sera de 20 Março 2010, p. 21.

• Domenico LOSURDO, “La non-violenza. Una storia fuori dal mito, Roma-Bari, Laterza”, 2010, cap. IX (para a Checoslováquia, a Roménia e para o quadro geral).

• Maurizio MOLINARI, encontro com Douglas PAAL, “Questo è l’inizio di uno scontro tra due civiltà” (Isto é um choque entre duas civilizações ), in La Stampa de 23 Janeiro 2010, p. 7.
• Bob SCHMITT, “The Internet and International Politics”, in The International Herald Tribune de 2 Abril 1997, p. 7.


• Francesco SISCI, “Perché uno han non sposerà mai una uigura” (Porque é que un Han nunca casará com uma Ouigour), in La Stampa de 8 Julho 2009, p. 17.




Domenico Losurdo, filósofo, Professor da Universidade de Urbino



Tradução de Margarida Ferreira, em ODiaro.info







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